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domingo, 29 de setembro de 2024


Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes



*



O amor é o amor


O amor é o amor - e depois?!
vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
o amor é o amor - e depois?!

Alexandre O'Neill

quarta-feira, 31 de julho de 2024

 Façanhas da memória

Há uma casa,
uma casa
que fechou
suas portas.
Foi
morrendo
em nome
e graça
da mesmíssima
vida.
Esta casa
abandonou
o salão
solenemente,
sem deixar
fotografias,
nem fantasmas
cochilando
por aí
pelas escadas;
nem sequer
um resplendor
de vozes
se gestando
nos quartos
de serviço
ofendidas na sombra
chorando
seu direito
à memória

Esta casa
onde não há
antepassados
escalando
o tempo,
enredando
parentes
terra
adentro
onde vão se
s o m a n d o.


Tardança

Foram juntando
palavras intencionadas

uma
a
uma
iam entrando

pela fissura da porta
onde aparecem cartas

algumas vezes
quando a casa
está
desabitada.

Teresa Calderón (Causas perdidas, 1984)


Exílio

I.
Ontem te chamei
e minha própria sombra
respondeu no telefone

II.
Adeus eu disse docemente
e a rua cresceu cresceu
como a noite

III.
Seu corpo luta na parede.
Meu quarto
não pode te deixar ir
sem me ferir

IV.
Fantasma tresnoitado do amanhecer
cantando seu próprio tango
de pé chorando
sobre o balcão de uma mulher
também fantasma.


Roteiro dos desaparecidos

Reconstruir a luz para os que nunca mais a verão
        a luz que nasce deles
       asilada luz permanecente no
    sótão da visão
  desaparecida
riscada
é o roteiro reconstituído dessa morte
não de todo vivida
porque volta inconclusa a aparecer
       a vigiar a vida de longe.

Roteiro do pensamento invertido na faceta subliminar
à margem de qualquer quimera subvertida

Roteiro desse sótão e sua persistência
escura
quando a cidade virada em seu próprio ofertório
se converte em santuário

Onde emergem os mortos resplandecentes

Pelo brilho ameaçante dos cactos
seus olhos veem os vivos lascivamente.

Mas há mais: eles colocam grandes placas de vidro
opacas
para resistir ao cruzamento dos edifícios
sem defesa.
Desafiando a cor do sol
com seu penetrante verde subterrâneo
inundam a cidade.
Cresce então sua antiga primavera
na qual os vivos submergem como num sonho
implacável.

Eugenia Brito (Vía pública, 1984)


sexta-feira, 8 de março de 2024

 Nome

Gosto da fome
com que me come
E do desespero
com que me devora
E como no meu corpo
goza
do meu corpo
goza
com meu corpo
goza

Gosto da sua boca sôfrega
Perdida na minha
língua trôpega
Numa dança descompassada

Não diga que estou errada
que em sua direção
meu passo é curto
Se dou dois para trás
é porque já todos
meus sentidos consome

Vê:
meu surto
tem seu nome


Ao Sabor da Maré

sobe a maré
quase ilhada,
já sei:
nenhuma fuga seca
é possível
nenhum esboço de caminho
a cada passo
mais pesados
meus pés marcados
pelo afogamento temo,
mas sigo
Mato-me ou vivo?


Mar e Som

Do teu nome emergem
Mar e Som

Marulham nas águas
do meu corpo as ondas
da tua rebentação
Meus olhos mareados
encontram sempre a ressaca
dos teus transbordantes
                – quando estamos em Alto-Mar
                e tudo é infinito horizonte
                de maresia e nossos ais

Teu nome
de Mar e Som
imerso imenso
em meu oceano de silêncio
e turbulências abissais


Renata de Castro

domingo, 3 de dezembro de 2023

E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

Ruy Belo, Todos os Poemas

domingo, 11 de outubro de 2020

 

8 POEMAS DE ADONIS (Ali Ahmad Said Esber)


Versões em português de Luís COSTA

''O ROSTO DE UMA MULHER

Eu morava no rosto de uma mulher
que mora numa onda.
A maré cheia trouxe-a até à praia
cujo porto desapareceu nas suas conchas .
Eu morava no rosto de uma mulher
que me assassinou, que no meu sangue de navegador
até ao fim da loucura amorosa
quer ser um farol, que se apaga.


