quinta-feira, 29 de julho de 2010

Adolescente

Certo verão - eu tinha dezasseis anos - uma voz estrangeira
cantou em meus ouvidos.
Era, lembro-me bem, à beira-mar, entre os regos vermelhos, e a
carcaça de um barco abandonado na areia, tal um esqueleto.
Quis aproximar-me dessa voz, colando o ouvido na areia.
A voz desapareceu
Mas uma estrela cadente
Como se pela primeira vez eu visse uma estrela cadente e nos meus
lábios o sal da vaga.
Naquela noite, as raízes das árvores não voltaram mais.
Na manhã seguinte, uma viagem abriu suas folhas em mim e se
fechou como um livro de imagens.
Eu quis todas as noites ir à praia
Aprender primeiro a praia e partir depois para o largo.
No terceiro dia, amei uma jovem numa colina;
Ela morava numa casinha branca feito capela de montanha, tinha
a mãe velhinha à janela, óculos abaixados para o tricô, sem-
pre calada,
Um vaso de manjericão, um vaso de craveiros.
Chamava-se, parece, Vasso, Frosso ou Bílio.
Assim esqueci o mar.
Numa segunda-feira de outubro
Encontrei um jarro quebrado diante da casa branca
Vassi (para simplificar) estava de roupa negra, os cabelos desfei-
tos, os olhos vermelhos.
E como a interrogasse, disse-me:
''Ela morreu, o doutor disse que ela morreu porque não estran-
gulamos o galo negro nos alicerces...Onde encontrar um
galo negro por aqui...Só animais de casa, e a criação,
vendem toda já crescida no mercado...''
Eu não imaginava assim a tristeza e a morte.
Parti e voltei para o mar.
De noite, na ponte do São Nicolau,
Sonhei que uma oliveira muito velha chorava.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 122/123

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Estacas

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha
caminhado em cima dela, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol
que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto, onde
o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe,
ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o
resto logo se veria.




Luís Miguel Nava. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 160

University Parks

Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.

Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.

Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.

O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem as raízes enterradas.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 155

Crepúsculo

Ao sol começa a faltar a lenha, a rua
por onde eu agora sigo
vai só onde a memória a conseguir abrir.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 140

segunda-feira, 26 de julho de 2010

As fogueiras de São João

Nosso destino, chumbo derretido, não saberia mudar
Nada tem que se fazer,
Derramou-se o chumbo na água sob as estrelas apesar das foguei-
ras que queimam.

Se ficas nua diante o espelho à meia-noite, verás...
Verás no fundo do espelho passar um homem que, em teu destino,
Dominará teu corpo,
Na solidão e no silêncio, o homem
Da solidão e do silêncio
Apesar das fogueiras que queimam.

Na hora em que o dia acaba sem que o outro ainda comece,
Na hora em que o tempo se interrompe,
Aquele que desce então, de desde a origem dominava teu corpo
Deverás encontrar,
Deverás procurá-lo para que ao menos alguém o encontre quando
estejas morta.
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam diante das chamas
na noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não a acendesse uma criança,
Eróstrato?)
E elas jogam sal nas chamas para que crepitem
(É estranho o olhar que súbito vos lançam as casas, funis de
homens, quando as percorre um reflexo)
Mas tu que conheceste o encanto da pedra sobre o rochedo batido
pelas vagas
No poente onde a calma desceu,
Tu ouviste, no fundo da tua carne, a voz humana da solidão e do
silêncio,
Quando extinguiram-se todas as fogueiras,
Nessa noite de São João,
E decifraste a cinza sob as estrelas.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 117/118

domingo, 25 de julho de 2010


''Pôs-se a gritar muito alto para mostrar
que não estava morto.''

SOLOMOS, A mulher de Zante.


in Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 115

Raposódia Numa Noite de Vento

(...)

A lâmpada disse:
«Quatro da manhã.
Eis aqui o número da minha porta
Memória!
Tu tens a chave,
A pequena lâmpada espelha um círculo na escada.
Sobe.
A cama está aberta; a escova de dentes pendurada na
[parede,
Põe os sapatos à porta, dorme, prepara-te para a vida.»
O último revolver da faca.



T.S.Eliot. Antologia Poética. Poesia Século XX. Selecção e Trad. de José Palla e Carmo. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988., p.19
«Eu sei da tua dor, ó Cavaleiro! / A dor da Perfeição que imaginaste!»


Teixeira Pascoaes. Marânus. Lisboa: Assírio & Alvim.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O Velho

Tantos rebanhos desfilaram, tantos pobres
E ricos cavaleiros - alguns,
Vindos de cidades distantes, haviam passado
A noite em cavas,
Acendido fogueiras contra os lobos. Vês
A cinza? Feridas redondas e negras, cicatrizadas.
Está coberto de cicatrizes, como a estrada.
Mais longe, no poço seco, jogavam
Os cães raivosos. Não tem olhos, está coberto
De cicatrizes, é sem peso: o vento sopra.
Nada distingue, tudo sabe,
Carcaça vazia de cigarra numa árvore oca.
Não tem olhos, nem mesmo mãos, conhece
A aurora e o crepúsculo, conhece as estrelas
O sangue delas não o alimenta, nem é sequer
Um morto, não é de raça alguma, não morreu,
Assim o esqueceremos, sem linhagem.
As unhas fatigadas de seus dedos
Traçam cruzes sobre lembranças corrompidas
Enquanto sopra o vento desordenado. Neva.
Vi a geada em volta dos rostos.

Vi os lábios húmidos, as lágrimas geladas
No canto dos olhos; vi a prega
Da dor junto às narinas e o esforço
Nas raízes da mão; vi o corpo encontrar seu fim.
Esta sombra não está só, pregada
A esta bengala que jamais se dobra,
E nem mesmo pode baixar, para estender-se.
O sono esmigalharia seu esqueleto
Entre as mãos das crianças que brincam.
Ordena como esses galhos mortos
Que se partem quando a noite cai e o vento
Desperta nos vales,
Ordena às sombras dos homens,
Não ao homem em sua sombra
Que ouve apenas as vozes baixas
Da terra e do mar, lá onde elas encontram
A voz do destino. Fica de pé,
Na margem, entre rodas de ossadas,
Entre montes de folhas mortas,
Gaiolinha vazia esperando
A hora do fogo.

Drenovo, fevereiro, 1937.

Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 113

Santorim

Inclina-te, se podes, sobre o mar, obscuro, esquecendo
O som de uma flauta sobre pés desnudos
Que percorreram teu sono na outra vida, a devorada.

Sobre tua última concha, escreve, se podes,
O dia, o nome, o lugar
E lança-a ao mar, que ela desapareça.

Encontramo-nos desnudos sobre a pedra-pomes
Olhando as ilhas vermelhas mergulharem
No seu sono, em nosso sono.
Encontramo-nos desnudos, aqui, inclinando
A balança para a injustiça.

Tacão do vigor, querer sem falha, amor lúcido,
Desígnios que amadurecem ao sol do meio-dia,
Estrada do destino ao ruído da mão jovem golpeando as costas;
Nesse país que se rompeu, que não resiste mais,
Nesse país que outrora foi o nosso,
Ferrugem e cinza, as ilhas se devoram.

