domingo, 8 de agosto de 2010
So, so you think you can tell Heaven from Hell
Blue skies from pain
Can you tell a green field from a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?
And did they get you to trade your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
And did you exchange a walk on part in the war
for a lead role in a cage?
How I wish, how I wish you were here
We're just two lost souls swimming in a fish bowl
year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears
Wish you were here
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Aqui na mina, esta cavidade aberta, exposta à erosão do tempo, onde os pássaros acordam o dia e o silêncio, abri um livro: De Profundis, Valsa Lenta. Li-o em comunhão com o ar quente e húmido da tarde. Fui descobrindo a nascente de água, esse caminho subterrâneo que se abre para a condução, de uma espécie de escuridão branca. Uma comoção - uma viva dor de borboletas nocturnas com duras asas cobertas de escamas finas de cristais férreos -, atingiu-me na queda de todos os espelhos, todos os voos calcinados.
Num cubículo alto, com uma fenda em V, entre dois pilares de rochedos róseos com rugas acastanhadas pelo enclausuramento das rigorosas sombras, os meus olhos lançam-se pelas rasuras da água. A pele queima (é sombrio o Alentejo). Deito-me sobre a rocha, que arde sobre o meu corpo cavernoso. As nuvens em desordem, no céu, parecem tochas acesas de memórias.
Reanimo o clarão e o palácio desfeito num conta-gotas de soro, que lentamente me acordava, naquele destino de forcas, na arena. Lembro-me das paredes, ironicamente brancas quando os meus olhos apenas viam e sentiam le sang des fleurs morts. Noite profunda na hora despida de luz. No vidro polido, diante de ti, Outro que me olhas: representas o engano. A ferida, que na borda do bacio, reluz, sanguínea, a vulnerável timidez, essa sempre mascarada do arrogante orgulho, e no fundo alguém que viveu dentro de ti, embora morto, acompanha-te os passos. Não vem aterrorizar-te na hora dos sonhos, vem, acalmar-te: dar-te a mão para subires a montanha. «Vê como é vasta!» . Só sentimos falta do vento que nos tocou, quando na aridez seca da tarde, já não o sentimos leve na pele. Descem as pálpebras de seda frágil. Sinto os que não desistem de me lançar a mão, para que saia desta escuridão, que tanto tem procurado pelos meus limites, pela minha atordoada e desistente luta.
Num cubículo alto, com uma fenda em V, entre dois pilares de rochedos róseos com rugas acastanhadas pelo enclausuramento das rigorosas sombras, os meus olhos lançam-se pelas rasuras da água. A pele queima (é sombrio o Alentejo). Deito-me sobre a rocha, que arde sobre o meu corpo cavernoso. As nuvens em desordem, no céu, parecem tochas acesas de memórias.
Reanimo o clarão e o palácio desfeito num conta-gotas de soro, que lentamente me acordava, naquele destino de forcas, na arena. Lembro-me das paredes, ironicamente brancas quando os meus olhos apenas viam e sentiam le sang des fleurs morts. Noite profunda na hora despida de luz. No vidro polido, diante de ti, Outro que me olhas: representas o engano. A ferida, que na borda do bacio, reluz, sanguínea, a vulnerável timidez, essa sempre mascarada do arrogante orgulho, e no fundo alguém que viveu dentro de ti, embora morto, acompanha-te os passos. Não vem aterrorizar-te na hora dos sonhos, vem, acalmar-te: dar-te a mão para subires a montanha. «Vê como é vasta!» . Só sentimos falta do vento que nos tocou, quando na aridez seca da tarde, já não o sentimos leve na pele. Descem as pálpebras de seda frágil. Sinto os que não desistem de me lançar a mão, para que saia desta escuridão, que tanto tem procurado pelos meus limites, pela minha atordoada e desistente luta.
Não é a Beleza que dorme, é o sangue que se apaga, como que cansado da viagem. Não luto pelos secos ressentimentos. A harmonia...que engano Senhor!, Interessam-me poucos os nados vivos deste mundo velho. Fui-me apagando lentamente como a chama que na campânula sorri no frio nevoeiro. Quem pensa ao «contrário», tem defeito, é um triste de um louco (e o que eu sempre gostei de loucos!).
