segunda-feira, 19 de julho de 2010

«Tenho notado muitas vezes que possuímos tendência para dotar os nossos amigos com a estabilidade de tipo que as personagens literárias adquirem na mente do leitor. Por muitas vezes que reabramos o Rei Lear, jamais encontraremos o bom rei a emborcar a caneca de cerveja, numa grande farra, esquecidos todos os infortúnios, numa alegre reunião com todas as três filhas e os seus cãezinhos de regaço. (...)Sejam quais forem as evoluções por que passou esta ou aquela personagem popular entre as páginas de um livro, o seu destino está fixado no nosso espírito. Similarmente, esperamos que os nossos amigos sigam este ou aquele rumo convencional e lógico que para ele determinámos. (...)E jamais nos atraiçoará, sejam quais forem as circunstâncias. Temos tudo isso bem arrumadinho no nosso espírito, e quanto menos vemos determinada pessoa mais nos compraz verificar, sempre que dela temos notícias, como respeita obedientemente a ideia que fazemos a seu respeito. Qualquer desvio do destino que fixámos parece-nos não só anómalo, mas também contrário à ética. Preferíamos não ter conhecido o nosso vizinho, vendedor reformado de cachorros quentes, se vimos a saber que acaba de publicar o melhor livro de poesia do século.»


Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.275

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