Altares destruídos
Amigos olvidados
Folhas de palmeiras na lama.

Deixa, se podes, que as tuas mãos viajem
Neste ângulo do tempo com o barco
Que tocou o horizonte.
Quando o dado bateu na eira,
Quando a lança feriu a couraça,
Quando o olho reconheceu o estrangeiro,
E se esgotou o amor
Em almas trespassadas;
Quando olhas à volta e encontras
Em tudo os pés ceifados
Em tudo as mãos inertes
Em tudo os olhos escurecidos;
Quando não há mais escolha, nem mesmo
A morte que desejavas tua,
Escutando algum grande grito,
O grito mesmo do lobo,
Teu débito;
Dexa que as tuas mãos viajem, se podes,
Separa-te do tempo enganador,
E abate-te
Como se abate aquele que leva as grandes pedras.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 97/8

XX

Andrômeda

Em meu peito abre-se de novo a chaga
Quando as estrelas baixam, misturando-se a meu corpo
Quando o silêncio cai sob o passo dos homens.

Estas pedras que afundam nas idades, até onde me arrastarão?
O mar, o mar, quem o esgotaria?
Vejo as mãos que sinalizam para o abutre, o falcão, toda manhã.
Ligado a este rochedo feito meu pela dor,
Vejo as árvores respirarem o obscuro repouso dos mortos
E os sorrisos, imutáveis, das estátuas.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 83

XVI

''E seu nome é Orestes.''
SÓFOCLES, Electra, 674.
Na arena outra vez, e sempre na arena!
Quantas voltas, e circuitos de sangue, sombrios
Degraus de rostos que olham...Esta multidão que me olha,
Que me olhava quando, de pé no carro,
Levantei alto a mão, radiante, e ela me aclamou!
A espuma dos cavalos me açoita. Quando chegarão
À meta? O eixo range, o eixo aquece, quando se incendiará?
Quando se romperão as rédeas, e os cascos
Afinal pisarão a relva tenra
Entre as papoulas onde, na primavera,
Colheste uma margarida?
Eram belos, os teus olhos. Mas não sabias o que olhasses
E eu mesmo não sabia o que olhar, eu que luto,
Justamente aqui, sem pátria - quantas voltas e circuitos ! -
E que sinto meus joelhos curvarem-se no eixo,
Nas rodas, na pista selvagem.
Comodamente dobram-se os joelhos quando os Deuses assim o
determinam.
Ninguém pode escapar; para que lutar, resistir?
Não podes escapar a este mar que te embalou, e que procuras,
Neste instante de luta, no sopro dos cavalos,
Com as canas que cantavam no outono ao modo lídio,
O mar nunca tornarás a ver, nem mesmo de passagem,
Voltando sem delonga à presença das sombras
Eumênides que se aborrecem e não perdoam.


Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 75

Masks, 1946


terça-feira, 20 de julho de 2010

«[…] Disseram-nos como / no instante em que nascemos a noite se
confundia com o nosso corpo. Víamos / que maiores se tornaram
estas paredes, agora presas / ao rosto materno. A sombra de uma
criança acabaria / aí por encontrar / as suas primeiras imagens. […]
Os olhos não têm pressa; viam ainda essas / recordações que se
tornaram no primeiro / dos nossos segredos. Não era outra a suspeita
que / ficava / do instante em que nascemos, até nos afastarmos de /
um sono que para nós havia de ser / difícil; recebíamos essa dádiva
e vimos como nela se / iniciara / também a culpa. O que era para
nós o nascimento / senão o início de uma separação? […]» («Acerca
de um Estúdio I»).


Fernando Guimarães. O Anel Débil. Porto, Edições Afrontamento, 1992, pp. 7-8.
«A poesia é o silêncio de um nome. Os caminhos a que ela nos conduz são tão próximos como a intimidade de qualquer linguagem. Mas não é em nós que essa linguagem existe. Há nela uma realidade própria que vem recusar a presença de quem é capaz de a pronunciar, porque só deste modo estaria ao nosso alcance revelá-la aos outros. E a essa realidade, que há-de ficar por fim repartida, se poderá chamar silêncio, para que a ninguém pertença.»
Fernando Guimarães. Casa: O seu Desenho, Lisboa, INCM, 1985, p. 10. Poesias Completas, ed. cit., p. 146.
«Alguém procura o livro / submerso; aproxima-se dele com a luz dos meses, / as imagens, a submissa reflexão. Os dedos estremecem / ainda e encontram os pesados arbustos da idade / ou folhas abertas como anéis. O último conhecimento.» («Idade»)



Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.118
«Lê o poema, escuta a própria voz / dele, que não é minha, e só existe em nós.»


Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.57
«A morte nunca vem pôr em questão a presença do homem no diálogo que mantém com o tempo. Quer dizer, cada um de nós nesse diálogo que é poesia – e, portanto, criação – não se destrói, porque isso não seria mais que fugir absurdamente à própria morte. E o nosso destino é encontrá-la.»

Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.

segunda-feira, 19 de julho de 2010


Poema Inicial

Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 133

Até à infância

Tive hoje, olhando o céu pela janela do meu quarto, a sensação de que ele se me entranhava até à infância. Nunca supus que em mim houvesse uma profundidade capaz de absorver uma tão extensa superfície azul, a qual vertiginosamente refluía por mim dentro, iluminando espaços de cuja existência eu nem sequer desconfiava. O certo é que, ao atingir maior profundidade, a cor se lhe alterou sensivelmente, embora a natureza dessa mutação não fosse propriamente de ordem física. Foi como se ao chegar a esse ponto, tendo a bomba da memória começado a trabalhar, a luz que sobre ele este mecanismo vomitava lhe alterasse a própria consciência e furiosamente arrancasse ao coração da terra aquele que, a um ritmo idêntico, eu sentia acelerar-se-me entre os ossos.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 107
«Estava de novo na estrada, de novo ao volante do velho sedan azul, de novo só. Rita estava morta para o mundo quando eu lera a carta e me debatera com as montanhas de angústia que se tinham levantado dentro de mim. Olhara para ela, que sorria adormecida, beijara-lhe a fronte húmida e deixara-a para sempre, com um bilhetinho de terno adieu que lhe colara ao umbigo, pois de contrário seria capaz de não o ver.»




Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.277.
«Tenho notado muitas vezes que possuímos tendência para dotar os nossos amigos com a estabilidade de tipo que as personagens literárias adquirem na mente do leitor. Por muitas vezes que reabramos o Rei Lear, jamais encontraremos o bom rei a emborcar a caneca de cerveja, numa grande farra, esquecidos todos os infortúnios, numa alegre reunião com todas as três filhas e os seus cãezinhos de regaço. (...)Sejam quais forem as evoluções por que passou esta ou aquela personagem popular entre as páginas de um livro, o seu destino está fixado no nosso espírito. Similarmente, esperamos que os nossos amigos sigam este ou aquele rumo convencional e lógico que para ele determinámos. (...)E jamais nos atraiçoará, sejam quais forem as circunstâncias. Temos tudo isso bem arrumadinho no nosso espírito, e quanto menos vemos determinada pessoa mais nos compraz verificar, sempre que dela temos notícias, como respeita obedientemente a ideia que fazemos a seu respeito. Qualquer desvio do destino que fixámos parece-nos não só anómalo, mas também contrário à ética. Preferíamos não ter conhecido o nosso vizinho, vendedor reformado de cachorros quentes, se vimos a saber que acaba de publicar o melhor livro de poesia do século.»


Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.275

domingo, 18 de julho de 2010

Pina Bausch em Café Müller


VII

Vento do Sul


O mar para Oeste se confunde com a linha das montanhas.
A nossa esquerda, o vento do Sul sopra deixando-nos loucos,
Esse vento que descarna os ossos,
Entre os pinheiros e as alfarrobeiras, nossa casa.
Grandes janelas. Grandes mesas
Para escrever as cartas que te havemos escrito
Desde há tantos meses, e que lançamos
Ao centro da separação, para a igualar.
Estrela da aurora, quando baixavas os olhos
Nossas horas eram mais doces que o azeite
Na chaga, mais ligeiras que a água fresca
No palácio, mais plácidas que a penugem do cisne.
Sustentavas nossa vida em tua mão.
Depois do pão amargo do exílio.
Se permanecemos à noite diante a parede branca
Tua voz nos chega como a esperança duma chama;
E esse vento de novo
Afia sua lâmina em nossos nervos.
Escrevemos-te cada qual as mesmas coisas
E cada qual fica silencioso diante o outro
A olhar cada qual para si, o mesmo mundo,
Trevas e claridade sobre a linha das montanhas
E tu.
Que espantarás esta tristeza de nossos corações?
Ontem à noite, um aguaceiro e hoje
Pesa de novo o céu encoberto. Nossos pensamentos
Como as agulhas de pinheiro, amassadas, inúteis
À porta de nossa casa, sob o aguaceiro de outrora,
Esforçam-se por levantar uma torre que desaba.
Nessas aldeias dizimadas,
Sobre o cabo entregue ao vento do Sul
Com esta linha de montanhas diante de nós, que te oculta,
Quem nos creditará por nossa vontade de esquecimento?
Quem neste fim de outono acolherá nossa oferenda?



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 57/8

sexta-feira, 16 de julho de 2010

II

Outro poço, uma gruta.
Era-nos fácil dele retirar, outrora, ídolos e adornos,
Assim dando prazer aos seus amigos que nos eram ainda fiéis.
Partidas as cordas. Sulcos apenas na borda
Lembram-nos a felicidade desaparecida.
''Os dedos apalpam a borda'', disse o poeta.
Os dedos apalpam o frescor da pedra um instante
E a febre do corpo se espalha na pedra
E a gruta joga sua alma e a perde
A todo instante, cheia de silêncio, sem uma gota.




Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 47


Nota: ''Os dedos da borda'', disse o poeta. Dionysos Solomos, A mulher de Zante:''E os Justos, quantos são eles segundo a Santa Escritura? E, pensando nisso, meus olhos tombaram sobre minhas mãos, postas na borda do poço.''

I

O mensageiro
Três anos o esperamos
Olhos fixos nos pinheiros,
Na margem e nas estrelas.
Estreitamente unidos à relha da charrua, à quilha do barco,
Queríamos achar a semente primeira
E que recomeçasse o drama tão antigo.

Voltamos a casa esfalfados,
Os membros partidos, a boca roída
Pelo gosto da ferrugem e do sal.
Ao despertar, navegamos para o Norte, estrangeiros,
Enterrados no coração dos nevoeiros
Por asas imaculadas de cisnes que nos machucavam.
Nas noites de inverno, o vento furioso do Leste deixava-nos loucos.
No verão, desorientávamo-nos na agonia do dia incapaz de morrer.

Trouxemos estes entalhes de uma arte bem humilde.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 45
Um dia, Seferis descreveu-se nos seguintes termos: ''Sou um homem monótono e obstinado que, há mais de vinte anos, não se cansa de repetir as mesmas coisas.''


in 'Pequena História' da Atribuição do Prémio Nobel a Giorgos Seferis, pelo Dr. Kjell Strömberg


Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 20/1

quinta-feira, 15 de julho de 2010

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O Demónio da Perversidade

«Hoje envergo estas correntes e estou aqui. Amanhã estarei desagrilhoado - mas onde


Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 26

Os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 104

A Memória

Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual -completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97

Basalto

Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 91

Apenas a folhagem

De novo o encontro onde as linguagens abrem umas sobre as outras, o rapaz. Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto, o que me põe a braços com as palavras. As raízes entram-lhe no sangue, abrem-lhe internos focos de paixão, não tarda que penetrem pela terra e cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhe os olhos - as visões ascendem tumultuosamente, como seiva a ferver, creio que por vezes trazem pedra misturada. Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado pela força da folhagem.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 50

ARS POETICA

O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 44.

O Tanque de Bashô

O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de
Bashô.
A água maravilha-se.

Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono,
o dia decompõe-se, o sangue explode contra a claridade.

Um nó de leite a nudez cresce pela água.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 40

terça-feira, 13 de julho de 2010

segunda-feira, 12 de julho de 2010

«(...) Poe consagrará, não obstante, a imaginação como única indutora do entusiasmo da alma, via para atingir aquilo que designou como «Beleza superna», distinguindo-se do entusiasmo do coração, induzido pelas paixões terrenas e sensuais, já que « o Céu não traz consolação/ Àqueles que ouvem só o eco ao coração» («Al Aaraaf»). Como se sugeriu, o coração percebe já uma realidade adulterada. Mas parece ser, por uma qualquer fatal necessidade, um órgão sobredesenvolvido no poeta ao ponto de ameaçar a sua perdição. Sem a hipersensibilidade emocional, porém, talvez ao poeta não fosse dada a urgência de se salvar pelo esforço de alcançar a beleza «do que outros mundos conterão» (cf. poema «Estrofes»). Daí o coração-lira, tenso e vibrátil, percorrendo a obra de Poe, presente até nas «fibras de alaúde» de um anjo habitado lá no «alto firmamento» («Israfel»), e culminado na visão cosmogónica de universos ciclicamente dilatados e contraídos « a cada pulsação do coração divino» em Eureka, o «poema-ensaio» que o autor escreveria no fim da vida (1848).
Introdução da Tradutora Margarida Vale de Gato


Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 15/6
«(...) A obstinação com que este órfão, por várias vezes privado de figuras maternas substitutas, se desliga do princípio de realidade tem sem dúvida algo de juvenil, sobretudo na formulação dos seus primeiros poemas: «Eu não fui, desde infância/ Como outros eram...» («[Só]»).
Introdução da Tradutora Margarida Vale de Gato




Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 13/4
«Poe tem do mundo a visão de um homem com os sentidos perturbados, em ebulição. O mundo é para ele como o espaço para o comedor de ópio. Para o escravo do ópio, o mundo surge ampliado, expande-se para além do ilimitável, acrescentando-se-lhe uma extensão interior, ou uma espécie de alma. Há uma sensação de superabundância no êxtase. E uma dor... Assim, para os olhos de Poe, o louco, o mundo é dilatado, horrível. A sua vida é a de um sonhador.»
Fernando Pessoa


Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009.
Para mim a poesia não foi nunca uma intenção, mas uma paixão; e as paixões merecem ser tratadas com respeito; não devem - não podem - ser excitadas a nosso bel-prazer com vista às compensações triviais, e às honrarias mais triviais ainda, da humanidade.


Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

The Secret Garden


«A necessidade da poesia»

As palavras de Jean Cassou, citadasno incipit, não perderam actualidade: a poesia continua a ser «a mais perfeita expressão do homem, a sua mais alta operação espiritual». Se o seu fim «é explicar o homem, acompanhá-lo, exaltá-lo no decurso da sua prodigiosa ascensão», a poesia não pode, por outro lado, deixar de reflectir «a vida dramática do homem que a todo o custo procura humanizar o mundo, mudar a vida».


Vd. Árvore – folhas de poesia, Edição fac-similada. Introdução e Índices de Luís Adriano Carlos [«Uma Árvore no meio do Cosmos ou o Retorno do Sublime»], Porto, Campo das Letras, 2003. 1.º Fascículo -Outono de 1951. Texto «programático», impresso em itálico.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

«(…) Ó friorento Cristo atraiçoado / Pelo culto que te usurpa a leda fala! / Pois no caudal dos deuses és o facho / De uma meiga alegria que faltava. // Vieste para beber as nossas lágrimas / Com o mesmo amor com que bebias vinho, / Campos humildes, ó deus plebeu, lavravas / E eras nas bodas campestre bailarino, // Doce derriço das samaritanas, / Consolação de corações esquecidos, / Companheiro gentil de putas santas, / Irmão de adúlteras, estrela dos vadios».


Natália Correia. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II. Lisboa. Círculo de Leitores, 1993., p. 227.
Ora uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.

(...)

Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente.



José Régio. Poesia I. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 49
«O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro.»
(p.11)

«A obra deixa que a terra seja terra.» (p.36)

Martin Heidegger . A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1990.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

o tempo percorre a espinha dorsal, a espinal medula
o céu está vermelho como o inferno
olha comigo como vamos juntos a lado nenhum
se eu fizesse sentido isto quereria dizer alguma coisa
escapar-me-á a entrelinha, o sobressalto
a esquina dos teus olhos virei-a há um segundo
e eu continuo a querer coisas que se apagam como fósforos
nenhum olhar me trará a tua luz


Susana Almeida

quinta-feira, 1 de julho de 2010

« (...)o que é preciso é compenetrarmo-nos de que, na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e nao querer que ele nos siga.»
Fernando Pessoa. Páginas Íntimas e de Auto-interpretação. Ed. por Jacinto do Prado Coelho e Georg Rudolf Lind, Lisboa, 1966, p. 116.

terça-feira, 29 de junho de 2010


«Também há-de chegar o dia em que eu próprio nunca existi; nem eu, nem todos os fantasmas que me calcaram aos pés e me deixaram inanimado... E há-de chegar também o dia em que o mundo nunca existiu: o mundo, o sol e as estrelas...»


Teixeira Pascoaes. O Bailado. Obras Completas, VIII, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho. Lisboa. Livraria Bertrand, 1973.,p.189
«O pobre triste lê nas pedras a história da sua infância; e lê nos astros e nas nuvens, no voo das aves e nas entranhas do seu coração, porque ele é uma sombra humana que foi árvore, e áugure nos tempos virgilianos, e planeta na sua freguesia...»


Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes Ibid. O Pobre Tolo (elegia satírica), pp.247-248 e 251
«Desapareço na escuridão interior. Um velho espectro me domina; adapta-se ao meu ser. Transfiguro-me, desconheço-me, não sou eu. Sou outra alma que revive; uma lembrança minha acordada com tal força, que se apodera de mim absolutamente. Sou ela e mais ninguém !" - pp.75-76; "Conclui : não existo; os tolos não existem. [...] Paira numa névoa abstracta e incolor em que ele e as outras pessoas se diluem e que forma as dimensões do Indefinido,depois das últimas estrelas" - p.77; "O tolo aparece e desaparece" - p.78; "O tolo é um mar e bóia em pleno mar... [...] Está no centro duma névoa impenetrável ao sol que a deve cercar dum infinito resplendor... »- p.79.


Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes op. cit. Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita.
«Somos uma turba e ninguém: um ninguém que vive, porque é sangue e carne, e existe porque é esqueleto ou pedra; e uma turba de espectros que nos acompanha desde a Origem, e é a nossa mesma pessoa multiplicada em mil tendências incoerentes, forças contraditórias, em vários sentidos ignotos...»


Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes op. cit. Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita), p.215.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Ariane

Agora falarei dos olhos de Ariane.
Falarei dos teus olhos, pois de Ariane
só talvez haja memória
entre as pernas de Teseu.

De Ariane ou não, os olhos são azuis
de um azul muito frágil,
como se ao fazer a cor uma criança
tivesse calculado mal a água.
É um azul diluído, o azul dos teus olhos
diluído em duas ou três lágrimas
— uma delas minha, pelo menos uma,
e as outras tuas, as outras de Ariane.

Falarei destes olhos. Os de Ariane,
deles deixarei que seja Teseu a falar.

Falarei desse azul que não vi em Creta,
pois passei a infância numa terra sem mar,
falarei desse azul que não vi em Naxos,
mas vi em Delfos onde, entre colunas,
passava os dias divinamente a fornicar,
indiferente ao oráculo de Apolo.
De resto, que deus grego não me aprovaria?
Que outra coisa se pode fazer na Grécia?
Ali podeis fornicar com toda a gente
— é clássico e barato —,
até com os coronéis.
Agora falarei dos olhos gregos de Ariane,
que não são de Ariane nem são gregos,
desses olhos que se fossem música
seriam a música de água dos oboés,
falarei apenas dos olhos do meu amor,
desses olhos de um azul tão azul
que são mesmo o azul dos olhos de Ariane.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Maria Helena Vieira Da Silva ou o Itinerário Inelutável

Minúcia é o labirinto muro por muro
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia —
Itinerario é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável —
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto
Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio


Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra Poética III., p. 130

Romance de Cnossos

Este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos


David Mourão-Ferreira. As lições do fogo.,p. 68-70 Obra poética, 1996, pp.305-306.

domingo, 27 de junho de 2010

«Seguimos, portanto, para o Leste, eu mais arruinado do que revigorado pela satisfação da minha paixão e ela respirando saúde e com a estrutura ilíaca ainda tão escorrida como a de um rapaz, embora tivesse aumentado cinco centímetros à altura e três quilos e meio ao peso. Estivéramos em toda a parte. Na realidade, não víramos nada. E hoje dou comigo a pensar que a nossa longa viagem serviu apenas para macular, com um longo rasto de logo, o encantador, confiante e sonhador país que então, em retrospectiva, não era mais para nós do que um amontoado de mapas muito usados, guias de viagens desfeitos, pneus velhos e os soluços dela na noite - todas as noites, todas -, assim que eu fingia adormecer



Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.182

sábado, 26 de junho de 2010

«[…] e se elevávamos a voz era para que se / pudesse falar acerca / de
tudo o que se tornara frágil como este corpo / reflectido apenas /
trazido pela nossa sombra. Nada mais é preciso. /Recordamos / como
teria existido outrora um rosto que só a água / percorria.»