Caí de joelhos em memória. Ouvi aquela voz... e, da frágil boca de orvalho um leve «Vive, que eu sou sombra». Sonhei mais tarde com a desordem. A minha alma tornou-se viajante como essas borboletas muito ‘’atreitas às flores do cemitério’’ , e, o que hoje guardo, são os olhos desse Outro que refulgem contra o vidro da névoa; e a mão pequenina guardada no meu coração aponta o pássaro que no abismo, transporta no bico, um dente-de-leão que leva entre a canção e a penumbra, a dor da lembrança. Na flor da água sobre este fundo negro, eis-me defronte o espelho: a outra face contaminada.
A insónia, trouxe-me os dias doentes. As fissuras pálidas desse luto cansado. A luz à espera do amanhecer das horas. O pesar da alma que arrasta o corpo. Vivi muitos dias com o teu pensamento na minha almofada. Era teu e meu. Mergulhava no sal das estátuas, que no jardim, me afastavam do teu existir. Doíam-me todas as palavras, que pudesse usar para te nomear. O tempo...o tempo cura-nos a desistência e obriga-nos a edificar. Olhei para o princípio e apaguei o fim. Mergulhei no profundo abismo. A memória atraiçoa-nos. Virei-a do avesso. Ó psicoanálisis! Vi-te sobre o dorso da pedra. O destino mostrou-me o engano. O teu corpo, naquele pássaro, que poisou sobre a pedra salpicada de erosão negra, com olhos de ternura nívea, trouxe-me a verdade. Vi e compreendi a forma. Abracei o livro contra o peito. A memória de Outro. Valsa lenta. As minhas lágrimas últimas; a nuvem no céu pareceu-me forma surrealista , sentida pela tua ausência.
A insónia, trouxe-me os dias doentes. As fissuras pálidas desse luto cansado. A luz à espera do amanhecer das horas. O pesar da alma que arrasta o corpo. Vivi muitos dias com o teu pensamento na minha almofada. Era teu e meu. Mergulhava no sal das estátuas, que no jardim, me afastavam do teu existir. Doíam-me todas as palavras, que pudesse usar para te nomear. O tempo...o tempo cura-nos a desistência e obriga-nos a edificar. Olhei para o princípio e apaguei o fim. Mergulhei no profundo abismo. A memória atraiçoa-nos. Virei-a do avesso. Ó psicoanálisis! Vi-te sobre o dorso da pedra. O destino mostrou-me o engano. O teu corpo, naquele pássaro, que poisou sobre a pedra salpicada de erosão negra, com olhos de ternura nívea, trouxe-me a verdade. Vi e compreendi a forma. Abracei o livro contra o peito. A memória de Outro. Valsa lenta. As minhas lágrimas últimas; a nuvem no céu pareceu-me forma surrealista , sentida pela tua ausência.
Quando no sonho contra as janelas baças, no nevoeiro adensado de copas verdes de grandes árvores, um homem transportava uma menina de vestido branco com as formigas que lhe subiam até aos joelhos dobrados, descendo depois, caindo pelo chão, como códeas, marcando um carreiro infindo, encontrei o demarcado vaguear das imagens. Os teus limites: suados abismos circulares, como essas peças articuláveis de movimento que nunca cessa.
A tua morte foi sentida no Éden. A criança de olhos meigos, com as pernas entre os silvados, veio arranhada, aconchegar-se ao pé da tua mão. Pegou-a, talvez como se nunca a tivesse esquecido, e num rasgão forte, puxou-te pelo movimento. Olhas-te-a confusa. Confiaste no desconhecido inquietar doce. Transportaste as imagens que ela te deu. Andaram sobre um campo cheio de flores de espécies inomeáveis. Jogaste o velho jogo do mundo Rayuela, na terra vermelha e férrea. Cansaram as pernas e o coração. Num sopro, caíram cheios de ar e exaustos no pó do chão. Os Rostos colaram-se de lado e os seus olhos sorriam como as estrelas escondidas no céu diurno. Apagou-se a luz. Veio a nocturna passagem. Uma floresta, um jogo de escondidas, que em anseio, corremos de olhos vendados à procura de um rosto atrás duma árvore. Suspirei, vi-o ao longe, continuou a sorrir: acenou com a mão um adeus...e, nunca mais o vi. Procuraste entre as flores e nada, nem semente! Mas imagine-se, um sussurro na tua pele, guarda a sua existência. Entraste no lugar dum Outro, que és tu mesma: um Outro que vive a tua arborescência. O fogo de todos os arrozais. A escuridão de todos os nevoeiros. A neve no deserto presa ao ar rarefeito.
