terça-feira, 30 de maio de 2023

As Causas


Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998


Artur Pastor,
Equilíbrio,
Nazaré, Portugal, 1954-1957


 

boçalidade

  « Em dada altura, pareceu-me eminentemente oportuno lançar no charco do despotismo salazarista a pedrada de um estudo dedicado ao erotismo e sátira fescenina, ilustrando antologicamente. O resultado foi uma cómica condenação que, do alto do Plenário, pretendia avassalar-me, mas que proporcionou jocosa oportunidade de dar razão a Nietzsche, quando ele compara os juízes com camelos.»

Natália CorreiaAntologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. 

introito

A defesa do poeta


Senhores jurados sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.



Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.



Sou em código o azul de todos

( curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.



Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.



Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.



Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

sou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis.



Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.



Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs por ordem?

Que favor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?



Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.



Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de perdão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.



Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.





Natália Correia




"A defesa do poeta", Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pág. 330 e seg. (nota em rodapé: "Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a a sentença."


 

 


verbo transitivo
1.
imputar aleivosamente
2.
caluniar

inocuidade



A luz se torna vinho. A noite está em pedaços. A voz, a voz alada, a asa da voz. A luz que geme na escuridão. O vento que geme. A desconhecida, a desolada segurança de um vento vindo desta voz que me chama chama em mim, me inspira, me expira, me insufla, insuficientemente.

 “Todo pasa. Nadie tiene algo para siempre. Así es como tenemos que vivir”.

Haruki Murakami

domingo, 28 de maio de 2023

Astrud Gilberto - A Felicidade

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar.

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira.

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor.

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo por favor...
Pra que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor.

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...



 Calhau, S. Vicente, Cabo Verde, 2017 João Ferreira

 «BILLING: Mas então não poderá participar nas eleições para o novo Intendente.

CAPITÃO HORSTER: Vai haver novas eleições?

BILLING: Não sabia?

CAPITÃO HORSTER: Não. Não me meto nessas coisas.

BILLING: Mas o Sr. preocupa-se com as questões públicas, ou não?

CAPITÃO HORSTER: Não, não entendo nada disso.

BILLING: Ainda assim, é preciso votar, ao menos.

CAPITÃO HORSTER: Mesmo aqueles que não entendem nada do que se trata?

BILLING: Não entendem? O que quer dizer com isso? A sociedade é como um navio; todos devem segurar o leme.

CAPITÃO HORSTER: É possível que isso funcione em em terra firme. A bordo, o resultado não seria bom.

HOVSTAD: É estranho como tantos marítimos se importam tão pouco com as questões do país.

BILLING: Muito estranho.»

Henrik Ibsen. Um inimigo do povo. Peças Escolhidas. Volume 3. 1ª Edição, Outubro, 2008., p. 24

 « O INTENDENTE: Pelo menos, tens uma tendência permanente para seguires pelos teus próprios caminhos. E, numa sociedade bem organizada, isso é inadmissível. Cabe ao indivíduo submeter-se ao todo, ou, melhor dizendo, submeter-se às autoridades que têm por missão assegurar o bem comum.»

Henrik Ibsen. Um inimigo do povo. Peças Escolhidas. Volume 3. 1ª Edição, Outubro, 2008., p. 22

fuçar

 «El amor perfecto es una amistad con momentos eróticos»

Antonio Gala

Burocratas


 Berenice Abbott, Hands of Jean Cocteau, 1927

Tradição do barro preto de Bisalhães

 BISALHÃES - A aldeia do barro preto.

''Chegou a ter mais de 60 artesãos, todos oleiros que, em conjunto com as suas famílias, ajudaram a elevar a principal tradição da aldeia a Património Cultural Imaterial da Humanidade UNESCO. Hoje contam-se pelos dedos das mãos, e são cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo para cozer a louça. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.''

"The Saving Bitterness of Nostalgia"


I need the viewer to have a sense of the beautiful Earth. So that, having plunged into the fantastic atmosphere of Solaris unknown to him, he suddenly, having returned to Earth, found the opportunity to breathe habitually, so that he would feel achingly easy from this familiarity. In a word, so that the viewer feels the saving bitterness of nostalgia. Kelvin decides to stay on Solaris. This is where I need the Earth, so that the viewer more fully, deeper, more acutely experienced all the drama of the hero’s refusal to return to the planet, which was and is our ancestral home.
Andrei Tarkovsky. Interview with Olga Surkova

 “Pensar, pensamos todos. Não só os humanos mas, segundo os antropólogos, todos os seres viventes. Pensar é ser um eco do que o Cosmos tem para nos dizer. É saber o que somos como tempo passado, como História; termos uma imagem mais ou menos objectiva do nosso percurso — o que é absolutamente inviável, mas uma pretensão como outra qualquer. Pensar é um diálogo que temos connosco próprios. E é sempre qualquer coisa que acontece em função de um espectador possível, mesmo que não tenhamos pensado ou escrito com o propósito de ter uma escuta, como acontece com estas notas [o livro “Da Pintura”, ed. Gradiva, 2017].”

