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terça-feira, 15 de outubro de 2024

 Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais 
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.


Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).

domingo, 5 de junho de 2016

OS MORTOS
Os mortos vão, dentro do carro preto
incrustado a fúnebre ouro, no passo
lento dos cavalos: e muitas vezes
toca para eles a banda.
Ao passarem, as mulheres apressam-se
a fechar as janelas de casa,
as lojas fecham-se: apenas uma fresta
para observar a dor dos familiares,
o número dos amigos que vão atrás,
a categoria do carro, as coroas.
Os mortos vão-se assim, na minha terra;
janelas e portas fechadas, a implorar-lhes
que sigam caminho, que esqueçam
as mulheres atarefadas nas casas,
o comerciante que pesa e rouba,
a criança que brinca e odeia,
os olhos vivos que fervilham
por trás do logro das portadas fechadas.
Leonardo Sciascia
(tradução de Vasco Gato)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

"Perdoas o medo como
quem se abstrai de uma agulha.
O soro flui pelos teus olhos
fechados,
ainda que reluzam,
absorve-se no teu sangue como
um panfleto siciliano,
não viste,
não ouviste,
sanaste dentro de ti o cancro
que lentamente te soprará - dente de leão -
os cabelos."

-"A Fábrica"
- Vasco Gato

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

SE QUISER UM TONTO SABER


Há um ar transparente, com remoto odor a pólvora e mansões de vidro e ferro e uma foto parada à porta;
E há uma viela por onde se desemboca na manhã do primeiro domingo da cidade perdida,
E um parque de árvores altas, com assentos à sombra e uma enorme fonte
Onde os miúdos deitam barcos esperançosos sem saberem que os olha de longe a tristeza;
E há uma ilha frente ao mar, com um hotel e um leito e dois jovens nus ao meio-dia azul que banha os mármores antigos;
E há um bosque vermelho, roxo, dourado,
Que daqui a nada vai ser completamente coberto pela neve
(A neve vista pela primeira vez através dos vidros da janela naquela noite de Outubro),
Onde também está o meu coração.


Roberto Fernández Retamar
(tradução de Vasco Gato)

domingo, 6 de setembro de 2015

"Sobre o teu corpo nu deixo cair agora, cuidadosamente, uma rosa de pólvora- Suplico-te em surdina, não te mexas, como para te esculpir na pedra do eterno. Porém um braço teu me alcança, censurando-me o gesto, soltando no espaço a lindíssima flor expansiva."

-"A Prisão e Paixão de Egon Schiele"
- Vasco Gato

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A JANELA
tu és o meu pão
e o ruído
imperceptível
dos meus ossos
és quase
o mar
não és pedra
nem som fundido
julgo
que não tens mãos
esta espécie de ave voa para trás
e este amor
parte-se numa vidraça
onde nenhuma luz fala
não é altura
de cruzar línguas
(a areia aqui
nunca se altera)
acho que
o amanhã
te virou com
a ponta do pé
e que irás
ficar
a brilhar
inexaurível e clandestino

Diane di Prima 
(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

«Dentro do sonho disseste:
Beijemo-nos então,
Neste quarto, nesta cama,
Mas quando tudo terminar
Não voltaremos a ver-nos.

Ao ouvir estas últimas palavras,
Não havia parição nocturna de ovelhas,
Pássaro levado pela ventania
Nem raiz cingida pela geada
Tão frios como o meu coração.»


Philip Larkin
(tradução de Vasco Gato)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

A CASA ESTÁ TÃO TRISTE
A casa está tão triste. Permanece tal como a deixaram,
Feita ao conforto dos últimos que partiram
Como se para os reconquistar. Ao invés, privada
De alguém a quem agradar, definha assim,
Sem ânimo para esquecer o roubo
E voltar-se novamente para o que começou
Como uma jubilosa tentativa de como tudo deveria ser,
Há muito falhada. Pode-se ver como era:
Repare-se nas fotografias e nos talheres
A música no banco do piano. Aquela jarra.


Philip Larkin 
(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

«Não brinquemos. O coração humano tem dois grandes machados: um é capaz de desbastar a ignorância e os equívocos do ódio; o outro é capaz de mutilar e aniquilar os seus semelhantes por um altar de si mesmo. Cabe às comunidades elegerem os seus símbolos, a sua ética. Que machado empunhar?»