A dourada linha reveste a moldura. Rostos cínzeos fixam os teus olhos. Uma chama escorrega do isqueiro; a chama é como uma chaga, que consome as máscaras. As do teu rosto? Queimas a memória dos mortos, e guarda-las apenas no aguaceiro da escuridão branca. Regressas, com cinzas verdes nas mãos. Levantas-te do túmulo: na mina inteira, há olhos cegos, a queda do alto dos pássaros encolhidos na hora do inferno contra os rochosos escombros, que saúdam os teus perdidos passos, por breve momentos encontrados.
Sobes o caminho, os pássaros com corpo de corvos astutos, vigiam-te os passos perdidos. Continuas a subir. A cada escalada, as brasas fervem em lava. Os olhos procuram o fim desse caminho que te afasta deste lugar. Promessas!, ó ironia das promessas vãs. Uma lágrima quente, suave, despede-se desta ruína. O ar queima ...a garganta encolhe-se. Que caiam as máscaras...
Lento o teu regresso, mais lenta a partida daqueles que te sangraram. Viaja e vive! Os teus pés são as coordenadas da desordem. Desfruta das mãos que te suavizam a tensão dos ombros nus. Que o teu coração aprenda a desaprender do orgulho e raiva em que consomes as amarras dos teus espectros. Vive a mutação do teu Ser, que a suave forma da protecção te preencha em amor. Que os teus cansados desapontamentos sejam apenas breves passagens entre as rochas, desse lugar, onde encontras a solidão e o subtil acompanhar.
O céu traz a adensada forma: no lugar onde abandonaste o sonho encontrarás o princípio.
7 de Agosto de 2010
7 de Agosto de 2010
«Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de passos perdidos e a interrogar-me se não estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passageira mas no estado em que me encontrava o que não seria para mim a loucura? Como é que eu, impessoal e tão a esmo, me tinha lembrado de tal coisa a propósito dum letreiro? Pensando-a a esta distância, admito que essa perturbação se possa dever a um eco da minha identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro como uma provocação da leitura e da escrita era o ex-autor de livros que estremecia na cegueira em que me tinha mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida o esboço duma interrogação à loucura. Seria?»
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.57
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.57
«Na véspera de não partir nunca...»
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos
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«Ver pessoas (figuras) através dum vidro mudo e perdê-las num acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como quem, na desertificação que o invadia, fosse avançando para a morte cerebral num cenário de contornos indiferentes.»
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.33
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.33
«Ele, o Outro, O outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com os médicos sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser.
(...)
Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta da vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.»
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.30/1
(...)
Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta da vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.»
José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.30/1
«Quando perdeste o sonho e a certeza tornaste-te desordem e fizeste-te nuvem.»
Simónides de Kéos, Epitáfio nas Termópilas
Simónides de Kéos, Epitáfio nas Termópilas
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«A primeira, é que V. simplesmente teve sorte, e não há nada de mal com isso. O nosso inimigo queixava-se de Napoleão pode ele ter generais com sorte, ao que o imperador retorquia que não gostava de generais com sorte, princípio para mim fundamental para a prática da profissão.» (p.17)
«O primeiro toca ao mistério que desde sempre tem intrigado os afasiologistas e que se refere ao estado mental dos afásicos, ou seja, o que pensa e como pensa aquele que não consegue de modo algum comunicar o pensamento. Aliás, esta questão é tão inquietante como a de tentar perceber o que sentem aqueles que se encontram no chamado «estado vegetativo persistente», em cuja intimidade receamos penetrar, esquecendo talvez que as flores também sofrem.» (p.18)
«Curiosamente, V. prende sempre a sua memória à imaginação indissociáveis e indispensáveis à sua criação literária.» (p.19)
«Uma última palavra. Para Keats, o desafio da poesia do futuro era «thinking into the human heart». Os cientistas deste e do próximo século sabem que a tarefa é «thinking into human brain», pois continuamos todos sem saber por que é que o «binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo». Mas como dizia a personagem do nosso Eça, certas coisas não se sabem e é preferível não se saberem. Não será melhor assim?