(«Acerca de Narciso»)



Fernando Guimarães. Tratado de Harmonia. Poemas.Porto. Editora Justiça e Paz.1988.,
p. 20.

Ars Moriendi (2007)


Ausência

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais — um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim — e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

Minotauro

Conhecemos os sulcos abertos pelas searas, a curva
do estio nos seus flancos, quando desceram levemente
sobre a mesma dor as folhas ligeiras da manhã,
o rumor que nasce pela cicatriz das palavras.

As mãos quase esquecidas ergueram um rosto
e começaram a procurar a fresca imagem da alegria,
o pão ácido e levíssimo que se derrama pelos lábios,
o fogo, as delgadas volutas que se fecham no peito.

Assim reunimos os pulsos, abandonamos na água
o clima pressentido, os círculos de um corpo
ferido pela vigília submersa do minotauro,

enquanto sete jovens gregos e sete donzelas
vinham ao seu encontro e ele alimentava-se
de uma calma, recente adolescência.


Fernando Guimarães. Poesia (1952-1980)., p.103
«Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar.»


Bernardo Soares. Livro do Desassossego, in Fernando Pessoa, Obras, II, p.750.

Lunário

«E no centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar. E sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte – embora seja sempre absurdo morrer.»

Al Berto. Lunário. Assírio & Alvim, 2ª Edição, Lisboa, 1999., p.161

sexta-feira, 25 de junho de 2010

RECITATIVO IV

«Há qualquer coisa de imprevisível num labirinto,embora seja um caminho em que se procura representar a uniformidade, a simetria ou a identidade que parece existir em todas as diferentes partes que o constituem. Quando principiamos a percorrê-lo, sabemos que o espaço — no qual a diversidade e a multiplicidade das coisas encontram sempre uma possibilidade de se organizarem — como que deixa existir, pois a sua realidade acaba por ser posta em causa, ao confrontar-se com o que seria, finalmente, o afastamento a que toda a realidade passava a estar sujeita. Fácil se torna reconhecer que cada caminho se identifica com a própria ausência daquele que lhe é imediatamente anterior e, ao mesmo tempo, do que fica imediatamente a seguir. É por isso que sabemos que, por mais que caminhemos, nem por isso deixamos de correr o risco de não avançarmos, de não alcançarmos o fim que queríamos apesar de tudo atingir.
Perdido que foi tudo o que podia servir de referência, somos levados a reconhecer que o labirinto não está, afinal situado num espaço que, como já dissemos, se vai tornando ausente. E, ao desaparecer esta referência última, somos levados a concluir que ele é em nós próprios que existe acabando, assim, por se confundir cada vez mais com a nossa presença. Compreendemos, então, que todos os lugares são um labirinto, não para encontrarmos uma saída, mas para nele nos encontrarmos.»

Fernando Guimarães. Tratado de harmonia. Poemas, p. 44

quarta-feira, 23 de junho de 2010

«(...)Fausto, perante a irreversibilidade (certamente que modalizada) de seu destino, face ao que Lacan chamaria de “segunda morte”, busca na beleza de uma mulher suporte para a sua angústia. E assim surge Helena de Tróia, personagem da Ilíada, comparada ao Paraíso perdido, como aquela que é capaz de devolver a alma de Fausto.


Foi este o rosto que lançou ao mar mil barcos
E às imensas torres de Tróia lançou fogo?
Faz-me imortal com um beijo, doce Helena.
Sugam-me a alma os lábios dela: vede onde voa.
Vem, Helena, vem devolver-me a alma!
Aqui quero viver, que o Céu está nestes lábios,
E tudo é impuro o que não é Helena

MARLOWE, C. (1987), p. 133.


Aristides Alonso. A queda para o alto: o Fausto de Marlowe. Comum - Rio de Janeiro - v.9 - nº 22 - p. 39 a 55 - janeiro / junho 2004.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

“Insatisfeito com as limitações de “mero” homem, Fausto vende sua alma ao diabo para tornar-se deus; mas, como Ícaro voando muito perto do sol, ele queima as asas e cai”
(...)
«Fausto é a versão humanizada, em carne e osso, de Lúcifer e seu desejo (tão condenado pela tradição judaico-cristã) de igualar-se a Deus.»

«Nesta figura sem imaginação universalizante (o Fausto da primeira legenda), Marlowe projectou uma linha de compreensão da natureza humana como excesso e paixão, devir e mudança, exuberância e individualismo revolto, que expressa bem a ousada aspiração do renascimento nos campos científico, político, ético e estético. Mas a desmesura alumbrada do sonho fáustico esbarra com uma mundivisão harmoniosamente ordenada,estante e não deviniente, em que o Homem é apenas,deve ser apenas, mais uma peça na ordem imutável dos seres e das coisas, nexus et natural vinculum.




Aristides Alonso. A queda para o alto: o Fausto de Marlowe. Comum - Rio de Janeiro - v.9 - nº 22 - p. 39 a 55 - janeiro / junho 2004.
Aguça o teu engenho, Fausto, e sê divino.

Marlowe

domingo, 20 de junho de 2010

«Quis fazer um gesto. Impossível. Baixar as mãos. Não pôde. Experimentou dar um passo. Em vão. Era como se o prendessem à terra garras de âncora.
Mas só quando um pardal lhe veio construir um ninho nos braços é que João Sem Medo compreendeu com espanto que estava metamorfoseado em árvore.»



José Gomes Ferreira. Aventuras de João Sem Medo. (1963, 1989, Herdeiros de José Gomes Ferreira, Publicações Dom Quixote), Leya, SA, 2009, 2ª ed, Lisboa, p. 24

Paul Newman and Elizabeth Taylor in a scene from the 1958 Hollywood film “Cat on a Hot Tin Roof”


processo de Leonardo da Vinci

« (...)a analogia é exactamente a faculdade de variar as imagens, de combiná-las, de fazer que a parte de uma coexista com a parte da outra e de perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas.»