.
Eduardo Lourenço (São Pedro de Rio Seco, Almeida, 23 de Maio de 1923 — Lisboa, 1 de Dezembro de 2020), pensador, professor, ensaísta, em entrevista ao semanário Expresso, de 2.7.2017.

uniqueness

sexta-feira, 26 de maio de 2023

 


adjetivo
que desperdiça ou gasta em excessogastadoresbanjador
nome masculino
aquele que desperdiça ou que gasta em excesso

 «As melhores coisas, e as mais significativas, que Ibsen nos deu são o impulso no sentido da verdade num tempo artisticamente inverdadeiro; o impulso no sentido da seriedade num tempo artisticamente superficial; o deleite da agitação num tempo de estagnação; e a coragem de agarrar o que quer que contenha em si qualquer coisa de humano, onde quer que cresça.»


Alfred Kerr

quinta-feira, 25 de maio de 2023

terça-feira, 23 de maio de 2023

''granada literária''

 «Traduzido por miúdos: daquelas mesmas pessoas que se proclamam mais avançadas (em política, em religião, em costumes) é que tenho ouvido as censuras mais ásperas à Antologia. Percebe-se: cautelosos por espírito de conservação, ficam cheios de raiva perante qualquer gesto mais ousado. Confirma-se [...] quanto mais progressistas, mais sacripantas em questões que bulam o sexo.» Luiz Pacheco

in Natália CorreiaAntologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. 


Graciela Iturbide

 

 ''Os inimigos não nos poupam, os amigos não nos acautelam.''

 [...] Afetuosamente seu

Eugénio de Andrade

 in Natália CorreiaAntologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

«Não será uma incursão ao inferno - só os católicos têm tal especialidade - mas antes a exaltação do que a terra tem de mais puro.» Eugénio de Andrade

 in Natália CorreiaAntologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

larachas

''crivo censório''

''tendências sartreanas''

Amoreamaro


 

 Natália Correia tirou, com O Homúnculo, o sono ao dita-

dor. Foi uma das obras contra si que mais o perturbaram.

A energia, a escrita, a profundidade, a irreverência da

autora impressionaram-no profundamente.

 Quando a PIDE lhe foi comunicar a prisão da poetisa

e a apreensão da obra, respondeu: «Retirem o livro, sim,

mas não toquem nela. É uma mulher muito, muitíssimo

inteligente.


Fernando Dacosta

''Ao rol das proibições censórias''

 Natália Correia. Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

 ''Dão-nos um cravo preso à cabeça

E uma cabeça presa à cintura

Para que o corpo não pareça

A forma da alma que o procura.''

Natália Correia

 VERSOS ESCARLARES, RISOS AMARELOS

E LÁPIS AZUIS:

CRÓNICA DE UM LIVRO PROIBIDO


Natália Correia. Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

domingo, 21 de maio de 2023


 “El rapto (The Abduction), Juchitán, México,” 1986.Photographs by Graciela Iturbide

Ana Lua Caiano - Se Dançar É Só Depois


Se dançar é só depois Para já, já estou morta Morta para ir dormir Dormir p’ra amanhã voltar Voltar a acordar Com ideias mal cozidas Mal cozidas p’ra empratar Numa folha de papel Ai, ai, ai eu Acordei feita num oito Dormi com os pés no chão Para ser mais fácil levantar Ai, ai, ai eu Nunca cortes meus delírios Quero esquecer minha farda P’ra não ir mais trabalhar Ai, meu amor, Quando nós vivermos juntos Ai, meu amor, Quando o quarto for p’ra dois Ai, espera-me à noite, amor, Espera-me à noite De dia nunca tenho Tempo p’ra dançar E se dançar tem que ser Devagarinho E se dançar tem que ser Bem devagar Ai, porque o meu corpo, amor, E o teu corpo Nossos corpos Já só sabem maquinar Se dançar é só depois Para já, já estou morta Morta para ir dormir Dormir p’ra amanhã voltar Voltar a acordar Com ideias mal cozidas Mal cozidas p’ra empratar Numa folha de papel Ai, ai, ai eu Ai, a sorte não me encontra Pensa que já estou morta Guarda meu ouro p’ra outro Ai, ai, ai eu Os meus pés acordam frios Minhas mãos a encolher A sorte não dá de comer Ai, meu amor, Se conseguirmos viver juntos Ai, meu amor, Se o meu quarto aumentar Ai, espera-me à noite, amor, Espera-me à noite Continuo sem ter Tempo p’ra dançar Se dançar é só depois Para já, já estou morta Morta para ir dormir Dormir p’ra amanhã voltar Voltar a acordar Com ideias mal cozidas Mal cozidas p’ra empratar Numa folha de papel Ai, ai, ai eu Acordei feita num oito Dormi com os pés no chão P’ra ser mais fácil levantar Ai, ai, ai eu Nunca cortes meus delírios Quero esquecer minha farda P’ra não ir mais trabalhar Ai, ai, ai eu Acordei feita num oito Dormi com os pés no chão P’ra ser mais fácil levantar Ai, ai, ai eu Nunca cortes meus delírios Quero esquecer minha farda Quero ir mas é dançar
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