Ab imo corde. » (p.22)
João Lobo Antunes
Páscoa de 1997
in José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998
João Lobo Antunes
Páscoa de 1997
in José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998
sábado, 7 de agosto de 2010
Acerca de um livro intitulado «Lolita»
«(«Procede como um louco. Todos nós procedemos como loucos, creio. Embora toda a gente devesse saber que detesto símbolos e alegorias (devido, em parte, à minha velha animosidade pelo macumbismo freudiano, e, em parte, à minha aversão pelas generalizações inventadas por mitistas literários e sociologistas), […]»
«Não se deveria esperar que nenhum editor deste país livre se preocupasse com a demarcação exacta entre o sensório e o sensual: é ridículo. Sou capaz de admirar, mas não consigo emular, a exactidão de critério dos que escolhem as fotografias das jovens louras e mamíferas e as publicam em revistas onde o nível geral de decote se situa a uma altura estudada para não provocar o riso aos mais atrevidos e um franzir de testa aos mais sisudos.»
«Não se deveria esperar que nenhum editor deste país livre se preocupasse com a demarcação exacta entre o sensório e o sensual: é ridículo. Sou capaz de admirar, mas não consigo emular, a exactidão de critério dos que escolhem as fotografias das jovens louras e mamíferas e as publicam em revistas onde o nível geral de decote se situa a uma altura estudada para não provocar o riso aos mais atrevidos e um franzir de testa aos mais sisudos.»
«Há boas almas capazes de considerar Lolita inútil porque não lhes ensina nada.»
«[…] Tudo mais é um acervo de lugares-comuns ou aquilo a que alguns chamam «literatura de ideias», a qual não passa muitas vezes de um acervo de lugares-comuns em enormes blocos de gesso, cuidadosamente transmitidos de século para século, até que aparece alguém com um martelo e dá uma boa martelada a Balzac, a Gorki ou a Mann.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.324/5
«[…] Tudo mais é um acervo de lugares-comuns ou aquilo a que alguns chamam «literatura de ideias», a qual não passa muitas vezes de um acervo de lugares-comuns em enormes blocos de gesso, cuidadosamente transmitidos de século para século, até que aparece alguém com um martelo e dá uma boa martelada a Balzac, a Gorki ou a Mann.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.324/5
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Acerca de um livro intitulado «Lolita»
«A primeira palpitaçãozinha de Lolita percorreu-me em fins de 1939 ou começos de 1940, em Paris, numa ocasião em que estava com um ataque violento de nevralgia intercostal. Tanto quanto me lembro, o calafrio inicial da inspiração foi de certo modo provocado pela história que um jornal publicou acerca de um macaco do Jardin des Plantes que, após meses de treino por um cientista, foi autor do primeiro desenho jamais feito por um animal: um esboço que representava as grades do pobre bicho.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.321
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.321
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quinta-feira, 5 de agosto de 2010
«Quando a minha mãe, num lívido vestido húmido e sob a névoa que caía (era assim que a recordava claramente), correra, ofegante, pela encosta acima do Moulinet, para aí ser fulminada por um raio, eu era apenas um bebé e, em retrospectiva, não pude atribuir a nenhum momento da minha juventude quaisquer anseios e nostalgias do tipo aceito, por muito selvaticamente que os psicoterapeutas insistissem nesse ponto, nos meus períodos posteriores de depressão. Mas admito que um homem com a minha imaginação não pode alegar ignorância pessoal de emoções que são universais.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.298
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.298
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
32
Houve um dia, na nossa primeira viagem - no nosso primeiro circuito do Paraíso - em que, para gozar os meus fantasmas em paz, decidi firmemente ignorar o que não podia deixar de compreender: que, para ela, não era um namorado, nem um homem sedutor, nem um camarada, nem sequer uma pessoa, e sim, apenas, dois olhos e um palmo de músculo ingurgitado - para mencionar somente as coisas mencionáveis. Houve um dia em que, depois de recusar e cumprir a promessa funcional que lhe fizera na véspera (qualquer coisa em que o seu engraçado coraçãozinho tinha empenho - um rinque de patinagem com um piso especial de plástico ou uma matinée a que queria ir sozinha), vi por acaso, da casa de banho, graças a uma ocasional combinação de espelho inclinado e porta entreaberta, uma expressão no seu rosto...uma expressão que não consigo descrever exactamente...uma expressão de tão perfeito desespero que parecia transmutar-se gradualmente noutra de confortável inanidade, precisamente porque fora atingido pelo próprio limite da injustiça e da frustração - e cada limite pressupõe algo para além dele, daí a compreensão neutra. E, se tiverem em mente que se tratava das sobrancelhas arqueadas e dos lábios entreabertos de uma criança, poderão avaliar melhor os abismos de carnalidade calculada e o pensado desespero que me contiveram e impediram de cair aos seus queridos pés e desfazer-me em lágrimas humanas, e sacrificar o meu ciúme aos prazeres que Lolita esperasse, porventura, encontrar na companhia de crianças sujas e perigosas num mundo exterior que era real para ela.
