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domingo, 12 de novembro de 2023

'' a luz mordendo a água''

 «Voltam-se as paisagens como as páginas.»

''o poço da alegria''

 «Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono, o dia decompõe-se, o sangue explode contra a claridade.»

''imperturbáveis muros''

domingo, 19 de julho de 2020

UM CÉU DE FUNCIONÁRIOS


Inimigo Rumor. Luís Miguel Nava. Livros Cotovia., p. 137

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

“Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto [...]. As raízes entram-lhe no sangue [...], não tarda que penetrem pela terra a cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhes os olhos – as visões ascendem tumultuosamente, como seiva a ferver”

Luís Miguel Nava

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A respeito de alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge


Luís Miguel Nava (1989:58)  “o corpo [se] insinua, com as suas pulsões, o seu desejo, os seus espaços intersticiais onde o sentido é curtocircuitado”, num registo em que a “violência erótica” desfoca ou perturba, como uma lupa, “a imagem que temos do real”.


NAVA, Luís Miguel, 1989, “Acme a ser arte: alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge, in Colóquio/Letras, nº 108, Março/Abril.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Estacas

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha
caminhado em cima dela, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol
que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto, onde
o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe,
ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o
resto logo se veria.




Luís Miguel Nava. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 160

University Parks

Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.

Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.

Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.

O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem as raízes enterradas.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 155

Crepúsculo

Ao sol começa a faltar a lenha, a rua
por onde eu agora sigo
vai só onde a memória a conseguir abrir.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 140

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Poema Inicial

Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 133

Até à infância

Tive hoje, olhando o céu pela janela do meu quarto, a sensação de que ele se me entranhava até à infância. Nunca supus que em mim houvesse uma profundidade capaz de absorver uma tão extensa superfície azul, a qual vertiginosamente refluía por mim dentro, iluminando espaços de cuja existência eu nem sequer desconfiava. O certo é que, ao atingir maior profundidade, a cor se lhe alterou sensivelmente, embora a natureza dessa mutação não fosse propriamente de ordem física. Foi como se ao chegar a esse ponto, tendo a bomba da memória começado a trabalhar, a luz que sobre ele este mecanismo vomitava lhe alterasse a própria consciência e furiosamente arrancasse ao coração da terra aquele que, a um ritmo idêntico, eu sentia acelerar-se-me entre os ossos.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 107

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 104

A Memória

Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual -completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97

Basalto

Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 91

Apenas a folhagem

De novo o encontro onde as linguagens abrem umas sobre as outras, o rapaz. Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto, o que me põe a braços com as palavras. As raízes entram-lhe no sangue, abrem-lhe internos focos de paixão, não tarda que penetrem pela terra e cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhe os olhos - as visões ascendem tumultuosamente, como seiva a ferver, creio que por vezes trazem pedra misturada. Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado pela força da folhagem.



Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 50

ARS POETICA

O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 44.

O Tanque de Bashô

O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de
Bashô.
A água maravilha-se.

Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono,
o dia decompõe-se, o sangue explode contra a claridade.

Um nó de leite a nudez cresce pela água.


Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 40

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O mar é uma das referências mais constantes do universo lírico de Luís Miguel Nava. O mar e todos os elementos que naturalmente lhe estão associados: ondas, rebentação, falésias, etc.

À volta do campo semântico gerado pelo mar, gravitam dois temas essenciais: a infância e o amor. Logo no poema inaugural de Películas se pode ler “… isto explode e entra/nesta página o mar da minha infância, meigo/no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender um texto na memória”.Numa poesia tão ostensivamente corporal, o mar também entra no corpo e mistura-se com ele. O mar ora é objecto motor que arrasta consigo, deflagrando, os lugares e as presenças mais impressivas da infância, ora é objecto movido. Em qualquer dos casos, é o mar uma força inexpugnável: “…às vezes extravio-me, ao enfiar pela memória/as ondas saem-me ao caminho”, ou “..o mar de que deflagram/as ondas por acção da memória”. A estreita relação existente entre o mar e as recordações parece ser bem clara, pois “..disponho alguns retratos junto ao mar, o mar/rebenta-lhes em cima e atravessa-os, fica dentro/deles”. É ainda a energia do mar que traz consigo a figura da mãe, e também, embora com muito menos força, a figura do pai, duas das presenças mais relacionadas com a infância.

Como representação da pele, o mar conduz-nos ao domínio dos afectos.


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas, p. 129
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