Paul Valéry. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. São Paulo: 34, 1998. p.21

“dois soberbos Satãs e uma Diaba, não menos extraordinária”

« (...)nas linhas do seu corpo a molície dos antigos Bacos. Os belos
olhos lânguidos, de cor tenebrosa e indecisa, assemelhavam-se
a violetas carregadas, ainda, das pesadas lágrimas da
tempestade(...).
Fitou-me com os seus olhos inconsolavelmente aflitos (...) e
disse-me em voz cantante:
– Se quiseres, se quiseres, eu te farei o soberano das almas, e tu
serás o senhor da matéria viva, ainda mais do que o escultor o
pode ser da argila; e conhecerás o prazer, ininterruptamente
renovável, de sair de ti mesmo para te esqueceres em
outrem, e de atrair as outras almas até confundi-las com a
tua. »



Charles Baudelaire. Pequenos Poemas em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 59-60.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Vamos morrendo aos solavancos, sem piedade, presos à des-figuração desse céu carcomido e velho; como nos engole a serpente, a nós, corpo tão indefeso, de pele luzidia e coração tão espesso...Sento-me, de novo, aqui, perto desse lago de fogo. Atiro uma pedra e firo-me, a mim, não ao peixe de olhos brancos. Leva-me a treva, em nevoeiro endeusado, para dentro da floresta: choro em cima de folhas encamufladas por verdete. Tempestades!, como me ceifais em cada relâmpago o brilho da alma. (Alguém se disse cansado de existir, enquanto a lua, de rosto escancaradamente sanguíneo, se arranhava no espelho da noite)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Permitam que, desta vez, seja piegas! Estou tão cansado de ser cínico!


Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.114
-Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau! Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE NÃO QUERO.
E João Sem Medo continuou a subir o caminho árduo, resoluto na sua pertinácia de ocultar o medo - a única valentia verdadeira dos homens verdadeiros.



José Gomes Ferreira. Aventuras de João sem medo. (1963, 1989, Herdeiros de José Gomes Ferreira, Publicações Dom Quixote), Leya, SA, 2009, 2ª ed, Lisboa, p. 17

"Oh Careless Love" A Book from Marilyn Monroe's Personal Library


É PROIBIDA A ENTRADA

A QUEM NÃO ANDAR

ESPANTADO DE EXISTIR



José Gomes Ferreira. Aventuras de João sem medo. (1963, 1989, Herdeiros de José Gomes Ferreira, Publicações Dom Quixote), Leya, SA, 2009, 2ª ed, Lisboa, p. 10
Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura
frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A
impressão é que estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere: está ficando escuro. Mais.
Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente.
Barriga leitosa com umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde
tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração da treva.
O problema é que na janela do meu quarto há um defeito na cortina. Ela
não corre e não se fecha portanto. Então a lua cheia entra toda e vem
fosforescer de silêncios o quarto: é horrível.
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço.


Clarice Lispector. Água Viva. (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993)., PP.99


(citação de artigo literário)
No artigo “Poetry, Fiction and the Future” publicado em 1927, Virginia Woolf ao especular sobre o que será a literatura do futuro, questiona-se a propósito da definição do género literário. Diz que caminhamos em direcção à prosa e que esta será usada para objectivos nunca visados até aí. E continua:

«That cannibal, the novel, which has devoured so many forms of art will
by then have devoured even more. We shall be forced to invent new
names for the different books which masquerade under this one heading.
And it is possible that there will be among the so-called novels one which
we shall scarcely know how to christen. It will be written in prose, but in
prose which has many of the characteristics of poetry. It will have
something of the exaltation of poetry, but much of the ordinariness of
prose. It will be dramatic, and yet not a play. It will be read, not acted. By
what name we are to call it is not a matter of very great importance. What
is important is that this book which we see on the horizon may serve to
express some of those feelings which seem at the moment to be balked
by poetry pure and simple and to find the drama equally inhospitable to
them.»


Virginia Woolf

sábado, 12 de junho de 2010


Gostaria de saber-vos loucamente amada.




André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 158.
«Para todo o sempre, como sobre a areia branca do tempo, e graças a este instrumento que se destina a medi-lo, mas que por ora apenas vos fascina e esfomeia, para todo o sempre, reduzido a um infinito fio de leite a escorrer de um seio de vidro. Perante e contra tudo, manterei que o sempre é a grande chave. Tudo o quanto amei - quer o tenha ou não conservado comigo -, sempre haverei de amá-lo.»



André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 152.
«Julguei, durante bastate tempo, que não havia pior loucura do que a de se dar vida a um ser. Ou pelo menos detestava aqueles que ma haviam dado a mim.»


André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 150.
«Oxalá o meu pensamento possa falar pela tua boca, pelas mil e uma goelas hiantes de arminho que ao nascer do sol se escancaram no teu cume!»



André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 127/8.
«A morte, cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para cantar as horas que não passam. Porque é a vez de uma mulher e de um homem, que até ao fim dos séculos serão, fatalmente, tu e eu, perpassarem, sem uma única vez se virarem para trás, no seio da oblíqua claridade, até perder de vista, até aos confins da vida e do esquecimento da vida, por entre a erva fina que à nossa frente corre para a arborescência.»




André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 110.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O que mais importa, digamos, ao ler uma ode de Safo, não é que me imagine numa ilha grega há 2500 anos. O que importa é a experiência, que é a mesma de todos os seres humanos de diferentes séculos e idiomas, capazes de apreciar poesia: é a centelha que consegue atravessar esses 2500 anos.

Thomas Stearns Eliot

quinta-feira, 10 de junho de 2010


«Um cardume de estrelas brilhava palidamente por cima de nós, entre as silhuetas das folhas finas e compridas, e aquele céu vibrante parecia tão nu como ela estava, sob o vestido leve. Vi o seu rosto reflectido no céu, com uma nitidez extraordinária. As suas pernas, as suas pernas encantadoramente vivas, não estavam muito unidas, e, quando a minha mão encontrou o que procurava, gravou-se-lhe nas feições infantis uma expressão sonhadora e misteriosa, em que havia prazer e dor. Estava sentada num plano um pouco mais elevado do que eu e, sempre que o seu êxtase solitário a impelia a beijar-me, inclinava a cabeça com um movimento sonolento, suave e lânguido, quase angustiado, e os seus joelhos nus pendiam e apertavam o meu pulso, para o libertarem em seguida. A sua boca trémula, franzida pela acidez de qualquer misteriosa poção, aproximava-se do meu rosto e sustinha a respiração, num hausto sibilante. Tentava, primeiro, apaziguar o sofrimento do amor comprimido violentamente os lábios ressequidos contra os meus; depois, a minha amada afastava-se e sacudia nervosamente o cabelo, para a seguir se aproximar de novo, sombriamente, e me deixar beber a vida na sua boca aberta, enquanto, com uma generosidade disposta a oferecer-lhe tudo - o coração, a garganta, as entranhas -, eu lhe dava a segurar na mão inexperiente o ceptro da minha paixão.»




Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.14/5
«Muito depois da sua morte continuei a sentir os seus pensamentos flutuarem através dos meus. Muito antes de nos conhecermos tivéramos os mesmos sonhos. »


Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.14.
« Essa mulher ainda jovem que acabava de entrar parecia vir como que rodeada de um vapor - vestida de uma labareda? - Tudo perdia a cor, tudo gelava, em presença daquela tez de sonho, perfeita concordância de tons de ferrugem e de verde: o antigo Egipto, um pequeno feto inesquecível, trepador, dentro de um poço antiquíssimo, o mais amplo, profundo e obscuro de quantos poços a que me debrucei, sito em Villeneuve-les-Avignon, nas ruínas de uma esplêndida cidade do século catorze francês, hoje em dia nas mãos dos ciganos. Era uma tez que, escurecendo gradualmente do rosto até às mãos, jogava com uma combinação de tons fascinante, a qual ia do sol extraordinariamente pálido dos cabelos dispostos em ramo de madressilva - a cabeça, desocupadíssima, erguia-se e baixava-se - ao papel que conseguiria arranjar para escrever, com intervalos de um vestido decerto, naquela altura, tão enternecedor que já nem dele me lembro. Tratava-se de alguém muito jovem, embora esse sinal distintivo não se impusesse à primeira vista, e isso devido à ilusão que nos dava de se deslocar, em pleno dia, à luz de um candeeiro. Já por duas ou três vezes ali a vira entrar: e de todas as vezes sempre ela, antes de se me oferecer à vista, me fora anunciada por não sei que frémito ou arrebatamento, que, ondulando, de ombro em ombro, se propagava, desde a porta até onde eu me encontrava, através da sala do café. O facto dessa agitação, ao perpassar por uma assistência das mais banais, depressa vir a adquirir carácter hostil - e isto quer no domínio da vida, quer no da arte - é para mim um indício da presença do belo. Ora eu posso, com toda a segurança, afirmar que, no dia 29 de Maio de 1934, e ali, naquele sítio, aquela mulher era escandalosamente bela. Uma tal certeza, para mim nessa altura já de si tão exaltante, corria, aliás, o grave risco de me deixar obcecado no intervalo entre as suas aparições reais, tanto mais que, desde o primeiro instante, uma remota intuição me dera azo a crer que o destino daquela mulher poderia vir a entrar um dia, ainda que ao de leve, em conjugação com o meu.»

André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 56/7

E o assunto é de morte é de morte que eu falo


Ruy Belo

terça-feira, 8 de junho de 2010


Fragmentos

O que eu toco desfaz-se.



Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 121

O abutre

Era um abutre, e dava-me bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias, e agora dava-me já bicadas nos pés propriamente ditos. Picava e voltava a picar, depois voava várias vezes, inquieto, à minha volta, e continuava o seu trabalho. Passou por ali um senhor, ficou um momento parado a olhar, e depois perguntou-me por que razão eu me não defendia do abutre. «Mas, eu não me posso defender», disse eu. « Ele chegou e começou a dar bicadas, é claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um bicho destes tem muita força; e depois já me queria saltar para a cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora já estão quase desfeitos». «Não percebo porque se deixa torturar assim», disse o homem, «basta um tiro para acabar com o abutre». «Ah, é?», perguntei eu. «E o senhor não podia tratar disso?» «Com muito gosto», disse ele. «Só preciso de ir a casa buscar a espingarda. É capaz de esperar uma meia hora?» «Não sei», disse eu, e fiquei por um instante hirto de dor. E depois pedi: «Mas tente de qualquer modo, por favor». «Está bem», disse o senhor, «vou o mais depressa que puder». O abutre tinha ficado calmamente a ouvir a conversa, olhando, ora para mim, ora para o senhor. Agora apercebi-me de que ele tinha compreendido tudo. Levantou voo, inclinou-se muito para trás para tomar balanço suficiente e depois, como um lançador de dardo, enfiou o bico pela minha boca e por mim adentro. Caído de costas, senti, agora liberto, como ele irremediavelmente se afogava no meu sangue, que enchia todas as profundezas e alagava todas as margens.



Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 104
«Não diz a história que os poetas românticos, esses que do amor parecem ter tido, todavia, uma concepção menos dramática que a nossa, não diz que eles tenham conseguido enfrentar a tempestade. Os exemplos de Shelley, de Nerval, de Arnim ilustram, pelo contrário, com impressionante rigor, o conflito que até hoje se tem vindo a agravar, industriando-se o espírito em apresentar o objecto do amor como um ser único quando, na maior parte das vezes, as condições sociais da vida destroem implacavelmente tal ilusão. É daí, a meu ver, que resulta, em grande parte, esse sentimento de maldição que hoje pesa sobre o homem e se exprime, com extrema acuidade, nas obras mais características destes últimos cem anos. »


André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p.9

Prometeu

A lenda procura explicar o inexplicável;
como vem de um fundo de verdade, tem de
acabar por regressar ao inexplicável.

Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviaram águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro, até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso.




Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 89

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A flor da solidão

vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos


Ruy Belo. Obra poética de Ruy Belo.Presença, 1990, vol.2., p.15
«Os peixes negros e dourados das recordações
olhos brilhantes de animais desconhecidos
pequeníssimas flores da memória
relâmpago dourado do olhar»


Ruy Belo. Todos os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004, v.3., p. 211

sobre a formação da parte visual da imaginação literária,

«Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação directa do mundo real , a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.»

Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milénio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 110

Decisões

«Devemos ser capazes de superar facilmente um estado lastimável, ainda que com uma energia forçada. [...]
Por isso, o melhor conselho é aceitar tudo, comportarmo-nos como uma massa pesada e, ainda que nos sintamos impelidos por um vendaval, não ceder à tentação de dar um único passo desnecessário, olhar para os outros com olhos de bicho, não sentir o menor arrependimento, esmagar com as próprias mãos aquilo que ainda resta da vida como um fantasma, ou seja, aumentar ainda o último silêncio, próprio do túmulo, e não aceitar mais nada a não ser ele.
Um gesto característico de um estado de espírito como este é o de passar com o dedo mínimo pelas sobrancelhas.»


Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 39/40
« Um primeiro sinal de que estamos próximos do verdadeiro conhecimento é o desejo de morrer.»


Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 20
A ninguém nesta vida propriamente chamei pai...


Ruy Belo
Debaixo dos meus pés, os mortos confundem-se
com a terra. As pedras metem-se por entre os ossos,
a humidade corrompe os tecidos que os envolvem,
apressa a decomposição dos metais. Esses mortos
ainda falam. No entanto, não os ouço, quando
passo por cima deles, e prefiro distrair-me com as aves
que cantam, com o vento que faz saltar as folhas
do outono. Os meus pés podem, então,
pisá-los; e os meus passos abafam o seu choro, que
também se fonfunde com o murmúrio do vento. Mas
o que ouço, sempre, é esta voz que sai do silêncio
dos mortos. Tenho-a dentro de mim; tento agarrá-la
com os dedos do poema, fixá-la no verso para que
não volte a incomodar-me; e ela foge, mete-se
pelos buracos da terra, esconde-se com as raízes
mais fundas. No entanto, não sei
quem são estes mortos. Limito-me a pisá-los, quando
atravesso os adros, os terreiros, os baldios
de onde fugiram os rebanhos. Como
um pastor de sombras, levo atrás de mim todas
as suas vozes - ou, apenas, a voz única que as minhas
mãos moldam numa paciência de artesão. Já não sei quem
me encomendou este trabalho. Um dia, a mulher
de olhos roxos pediu-me que não a esquecesse; e
desde então colecciono vozes, procuro a memória
do seu seio no barro do inverno, evito pisar
a terra, à noite, quando a sua imagem me aparece
por entre o halo da névoa.

