terça-feira, 8 de junho de 2010

O abutre

Era um abutre, e dava-me bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias, e agora dava-me já bicadas nos pés propriamente ditos. Picava e voltava a picar, depois voava várias vezes, inquieto, à minha volta, e continuava o seu trabalho. Passou por ali um senhor, ficou um momento parado a olhar, e depois perguntou-me por que razão eu me não defendia do abutre. «Mas, eu não me posso defender», disse eu. « Ele chegou e começou a dar bicadas, é claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um bicho destes tem muita força; e depois já me queria saltar para a cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora já estão quase desfeitos». «Não percebo porque se deixa torturar assim», disse o homem, «basta um tiro para acabar com o abutre». «Ah, é?», perguntei eu. «E o senhor não podia tratar disso?» «Com muito gosto», disse ele. «Só preciso de ir a casa buscar a espingarda. É capaz de esperar uma meia hora?» «Não sei», disse eu, e fiquei por um instante hirto de dor. E depois pedi: «Mas tente de qualquer modo, por favor». «Está bem», disse o senhor, «vou o mais depressa que puder». O abutre tinha ficado calmamente a ouvir a conversa, olhando, ora para mim, ora para o senhor. Agora apercebi-me de que ele tinha compreendido tudo. Levantou voo, inclinou-se muito para trás para tomar balanço suficiente e depois, como um lançador de dardo, enfiou o bico pela minha boca e por mim adentro. Caído de costas, senti, agora liberto, como ele irremediavelmente se afogava no meu sangue, que enchia todas as profundezas e alagava todas as margens.



Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 104

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