Mostrar mensagens com a etiqueta tradução. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta tradução. Mostrar todas as mensagens

domingo, 30 de agosto de 2015

[um poema de LEÓN FELIPE]
UIVOS
Passam os dias e os anos, a vida corre
e a gente não sabe por que vive...
Passam os dias e os anos, a morte chega
e a gente não sabe por que morre.
E um dia o homem põe-se a chorar sem mais nem menos,
sem saber por que chora...
e o que significa uma lágrima.
E tão-pouco alguém por si o sabe.
E quando mais tarde a gente abala para sempre,
sem saber quem é
nem o que veio cá fazer...
pensa que talvez tenha vindo apenas chorar
e uivar como um cão...
pelo cão de ontem que se foi,
pelo cão de amanhã que virá
e partirá também sem saber para onde
e por todos os pobres cães mortos do mundo.
Porque: não é o homem um pobre cão perdido e solitário sem dono e sem domicilio conhecido?...
E não pode o Homem chorar e uivar no Vento
sem mais nem menos... porque sim
como uiva o mar... Por que uiva o mar?
Senhor Arcipreste... por que uiva o mar?

(in 'O Sapateiro de Van Gogh', tradução de Rui Caeiro, &etc, 1993 - original de 'El Ciervo y otros poemas', 1982)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A JANELA
tu és o meu pão
e o ruído
imperceptível
dos meus ossos
és quase
o mar
não és pedra
nem som fundido
julgo
que não tens mãos
esta espécie de ave voa para trás
e este amor
parte-se numa vidraça
onde nenhuma luz fala
não é altura
de cruzar línguas
(a areia aqui
nunca se altera)
acho que
o amanhã
te virou com
a ponta do pé
e que irás
ficar
a brilhar
inexaurível e clandestino

Diane di Prima 
(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

«Dentro do sonho disseste:
Beijemo-nos então,
Neste quarto, nesta cama,
Mas quando tudo terminar
Não voltaremos a ver-nos.

Ao ouvir estas últimas palavras,
Não havia parição nocturna de ovelhas,
Pássaro levado pela ventania
Nem raiz cingida pela geada
Tão frios como o meu coração.»


Philip Larkin
(tradução de Vasco Gato)

quarta-feira, 18 de março de 2015

IMENSIDÃO DA NOITE


A meio da noite surge por vezes
uma pergunta, e a noite agiganta-se,
e é imensa a noite até à angústia.
Como um barco sem luzes, silencioso,
assim sulca o nosso quarto tanta sombra
que parece sem limites o mundo.
Rodeia-nos o vazio, é água escura
mais densa ainda do que o sangue. Nada se ouve,
apenas um chapinhar de fundo lodo
lá no mais profundo dessa água:
é o nosso coração. Mas a noite
não cessa de crescer e é já um olho
de insuportável nudez que fita
o nosso terror. E essa é a pergunta,
e a noite sabe-o e olha então
(só às vezes) o desamparado ser
que somos, com ternura, e o sono regressa.
E a infinita gruta que é o universo
novamente resplandece.

Abelardo Linares

(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

HÃO-DE DIZER
Da minha cidade o pior que os homens hão-de dizer é o seguinte:
Afastaste as criancinhas do sol e do orvalho,
E dos reflexos que sob o vasto céu se insinuavam na erva,
E da chuva temerária; puseste-as entre paredes
A trabalhar, abatidas e asfixiadas, em troca de pão e salários,
A comer pó pela garganta e a morrer de coração vazio
Por uns trocos de ordenado nalgumas, poucas, noites de sábado.


Carl Sandburg
(tradução de Vasco Gato)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

PORMENOR
A casa de pedra em ruínas
tem uma velha macieira
lá deixada pelo agricultor
que levou tudo o mais
Dá fruto todos os anos
frenética e bichenta
com maçãzinhas amargas
que ninguém come
até as crianças já sabem
Durante todo o Inverno
passei por ali a caminho de
Trenton duas vezes por mês
reparando nas maçãs penduradas
apesar dos ventos tempestuosos
por vezes com barretes de neve
pequenas campânulas douradas
É possível que nenhum dos outros
viajantes tenha olhado nessa direcção
mas não vou fazer nenhuma parábola com eles
estiveram lá e nada mais
Inexplicavelmente dou por mim a recordar
e a pensar nessa árvore sem folhas
e nos seus frutos fermentados
numa semana para os finais de Janeiro
em que o vento derrubava o sol
e a terra tremia como um quarto frio
onde ninguém seria capaz de viver
entre temperaturas negativas
mudas campânulas douradas
sozinhas na tempestade

Al Purdy

(tradução de Vasco Gato)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Israfel

Israfel (Edgar Poe)

In Heaven a spirit doth dwell
"Whose heart-strings are a lute;"
None sing so wildly well
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tell)
Ceasing their hymns, attend the spell
Of his voice, all mute. [...]




