Israfel (Edgar Poe)
In Heaven a spirit doth dwell
"Whose heart-strings are a lute;"
None sing so wildly well
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tell)
Ceasing their hymns, attend the spell
Of his voice, all mute. [...]
Israfel (Mallarmé)
Dans le ciel habite un esprit "dont les
fibres du coeur font un luth". Nul ne chante
si étrangement bien – que l'ange Israfel, et
les étoiles irrésolues (au dire des légendes)
cessant leurs hymnes, se prennent au
charme de sa voix, muettes toutes.
[...]
Israfel (Artaud)
Au ciel il est un coeur dont les cordes son l'âme d'un luth
comme un esprit de flamme, lá où l'âme ne monte plus.
Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu
que celui de ce luth en rafale d'élus
qui est la corde émue du coeur d'Israfel Ange
et chaque pulsation de cet oracle étrange
est comme un Sinaï où l'Amour Infini
a mis sa main de flamme au bord du Paradis.
Les astres enivrés comme le veut l'adage
rendant leurs chants muets sur l'ordre du Très-Sage
assistent ébahis
aux magiques scansion du dictame inouï
que le Barde d'en Haut épèle avec Sa Vie. [...]
Israfel (Herberto Helder)
No céu vive um coração de que as fibras são as cordas
de um alaúde
como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. E cada pulsação deste
obscuro oráculo
é um Sinai, onde o infindo amor pôs a mão em chamas, na
orla do Paraíso.
E diz a lenda que os astros bêbados emudecem,
e assistem atónitos
à inaudita ascensão daquela música
inaudita,
que o mágico bardo do alto soletra enquanto soletra a
sua vida,
cantando. [...]
«Não é difícil notarmos que a versão de Mallarmé está muito próxima do original de Poe, preservando todo o encadeamento dos versos e até mesmo o pequeno "aparte" entre parênteses, com pequenas mudanças, obviamente. Entretanto, a principal delas diz respeito à forma, já que os versos não aparecem quebrados, e sim com a estrutura de frases. A versão de Artaud, por sua vez, introduzirá uma série de imagens e temas que não fazem parte do original, tais como o sexto, o sétimo e o oitavo versos, que não encontram nenhuma correspondência com o poema de Poe, assim como os três últimos. Essas imagens – "obscuro oráculo", "Sinaï", "amor infindo", "Paraíso", – comparecerão no poema de Helder, confirmando a hipótese de que a sua tradução é realizada a partir do texto de Artaud. Entretanto, talvez essas alterações não sejam as principais mudanças sofridas pelo poema, embora sejam as mais evidentes.
In Heaven a spirit doth dwell
"Whose heart-strings are a lute;"
None sing so wildly well
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tell)
Ceasing their hymns, attend the spell
Of his voice, all mute. [...]
Israfel (Mallarmé)
Dans le ciel habite un esprit "dont les
fibres du coeur font un luth". Nul ne chante
si étrangement bien – que l'ange Israfel, et
les étoiles irrésolues (au dire des légendes)
cessant leurs hymnes, se prennent au
charme de sa voix, muettes toutes.
[...]
Israfel (Artaud)
Au ciel il est un coeur dont les cordes son l'âme d'un luth
comme un esprit de flamme, lá où l'âme ne monte plus.
Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu
que celui de ce luth en rafale d'élus
qui est la corde émue du coeur d'Israfel Ange
et chaque pulsation de cet oracle étrange
est comme un Sinaï où l'Amour Infini
a mis sa main de flamme au bord du Paradis.
Les astres enivrés comme le veut l'adage
rendant leurs chants muets sur l'ordre du Très-Sage
assistent ébahis
aux magiques scansion du dictame inouï
que le Barde d'en Haut épèle avec Sa Vie. [...]
Israfel (Herberto Helder)
No céu vive um coração de que as fibras são as cordas
de um alaúde
como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. E cada pulsação deste
obscuro oráculo
é um Sinai, onde o infindo amor pôs a mão em chamas, na
orla do Paraíso.
E diz a lenda que os astros bêbados emudecem,
e assistem atónitos
à inaudita ascensão daquela música
inaudita,
que o mágico bardo do alto soletra enquanto soletra a
sua vida,
cantando. [...]
«Não é difícil notarmos que a versão de Mallarmé está muito próxima do original de Poe, preservando todo o encadeamento dos versos e até mesmo o pequeno "aparte" entre parênteses, com pequenas mudanças, obviamente. Entretanto, a principal delas diz respeito à forma, já que os versos não aparecem quebrados, e sim com a estrutura de frases. A versão de Artaud, por sua vez, introduzirá uma série de imagens e temas que não fazem parte do original, tais como o sexto, o sétimo e o oitavo versos, que não encontram nenhuma correspondência com o poema de Poe, assim como os três últimos. Essas imagens – "obscuro oráculo", "Sinaï", "amor infindo", "Paraíso", – comparecerão no poema de Helder, confirmando a hipótese de que a sua tradução é realizada a partir do texto de Artaud. Entretanto, talvez essas alterações não sejam as principais mudanças sofridas pelo poema, embora sejam as mais evidentes.
É no primeiro verso que constatamos uma alteração ainda mais significativa: no poema de Poe há um espírito que vive no céu e cujas fibras do coração são um alaúde. Artaud, ao fazer a sua versão, descreve um coração que vive no céu, cujas cordas são a alma de um alaúde. Note-se aqui a bissemia da palavra alma, presente tanto na língua francesa como na portuguesa, que por um lado tem o significado de espírito, presente no original de Poe, e, por outro, o de um pequeno cilindro de madeira colocado entre o tampo e o fundo dos instrumentos de corda. Nessa segunda acepção, a palavra alma estaria afastada de seu aspecto transcendente para adquirir uma tonalidade mais material. Herberto Helder, ao fazer a sua versão, recupera nitidamente a inversão de Artaud, já que continua sendo um coração que vive no céu, e não mais um espírito, como no original, inversão que nos faz pensar na importância que os dois poetas concederam ao corpo e aos processos vitais; entretanto, a palavra alma, introduzida por Artaud no primeiro verso, desaparece para ser recuperada apenas no verso seguinte, mantendo a comparação do coração que vive no céu com a "alma de uma labareda", que em Artaud é "un sprit de flamme".»
Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.117/8
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