« Essa mulher ainda jovem que acabava de entrar parecia vir como que rodeada de um vapor - vestida de uma labareda? - Tudo perdia a cor, tudo gelava, em presença daquela tez de sonho, perfeita concordância de tons de ferrugem e de verde: o antigo Egipto, um pequeno feto inesquecível, trepador, dentro de um poço antiquíssimo, o mais amplo, profundo e obscuro de quantos poços a que me debrucei, sito em Villeneuve-les-Avignon, nas ruínas de uma esplêndida cidade do século catorze francês, hoje em dia nas mãos dos ciganos. Era uma tez que, escurecendo gradualmente do rosto até às mãos, jogava com uma combinação de tons fascinante, a qual ia do sol extraordinariamente pálido dos cabelos dispostos em ramo de madressilva - a cabeça, desocupadíssima, erguia-se e baixava-se - ao papel que conseguiria arranjar para escrever, com intervalos de um vestido decerto, naquela altura, tão enternecedor que já nem dele me lembro. Tratava-se de alguém muito jovem, embora esse sinal distintivo não se impusesse à primeira vista, e isso devido à ilusão que nos dava de se deslocar, em pleno dia, à luz de um candeeiro. Já por duas ou três vezes ali a vira entrar: e de todas as vezes sempre ela, antes de se me oferecer à vista, me fora anunciada por não sei que frémito ou arrebatamento, que, ondulando, de ombro em ombro, se propagava, desde a porta até onde eu me encontrava, através da sala do café. O facto dessa agitação, ao perpassar por uma assistência das mais banais, depressa vir a adquirir carácter hostil - e isto quer no domínio da vida, quer no da arte - é para mim um indício da presença do belo. Ora eu posso, com toda a segurança, afirmar que, no dia 29 de Maio de 1934, e ali, naquele sítio, aquela mulher era escandalosamente bela. Uma tal certeza, para mim nessa altura já de si tão exaltante, corria, aliás, o grave risco de me deixar obcecado no intervalo entre as suas aparições reais, tanto mais que, desde o primeiro instante, uma remota intuição me dera azo a crer que o destino daquela mulher poderia vir a entrar um dia, ainda que ao de leve, em conjugação com o meu.»
André Breton. O Amor Louco. Trad. de Luiza Neto Jorge. Editorial Estampa, 1971., p. 56/7
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