O CÂNTICO DA MULHER

De lado,
Tinhas o rosto de um homem idoso
Que, assaltado por dias de mágoa,
Me trouxe o seu frasquinho esverdeado
E pedia que tomasse a última refeição.
Esse frasquinho é uma enseada,
O casamento de um barco com uma enseada
Nos dias em que as praias se afundam
E as gaivotas encontram os rostos
E o capitão pressente o seu futuro.
Ele veio cheio de fome até mim, eu dei-lhe o meu amor
Como um pão, como uma bilha, como um leito
E abri as portas ao vento e ao sol
E partilhei com ele a última refeição.


O CÂNTICO DO HOMEM   

De lado
Vi o teu rosto pintado no tronco da palmeira
O sol negro nas tuas mãos
Então montei a minha saudade da palmeira
Trazia a noite num cesto, trazia a cidade às costas
E polvilhei-me à volta dos teus olhos, estudei
O meu rosto
E vi o teu rosto, havia nele a fome de uma criança
E esconjurei-o com fórmulas mágicas
E polvilhei- o com jasmim


HOMEM E MULHER

Mulher: quem és tu?

Homem: um bobo expatriado
da rocha dos meteoros,
da raça do demónio.
E tu, quem és?
Viajaste pelo meu corpo?

Mulher: sempre e repetidamente.

Homem: o que viste?

Mulher: vi a minha morte.

Homem: Trazias o meu rosto?
E olhaste a minha sombra como um sol?
E olhaste o meu sol como uma sombra?
E desceste  às minhas profundezas e descobriste-me?

Mulher: e tu, descobriste-me?

Homem: se me descobriste, foste capaz
de me convencer?

Mulher: Não.

Homem: fiz-te bem e tiveste receio?

Mulher: sim, sem dúvida.

Homem : e reconheceste-me?

Mulher: e tu, reconheceste-me?


DAMASCO


Damasco
Caravana de estrelas no fundo verde
Dois peitos de brasas e laranjas
Damasco
O corpo do amante no leito
Como um arco – íris, como uma lua crescente
Em nome da água
Ele abre
A garrafa dos dias
Gira todos os dias
Na tua órbita nocturna
Cai como uma vítima
No teu vulcão cobiçado
As árvores dormitam ao redor do meu quarto
E o meu rosto
É uma maçã
Meu amor
É uma almofada, uma ilha...
Se ela viesse
Se ela viesse
Damasco
Fruto da noite, ó lugar de descanso.


A FLORESTA MÁGICA

Que seja assim:
os pássaros chegaram e as pedras
juntaram-se às pedras
assim:
acordo as estradas e as noites
e  seguimos na procissão das árvores

Os ramos são malas verdes e os sonhos
    uma almofada
numa viagem de férias
onde a manhã continua estranha
onde o seu rosto
permanece como um selo sobre os  mistérios

Assim:
Um raio indicou-me o caminho, uma voz chamou-me
do fim mais extremo do muro


QUATRO CANÇÕES PARA TIMUR

Espelho da lei

Irrompe
Sobre o corpo da rapariga
Sobre o corpo das grávidas
Irrompe e mata
Não poupes ninguém, nem velhos nem jovens...

Esta é a minha lei


O saque

O pássaro em chamas,
Cavalos, mulheres, ruas
São dilacerados como pão
Diante dos olhos de Timur


Eles

Eles chegaram
Nus entraram em casa
Escavaram
Enterraram as crianças
E foram embora


A maré

Mihyâr cantou, curvou-se, rezou,
falou livre dos pecados
E reconheceu a sua crença
Abençoou o rosto da loucura
Derreteu a ave na sua voz
E desejou que a sua voz
Fosse uma maré – e assim foi.


