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terça-feira, 10 de agosto de 2021
quarta-feira, 3 de março de 2021
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai, dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai, dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
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segunda-feira, 1 de maio de 2017
«Nasci quando morreste.»
David Mourão-Ferreira. Obra Poética. 1948-1988. Editorial Presença. p. 55
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« - Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!»
David Mourão-Ferreira. Obra Poética. 1948-1988. Editorial Presença. p. 43
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« (...) , minha mão
divaga, cega, pelos teus cabelos...»
David Mourão-Ferreira. Obra Poética. 1948-1988. Editorial Presença. p. 40
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«Eu vi a eternidade nos teus dedos!»
David Mourão-Ferreira
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« - A tua alma estava à minha espera, aberta...
Repousei no teu corpo e não fui mais além.»
David Mourão-Ferreira
Repousei no teu corpo e não fui mais além.»
David Mourão-Ferreira
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verso solto
«É no búzio dos crânios exumados
Que melhor nós ouvimos o deserto»
David Mourão-Ferreira
Que melhor nós ouvimos o deserto»
David Mourão-Ferreira
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«Será então o Caos/ o Nada / a Grande Amnésia.»
David Mourão-Ferreira
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sexta-feira, 23 de outubro de 2015
"Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
E talvez perdidos."
-"Os Quatro Cantos do Tempo"
- David Mourão- Ferreira
- Guimarães Editora, 1963 (1a edição)
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
E talvez perdidos."
-"Os Quatro Cantos do Tempo"
- David Mourão- Ferreira
- Guimarães Editora, 1963 (1a edição)
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domingo, 12 de julho de 2015
DA DESPEDIDA
"Eu vi a eternidade nos teus dedos.
Eu vi a eternidade, e amedrontou-me
saber, tão de repente, tais segredos.
- Eu não mereci, sequer, saber-te o nome."
David Mourão-Ferreira. A Arte de Amar: antologia 1948-1962. Guimarães Editores, 1967
"Eu vi a eternidade nos teus dedos.
Eu vi a eternidade, e amedrontou-me
saber, tão de repente, tais segredos.
- Eu não mereci, sequer, saber-te o nome."
David Mourão-Ferreira. A Arte de Amar: antologia 1948-1962. Guimarães Editores, 1967
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segunda-feira, 28 de junho de 2010
Romance de Cnossos
Este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
David Mourão-Ferreira. As lições do fogo.,p. 68-70 Obra poética, 1996, pp.305-306.
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
David Mourão-Ferreira. As lições do fogo.,p. 68-70 Obra poética, 1996, pp.305-306.
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domingo, 2 de maio de 2010
excerto do texto: 'Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira)'
« (...)na poesia de Luís Miguel Nava o movimento consiste, exactamente, em aproximar de tal modo o corpo do olhar, que doravante só é possível uma visão parcelar que reduz o todo a imagens fragmentadas. Assim tratado como objecto, o corpo evocado pela escrita despoja-se da sua espiritualidade. O olhar é aqui desfigurador porque irremediavelmente próximo (ou à distância, mas como se estivesse próximo por meio de uma poderosa lente de ampliação). Talvez esta distância tão próxima seja também tão íntima que não se pode ser observador sem se tomar simultaneamente observado. A desfiguração atinge, assim, o sujeito poético e a ferida aberta propaga-se ao espírito, ou talvez aconteça exactamente o contrário: é a desfiguração do espírito que contagia o corpo e se estende à pele.
Em Vulcão podemos ler:
O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…
De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.
Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]
Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:
Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior
e ainda:
graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..
Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele
Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.
No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]
Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]
A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.
Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:
Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…
Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:
Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…
Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:
…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.
Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:
…Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!
O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:
A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.
Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.
Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler
Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..
É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.
Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:
Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…
Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:
…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,
Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:
O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.
E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:
O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,
Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:
ir imitando o céu assim como podia.
No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.
Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.
Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:
pois no teu corpo existe o mundo todo.
Em Vulcão podemos ler:
O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…
De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.
Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]
Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:
Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior
e ainda:
graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..
Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele
Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.
No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]
Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]
A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.
Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:
Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…
Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:
Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…
Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:
…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.
Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:
…Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!
O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:
A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.
Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.
Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler
Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..
É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.
Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:
Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…
Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:
…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,
Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:
O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.
E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:
O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,
Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:
ir imitando o céu assim como podia.
No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.
Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.
Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:
pois no teu corpo existe o mundo todo.
Rosa Alice Branco. Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira) - texto publicado na Agulha,revista de cultura # 38 - fortaleza, são paulo - abril de 2004 .
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