José Tolentino Mendonça .Teoria Geral do Conhecimento, Quetzal. In "Jornal de Letras Artes e Ideias" nº 744 de 7 a 20 de Abril de 1999

CAFÉ/XXII

Bati com o pé no deserto
e não nasceu uma fonte...

Toquei numa rocha
e não se cobriu de açucenas...

Beijei uma árvore
e o enforcado não ressuscitou...

Amaldiçoei a paisagem
e não secaram as raízes...

Digam-me lá: para que diabo serve ser poeta?
(Os santos são mais felizes.)

José Gomes Ferreira

Myrtho

Je pense à toi, Myrtho, divine enchanteresse,
Au Pausilippe altier, de mille feux brillant,
A ton front inondé des clartés d'Orient,
Aux raisins noirs mêlés avec l'or de ta tresse.

C'est dans ta coupe aussi que j'avais bu l'ivresse,
Et dans l'éclair furtif de ton oeil souriant,
Quand aux pieds d'Iacchus on me voyait priant,
Car la Muse m'a fait l'un des fils de la Grèce.

Je sais pourquoi là-bas le volcan s'est rouvert...
C'est qu'hier tu l'avais touché d'un pied agile,
Et de cendres soudain l'horizon s'est couvert.

Depuis qu'un duc normand brisa tes dieux d'argile,
Toujours, sous les rameaux du laurier de Virgile,
Le pâle hortensia s'unit au myrte vert !


Gérard de Nerval
Les Chimères
La Bohême galante
Petits châteaux de Bohême
(1854)

O espelho

O senhor Valéry não era bonito. Mas também não era feio.
Há muito tempo atrás havia decidido trocar os espelhos por quadros de paisagens. Desconhecia, pois, o seu aspecto exterior actual.
O senhor Valéry dizia:

- É preferível assim.

E explicava:

- Se me visse bonito ficaria com medo de perder a beleza; e se me visse feio ficaria com ódio às coisas belas. Assim, não tenho medo nem ódio.

E sem ser bonito nem feio, o senhor Valéry passeava pelas ruas da cidade, olhando, com atenção, para as pessoas com quem se cruzava.
Ele explicava:

- Se me sorrirem percebo que estou bonito, se desviam os olhos percebo que estou feio.
Teorizando dizia ainda:

-A minha beleza é actualizada a cada instante pela cara dos outros.


Por vezes, depois de se cruzar com alguém que desviava os olhos, o senhor Valéry, percebendo, passava a mão pelo seu cabelo, penteando-se ao mesmo tempo que procurava um outro rosto dentro de si próprio, agora mais agradável.
O senhor Valéry comentava, em jeito de conclusão:

- O espelho é para os egoístas.

- E o desenho? - perguntaram-lhe.

- Hoje não há desenho - respondeu o senhor Valéry, e despediu-se logo de todos com um movimento brusco, mas gentil.

As pessoas gostavam do senhor Valéry.



Gonçalo M. Tavares. O Senhor Valéry. Editorial Caminho, Lisboa, 2002., p. 49/50
« - Há dias em que não percebo nada de mim.»


Gonçalo M. Tavares. O Senhor Valéry. Editorial Caminho, Lisboa, 2002., p. 48.

domingo, 6 de junho de 2010

Louis-Ferdinand Céline

“Eu dizia-lhe que queria ser escritor, que tinha 15 anos e ele respondeu-me com uma carta de uma imensa ternura: 'Não tenho fotografia porque não sou actor de cinema. Mas se queres ser escritor vê lá porque depois não podes ir ao cinema, não podes ter namoradas, não podes não sei lá o quê... Porque escrever é uma coisa muito difícil e exige muito tempo, tens de passar a vida agarrado ao livro...'”


António Lobo Antunes, lembrança de uma carta que escreveu a Céline onde lhe pedia uma fotografia, in Ípsilon, Público

Etiquetas e Preferências

Sempre se me afigurou que o traço distintivo da nossa família é o recato. Levamos o pudor a extremos inacreditáveis, tanto na maneira de vestir e comer, como nas palavras, como a subir para o eléctrico. As alcunhas, por exemplo, que no bairro do Pacífico se adjudicam tão afoitamente, são para nós motivo de cuidado, reflexão e até de inquietude. Parece-nos que se não pode atribuir um apodo qualquer a alguém que durante toda a sua vida o deverá absorver e sofrer como um atributo. As senhoras da rua de Humboldt chamam Toto, Coco ou Cacho aos filhos e Nega ou Beba às raparigas, mas na nossa família tal tipo de alcunha não existe, e muito menos outras rebuscadas e espaventosas como Chirola, Cachuzo ou Matagatos, que abundam para os lados de Paraguay e Dodoy Cruz. Como por exemplo do cuidado que temos com estas coisas bastará citar o caso de uma minha tia. Visivelmente dotada de um traseiro de imponentes dimensões, nunca nos permitimos ceder à fácil tentação das alcunhas habituais; assim, em vez de dar-lhe o cognome brutal de Ânfora Etrusca, assentámos no de Cuzuda. Procedemos sempre com igual tacto, embora tenhamos as nossas brigas com vizinhos e amigos que insistem em motes tradicionais. Ao meu primo em segundo grau, o mais novo, notoriamente cabeçudo, sempre recusámos a alcunha de Atlas que lhe tinha sido dada na tasca da esquina e preferimos a infinitamente mais delicada de Mona. E assim por diante.
Quero esclarecer que não fazemos estas coisas para nos diferenciarmos do resto do bairro. Só desejaríamos modificar, gradualmente e sem pretender vexar os sentimentos de ninguém, as rotinas e tradições. Desgosta-nos a vulgaridade em qualquer das suas formas, e basta que algum de nós oiça no café frases como: «Foi uma partida de cariz violento», ou: «As finalizações de Faggioli foram caracterizadas por um notável trabalho de infiltração prévia da linha média», para que imediatamente nos socorramos de expressões mais castiças e aconselháveis ao caso como: «Foi cá um arraial de porrada», ou «Primeiro baratinámo-los e depois foi cá uma goleada». As pessoas olham-nos, surpresas, mas há sempre alguém que aproveita a lição existente nestas frases delicadas. O meu tio mais velho, que lê os escritores argentinos, afirma que com muitos deles se poderia fazer algo parecido, mas nunca nos explicou lá muito bem como. E é pena.


Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p. 33/4

quinta-feira, 3 de junho de 2010

144

Ao lado do meu corpo morto,
minha obra viva.
O dia
de minha vida completa
no nada e no todo
(a flor fechada com a flor aberta);
o dia da alegria de partir,
pela alegria de ficar
(de ficar para partir); o dia
do dormir saboroso, sabendo-o, para sempre,
inefável sono maternal
da casca inútil e do botão seco,
junto ao eterno fruto
e à mariposa infinda!



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 127
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