O FALCÃO

Os cavalos aproximaram-se e da margem chamaram-nos:
Voltem para trás pois nada de mal vos acontecerá.
Mas eu nadava, e o meu irmão mais novo nadava igualmente.
Virei-me para o encorajar, mas ele não me ouviu.
E com medo de se afogar deixou-se encandear pela garantia
daquelas palavras. E nadou, à pressa , para trás, enquanto eu atravessava o Eufrates.
Então, eles correram na direcção do meu irmão, que de boa-fé
se dirigia para eles, e quando olhei para ele, decapitaram
aquele jovem de treze anos e levaram-no. Eu, porém,
corria, corria sempre em frente, sentia-me como um pássaro
-  assim tão rápido  corriam  as minhas pernas.


ADONIS, أدونيس ( Ali Ahmad Said )

Adonis ( poeta e ensaísta sírio-libanês, nasceu em Al Qassabin perto de Lataquia, no Norte da Síria, a 1 de Janeiro 1930. O seu verdadeiro nome é Ali Ahmed Said Esber. Ainda bastante jovem começa a trabalhar na agricultura. Porém, o seu pai incita-o a interessar-se pela poesia.
Com apenas 13 anos declama alguns dos seus versos perante o presidente sírio, que na altura se encontrava em viagem de visita pela província.
O presidente fica de tal modo impressionado que acede realizar o grande sonho do jovem poeta: a frequência de um liceu francês.
Em 1954 sai da Universidade de Damasco com uma licenciatura em filosofia. Em 1955 encontra-se preso, durante seis meses, por ser membro do Partido Social Nacionalista Sírio. Depois da sua libertação,  instala-se em Beirute (Líbano) onde, em 1957, funda, com o também poeta Yousuf el-Khal, a revista literária mais importante do espaço árabe: «Schiir» (Poesia).
Em 1980, depois da guerra civil libanesa, abandona o Líbano para se refugiar, a partir de 1985, em Paris. Hoje vive entre Beirute e Paris. Nesta cidade foi , durante vários anos, professor catedrático de árabe na Sorbonne.
O poeta tem traduzido muitos autores franceses para o árabe. Entre eles encontram-se Racine, Baudelaire, Henri Michaux e Saint Jonh-Perse.
Adonis é hoje considerado um dos poetas árabes mais importantes do nosso tempo. É um trabalhador fronteiriço entre duas culturas: a oriental e a ocidental, um clássico moderno que conseguiu realizar uma síntese entre a forte tradição da poesia árabe e a lírica moderna do Ocidente. É precisamente esta polifonia que permite aos leitores, de diversas culturas, o acesso à sua obra.
A sua poesia contribuiu fortemente para a renovação da língua árabe, influenciando uma geração de escritores e poetas árabes.
Escrever poesia significa para ele uma luta permanente contra a memória fechada , sobre si mesma, da cultura, ou seja, contra a ditadura do passado inflexível.
O nome Adonis é considerado no mundo árabe, desde os anos 60, um sinónimo de modernidade. Aí se afirmou como um dos principais porta-vozes da corrente crítica e pós-moderna. Diz ele: 
Nós rebentámos a linguagem. Rebentar a linguagem significa a invenção de relações novas e invulgares entre as palavras, a invenção de novas relações entre a palavra e as coisas, dentro e fora. É a tentativa de procurar absorver aquilo que, racionalmente, não é possível, isto porque a poesia lírica representa uma forma de violação da linguagem, ou seja, é a tentativa de obrigar a linguagem a dizer aquilo que a prosa usual jamais conseguirá exprimir. 
Deste modo, a sua lírica quebrou as formas rígidas da poesia árabe, mantendo, no entanto, bastante presente muitos dos seus mitos.
Nos seus poemas a linguagem é compreendida como um acto mágico. Adonis vê as raízes da sua poesia no misticismo islâmico, por ele considerado como um surrealismo antes do surrealismo europeu.
Entretanto, o mundo árabe fala de adonismo, adonismo esse que tem os seus seguidores entusiásticos, mas também um grande número de inimigos que se encontram, sobretudo, entre os islamitas.
Adonis é, de há vários anos para cá , um dos fortes candidatos ao Prémio Nobel da Literatura. ''
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