Mas ainda tenho outras recordações sufocadas, que se desdobram agora em monstros de dor desprovidos de membros. Uma vez, numa rua de Beardsley envolta no poente, ela voltou-se para a pequena Eva Rosen (eu levava as duas ninfitas a um concerto e caminhava atrás delas, mas tão perto que quase lhes podia tocar com o meu corpo), voltou-se para Eva e, muito serena e seriamente, em resposta a qualquer coisa que a outra dissera acerca de ser melhor morrer do que ouvir Milton Pinski, um estudante qualquer que ela conhecia, falar de música, a minha Lolita observou:
- Sabes, o que há de tão terrível em morrer é ficarmos completamente entregues a nós próprias.
Pensei então, enquanto os meus joelhos de autómato subiam e desciam que não sabia nada a respeito da mentalidade da minha querida e que, possivelmente, atrás dos horríveis clichés juvenis, havia nela um jardim e um crepúsculo, e o portão de um palácio - vagas e adoráveis regiões que me eram lúcida e absolutamente proibidas, nos meus farrapos poluídos e nas minhas miseráveis convulsões. Pois ocorreu-me muitas vezes que, vivendo como vivíamos, ela e eu, num mundo de mal absoluto, ficaríamos estranhamente embaraçados sempre que eu tentasse discutir qualquer coisa que ela e uma amiga mais velha, ela e uma pessoa da família, ela e um namorado autêntico e saudável, eu e Annabel, Lolita e um sublime, purificado, analisado, deificado Harold Haze poderiam discutir - uma ideia abstracta, um quadro, o pontilhado Hopkins ou o esbulhado Baudelaire, Deus ou Shakespeare, fosse o que fosse de natureza genuína. Boa vontade! Ela envolvia a sua vulnerabilidade em imprudência ordinária e enfado, enquanto eu, utilizando nos meus comentários desesperadamente impessoais um tom de voz artificial que me irritava, provocava na minha interlocutora tais explosões de rudeza que se tornava impossível continuar a conversa. Oh, minha pobre, minha magoada criança!
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.294/5
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.294/5
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Citando um velho poeta:
O senso moral dos mortais é o dever.
Temos de pagar com o sentido moral da arte.
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.294.
O senso moral dos mortais é o dever.
Temos de pagar com o sentido moral da arte.
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.294.
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«Cobri o rosto com a mão e derramei as lágrimas mais ardentes da minha vida. Sentia-as escorrer através dos meus dedos e pelo queixo abaixo, queimando-me, o nariz entupiu-se-me, não fui capaz de me controlar e, de súbito, ela tocou-me no pulso.
-Se me tocas morro - afirmei. - Tens a certeza de que não vais comigo? Não há nenhuma esperança de que me acompanhes? Responde-me só a isso.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.289.
-Se me tocas morro - afirmei. - Tens a certeza de que não vais comigo? Não há nenhuma esperança de que me acompanhes? Responde-me só a isso.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.289.
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terça-feira, 3 de agosto de 2010
173
Pomba Ferida
Pelas rochas oiço-te arquejar,
a caminhar pra cima.
Sobe, não sou cruel,
oh pomba ferida.
Truncaram-te as asas côncavas?
Já não podes abri-las?
