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domingo, 15 de dezembro de 2024

ALÇAPÃO

 O tempo é um alçapão mas não te fies
o que omites acaba por ressurgir
como intruso escava uma saída
rasteja por vias desconhecidas
na distância do que pensavas perdido
e chega a tua casa antes de ti


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 456

TRISTEZA

 Nas noites lentas que nos fazem guerra
não há pensamento que possa mudar
a tristeza, essa música minúscula
nem precisamos morrer para nos sentirmos mortos
quando a sua cabeleira varre a terra
e nos recolhe como flores
de uma coroa deposta

rogamos à vida que responda
mas a vida só se expressa na agulha dos fogos
em línguas desconhecidas
no soprar ora longínquo
ora próximo do vento

e quando abrimos a garganta
em busca de um fio de voz
ela tornou-se inaudível
como se jamais nos tivesse pertencido

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 455

CRONOMETRIAS

 Nos dias de Heródoto usavam-se
modos mais exactos de medir o tempo
o gotejar da água para a ânfora
o escorrer da areia, grão a grão
a viagem da sombra, como se não fosse

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 449

PARTIR SEM CHEGAR

 Precisarás de tempo para alcançar a margem
o ramo do tamarindo onde te espera
o assobio do barqueiro
não é o primeiro
deverás tactear a escuridão da folhagem
e enganares-te tantas vezes
que te convenças que não sabes

estreita é a corrente invisível que nos conduz 
por corredores, registos, águas em queda
àquele momento talvez involuntário
onde palavra dita e palavra calada 
se tocam


 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 441

sábado, 23 de novembro de 2024

ADÍLIA LOPES

 Chamo-me Adília Lopes
sou a casa-insecto
a mulher-osga
uma colher transformada em faca 
para minúsculos riscos
sou uma constante cosmológica
de acelerar galáxias
um telegrama sinfónico
na ausência de tudo

sou a verdade que prefere não sair 
do bairro

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 278

domingo, 10 de novembro de 2024

UMA VELA ACESA

 Onde nada ameaça
sobrevém inesperado o temor:
um coração desce
à morada de outro coração



José Tolentino Mendonça.
 A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 152

CALLE PRINCIPE, 25

 Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos 
a esquecer alguém 
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 102

FOGUEIRAS E GELOS

 Contra o coração
abraçava ramos de flores magras e azuis
sentimentos muito triviais
e por vezes a maior escuridão

Perseguia sem cessar certos gestos
que na paz
seriam seus 

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 85

sábado, 26 de outubro de 2024

OS INCÊNDIOS

 Não devidas empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas

a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma

não despertes o que não podes calar

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 39

terça-feira, 15 de outubro de 2024

 Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais 
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.


Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).

domingo, 29 de setembro de 2024

POEMA À MÃE

 No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.


Eugénio de Andrade, ''Os Amantes sem Dinheiro

Um Adeus Português





Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

domingo, 22 de setembro de 2024

A meu favor

A meu favor
tenho o verde secreto dos teus olhos
algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
as paredes que insultam devagar
certo refúgio acima do murmúrio
que da vida corrente teime em vir
o barco escondido pela folhagem
o jardim onde a aventura recomeça.

sábado, 21 de setembro de 2024

O DESEMBARQUE DAS ONDAS

 Imparável sede:
onda sobre onda
(


esta amortalhando a anterior.
).
o mar é um enterro.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 47

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Auberge Ravoux

 
A tristeza vai durar para sempre.

Do crocitar dos corvos sobre os campos
Abre-se um abismo sem fim.

Ó estrelas de prata
Estrelas do anseio pela liberdade
Como passou o vosso jovem sopro!

Caio na noite sem fim
Longe do sol que fez de mim um girassol enlouquecido.
A tristeza vai durar para sempre.



Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 66

SOLIDÃO


É o panorama duma cidade
O casario mudo sob um céu abrasado.
São duas linguagens emaranhadas
Que não se desentrançam
Um toque que não aflora
Numa coxa querida.

Aqui do alto
Como são minúsculos os corpos
Vãos os laivos de vida
Que se desenham no
Labirinto do espanto.
Perfilam-se as memórias
Na superfície diáfana dos olhos
E as cidades baralham-se
Desabam, reerguem-se
À sombra da inquietude
E da inconsciência humana.

A solidão é a geografia desesperada
De um mundo sem língua.


Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 54

A CADELA ROMENA

 Conheci-a numa bomba de gasolina
Na margem do Danúbio
Num dia de beleza e desolação.
Correu ao meu encontro plena de ternura
Com os olhos alumiados de pureza.
Parti piedoso, triste, furioso
Com a imagem da pobreza
À flor dos olhos:
A cadela sarnenta
Com as tetas túmidas da solidão.

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 27

sábado, 17 de agosto de 2024

NO FUNDO

 No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.


Amalia Bautista (Trad. Inês Dias) in Conta-mo outra vez. Ed. Averno, 2020.

 tinha cinco minutos diários de paz terrena,
depois quatro,
depois três,
depois dois,
depois um,
depois não nunca nada,
depois era: dêem-me um tiro na cabeça
para nunca nunca um só número,
todos os números,
qualquer número


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 29

A QUE ESPERA

 A tristeza sentou-se à minha porta
mas eu não a alimentei.

Cão de guarda por cão de guarda
prefiro a alegria.

A ela entrego os meus dias
e o abraço daquele que vem de longe
para me dizer que o amor que foi ontem
ainda é hoje.


Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 38
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