terça-feira, 4 de março de 2025
Poema de Carnaval
domingo, 3 de dezembro de 2023
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Ruy Belo
Muriel - Ruy Belo
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, Todos os Poemas
domingo, 5 de fevereiro de 2023
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava […]
“Muriel”, de Ruy Belo
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
A tua voz edifica-me sílaba a sílaba
e é árvore desde as raízes aos ramos
Cantas em mim a primavera breve tempo
e depois os pássaros irão
povoar de ti novas solidões
E eu sentirei na fronte permanentemente
o sudário levemente branco do teu grande silêncio
ó canção ó país ó cidade sonhada
dominicalmente aberta ao mar que por fim pousas
na fímbria desta tua superfície.
Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
segunda-feira, 28 de setembro de 2020
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
domingo, 13 de setembro de 2020
sábado, 29 de agosto de 2020
« O livro, atenta a natureza da necessidade que visa satisfazer, é um bem complexo. Por se destinar a ser consumido pelo pensamento, não pode considerar-se uma simples mercadoria.»
Obra Poética de Ruy Belo. Volume 3. Organização e Notas de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Editorial Presença. , p. 41.
«Mas o que representa hoje a poesia? Só num mundo em que toda a gente soubesse ler e tivesse lido os livros que eu li e como os li na altura em que os li.»
Obra Poética de Ruy Belo. Volume 3. Organização e Notas de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Editorial Presença., p. 33
«Deixei de dormir sem tranquilizantes e barbitúricos. Já lá vão quase dez anos. Não sei se voltarei a aprender a dormir. É tão bom dormir. A paz dos mortos. Sabe? Assim, sou um sobrevivente. Morri aí pelos trinta e dois ou trinta e três. Como Cesário ou Nobre. Mas tendo falhado.»
Obra Poética de Ruy Belo. Volume 3. Organização e Notas de Joaquim Manuel Magalhães e Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Editorial Presença., p. 32domingo, 2 de fevereiro de 2020
Ruy Belo na morte de Marylin Monroe
Morreu a 5 de Agosto de 1962.
Tinha apenas 36 anos.
Na Morte de Marilyn
Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher.
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia.
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher.
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar.
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar.
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão.
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito.
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes.
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.
Ruy Belo,
Transporte no Tempo.