Israfel (Mallarmé)

Dans le ciel habite un esprit "dont les
fibres du coeur font un luth". Nul ne chante
si étrangement bien – que l'ange Israfel, et
les étoiles irrésolues (au dire des légendes)
cessant leurs hymnes, se prennent au
charme de sa voix, muettes toutes.
[...]




Israfel (Artaud)

Au ciel il est un coeur dont les cordes son l'âme d'un luth
comme un esprit de flamme, lá où l'âme ne monte plus.
Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu
que celui de ce luth en rafale d'élus
qui est la corde émue du coeur d'Israfel Ange
et chaque pulsation de cet oracle étrange
est comme un Sinaï où l'Amour Infini
a mis sa main de flamme au bord du Paradis.
Les astres enivrés comme le veut l'adage
rendant leurs chants muets sur l'ordre du Très-Sage
assistent ébahis
aux magiques scansion du dictame inouï
que le Barde d'en Haut épèle avec Sa Vie. [...]




Israfel (Herberto Helder)

No céu vive um coração de que as fibras são as cordas
de um alaúde
como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. E cada pulsação deste
obscuro oráculo
é um Sinai, onde o infindo amor pôs a mão em chamas, na
orla do Paraíso.
E diz a lenda que os astros bêbados emudecem,
e assistem atónitos
à inaudita ascensão daquela música
inaudita,
que o mágico bardo do alto soletra enquanto soletra a
sua vida,
cantando. [...]





«Não é difícil notarmos que a versão de Mallarmé está muito próxima do original de Poe, preservando todo o encadeamento dos versos e até mesmo o pequeno "aparte" entre parênteses, com pequenas mudanças, obviamente. Entretanto, a principal delas diz respeito à forma, já que os versos não aparecem quebrados, e sim com a estrutura de frases. A versão de Artaud, por sua vez, introduzirá uma série de imagens e temas que não fazem parte do original, tais como o sexto, o sétimo e o oitavo versos, que não encontram nenhuma correspondência com o poema de Poe, assim como os três últimos. Essas imagens – "obscuro oráculo", "Sinaï", "amor infindo", "Paraíso", – comparecerão no poema de Helder, confirmando a hipótese de que a sua tradução é realizada a partir do texto de Artaud. Entretanto, talvez essas alterações não sejam as principais mudanças sofridas pelo poema, embora sejam as mais evidentes.
É no primeiro verso que constatamos uma alteração ainda mais significativa: no poema de Poe há um espírito que vive no céu e cujas fibras do coração são um alaúde. Artaud, ao fazer a sua versão, descreve um coração que vive no céu, cujas cordas são a alma de um alaúde. Note-se aqui a bissemia da palavra alma, presente tanto na língua francesa como na portuguesa, que por um lado tem o significado de espírito, presente no original de Poe, e, por outro, o de um pequeno cilindro de madeira colocado entre o tampo e o fundo dos instrumentos de corda. Nessa segunda acepção, a palavra alma estaria afastada de seu aspecto transcendente para adquirir uma tonalidade mais material. Herberto Helder, ao fazer a sua versão, recupera nitidamente a inversão de Artaud, já que continua sendo um coração que vive no céu, e não mais um espírito, como no original, inversão que nos faz pensar na importância que os dois poetas concederam ao corpo e aos processos vitais; entretanto, a palavra alma, introduzida por Artaud no primeiro verso, desaparece para ser recuperada apenas no verso seguinte, mantendo a comparação do coração que vive no céu com a "alma de uma labareda", que em Artaud é "un sprit de flamme".»




Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.117/8

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tradução

«O tradutor, como aponta Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao livro de Susana Lages, é justamente um mestre das passagens e dos intervalos, aquele que proporciona uma travessia entre as línguas, mas uma travessia que não exclui o carácter de impasse inerente a tal actividade. O tradutor é, então, um novo Ulisses, pois não pode entregar-se totalmente ao texto estrangeiro com o risco de tornar-se mudo, de sucumbir ao canto das sereias. Ele precisará manter-se nesse lugar tenso, em que ouve o canto, o chamado do exterior, mas continua agarrado ao mastro, à sua língua natal.
Assim, a tradução terá sempre que lidar com um carácter intervalar, representado por uma pura diferença, pressupondo, portanto, uma duplicidade e o enfrentamento de uma realidade que é absolutamente estranha, estrangeira, impossível de ser recuperada. Ao realizar a sua obra, enquanto tenta ultrapassar esse intervalo, o tradutor escava o abismo que separa, ao mesmo tempo em que aproxima, o original da tradução, e se, por um lado, algo da língua original se perde, por outro, a língua do tradutor também sofrerá modificações, como assinalamos anteriormente no caso da tradução do poema dos caxinauás. »



Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.99-100
Powered By Blogger