Vasco Gato

sábado, 30 de maio de 2015

Junto à pedra,
a sombra inventada da noite.


Vasco Gato

quarta-feira, 18 de março de 2015

IMENSIDÃO DA NOITE


A meio da noite surge por vezes
uma pergunta, e a noite agiganta-se,
e é imensa a noite até à angústia.
Como um barco sem luzes, silencioso,
assim sulca o nosso quarto tanta sombra
que parece sem limites o mundo.
Rodeia-nos o vazio, é água escura
mais densa ainda do que o sangue. Nada se ouve,
apenas um chapinhar de fundo lodo
lá no mais profundo dessa água:
é o nosso coração. Mas a noite
não cessa de crescer e é já um olho
de insuportável nudez que fita
o nosso terror. E essa é a pergunta,
e a noite sabe-o e olha então
(só às vezes) o desamparado ser
que somos, com ternura, e o sono regressa.
E a infinita gruta que é o universo
novamente resplandece.

Abelardo Linares

(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

HÃO-DE DIZER
Da minha cidade o pior que os homens hão-de dizer é o seguinte:
Afastaste as criancinhas do sol e do orvalho,
E dos reflexos que sob o vasto céu se insinuavam na erva,
E da chuva temerária; puseste-as entre paredes
A trabalhar, abatidas e asfixiadas, em troca de pão e salários,
A comer pó pela garganta e a morrer de coração vazio
Por uns trocos de ordenado nalgumas, poucas, noites de sábado.


Carl Sandburg
(tradução de Vasco Gato)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A CULPA É NOSSA
Talvez tenha sido uma hecatombe de esperanças
um desabamento de certa forma previsto
ah mas a minha tristeza só teve um sentido
todas as minhas intuições acorreram
para me ver sofrer
e viram-me aliás
até aqui tinha feito e refeito
os meus trajectos contigo
até aqui tinha apostado
em inventar a verdade
mas tu arranjaste maneira
uma maneira terna
e ao mesmo tempo implacável
de frustrar o meu amor
com um simples prognóstico eliminaste-o
dos subúrbios da tua vida possível
envolveste-o em nostalgias
levaste-o por quarteirões e quarteirões
e devagar
sem que o ar nocturno reparasse nisso
deixaste-o para aí
a sós com a sua sorte
que não é muita
acho que tens razão
a culpa é nossa quando não nos apaixonamos
e não dos pretextos
nem do tempo
há muito muitíssimo tempo
que eu não me enfrentava
como esta noite ao espelho
e foi implacável como tu
mas não foi terno
agora estou só
francamente
custa sempre um bocadinho
começarmos a sentir-nos desgraçados
antes de regressar
ao meu acampamento de inverno
com os olhos bem secos
por via das dúvidas
observo como te vais embrenhando na névoa
e começo a recordar-te.

Mario Benedetti

(tradução de Vasco Gato)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O SUSPIRO
Estás deitado na tua cama e suspiras,
e as molas enterradas no colchão
bradam na mesma nota grave,
escarnecendo da tua tristeza. É duro –
não o colchão, mas viver.
Viver é duro. Sempre
achaste que podias confiar na
tua própria cama, na tua própria dor.
Achavas que dormias sozinho.

Ted Kooser

(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

PORMENOR
A casa de pedra em ruínas
tem uma velha macieira
lá deixada pelo agricultor
que levou tudo o mais
Dá fruto todos os anos
frenética e bichenta
com maçãzinhas amargas
que ninguém come
até as crianças já sabem
Durante todo o Inverno
passei por ali a caminho de
Trenton duas vezes por mês
reparando nas maçãs penduradas
apesar dos ventos tempestuosos
por vezes com barretes de neve
pequenas campânulas douradas
É possível que nenhum dos outros
viajantes tenha olhado nessa direcção
mas não vou fazer nenhuma parábola com eles
estiveram lá e nada mais
Inexplicavelmente dou por mim a recordar
e a pensar nessa árvore sem folhas
e nos seus frutos fermentados
numa semana para os finais de Janeiro
em que o vento derrubava o sol
e a terra tremia como um quarto frio
onde ninguém seria capaz de viver
entre temperaturas negativas
mudas campânulas douradas
sozinhas na tempestade

Al Purdy

(tradução de Vasco Gato)
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