Vou, não sou trôpego,
oh pomba ferida!
Com os teus olhos deténs o sol
e páras a brisa.
Vem cá, não sou tardo,
oh pomba ferida!
Em minha boca tua sede aguarda-te,
tua sede que é minha.
Entra, não sou seco,
oh pomba ferida!
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 156/7
Pelas rochas oiço-te arquejar,
a caminhar pra cima.
Sobe, não sou cruel,
oh pomba ferida.
Truncaram-te as asas côncavas?
Já não podes abri-las?
Vou, não sou trôpego,
oh pomba ferida!
Com os teus olhos deténs o sol
e páras a brisa.
Vem cá, não sou tardo,
oh pomba ferida!
Em minha boca tua sede aguarda-te,
tua sede que é minha.
Entra, não sou seco,
oh pomba ferida!
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 156/7
170
REQUIEM
Quando todos os séculos regressam,
anoitecendo, à sua beleza,
sobe ao âmbito universal
a funda unidade terrena.
Então a nossa vida alcança
a alta razão de sua existência:
todos somos reis iguais
na terra, rainha completa.
Vemos-lhe as têmporas infindas,
escutamos-lhe a voz imensa,
sentimo-nos acumulados
pelas suas mãos verdadeiras.
Seu mar total é o nosso sangue,
a nossa carne é a sua pedra,
respiramos o seu ar uno,
seu fogo único incendeia-nos.
Ela está com todos nós,
todos nós estamos com ela;
ela é bastante para dar-nos
a todos a substância eterna.
E tocamos o zénite último
com a luz de nossas cabeças
e detemo-nos todos certos
de estar no que nunca se deixa.
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 153
Quando todos os séculos regressam,
anoitecendo, à sua beleza,
sobe ao âmbito universal
a funda unidade terrena.
Então a nossa vida alcança
a alta razão de sua existência:
todos somos reis iguais
na terra, rainha completa.
Vemos-lhe as têmporas infindas,
escutamos-lhe a voz imensa,
sentimo-nos acumulados
pelas suas mãos verdadeiras.
Seu mar total é o nosso sangue,
a nossa carne é a sua pedra,
respiramos o seu ar uno,
seu fogo único incendeia-nos.
Ela está com todos nós,
todos nós estamos com ela;
ela é bastante para dar-nos
a todos a substância eterna.
E tocamos o zénite último
com a luz de nossas cabeças
e detemo-nos todos certos
de estar no que nunca se deixa.
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 153
168
Rosa Íntima
Rosa, a rosa ...(Mas aquela rosa...)
A Primavera volta
com a rosa
escarlate, rósea, amarela, escarlate, branca;
e todos com a rosa se embriagam,
a rosa igual a outra rosa.
Uma rosa é igual a outra rosa?
Todas as rosas são a mesma rosa?
Sim (mas aquela rosa...)
A rosa que numa mão se isola,
que se cheira até ao fundo seu e nosso,
a rosa para o seio do amor,
para a boca do amor e da alma.
(...E para a alma era aquela rosa
que docemente entre as rosas se escondia,
e que uma tarde depois não se viu mais.
De que amarelo aquela fresca rosa?
Tudo, de rosa em rosa, louco vive,
a luz, a asa, o ar,
a onda e a mulher,
e o homem, e a mulher e o homem.
A rosa prende, bela
e delicada, para todos,
seu corpo sem penumbra e sem segredo,
a um tempo suave e pleno,
íntimo e evidente, ardente e doce.
Esta rosa, essa rosa, a outra rosa...
Sim (mas aquela rosa...)
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 150/151
(Todas as rosas são a mesma rosa
amor! a única rosa.
E tudo está nela contido,
breve imagem do mundo,
amor! a única rosa.)
Rosa, a rosa ...(Mas aquela rosa...)
A Primavera volta
com a rosa
escarlate, rósea, amarela, escarlate, branca;
e todos com a rosa se embriagam,
a rosa igual a outra rosa.
Uma rosa é igual a outra rosa?
Todas as rosas são a mesma rosa?
Sim (mas aquela rosa...)
A rosa que numa mão se isola,
que se cheira até ao fundo seu e nosso,
a rosa para o seio do amor,
para a boca do amor e da alma.
(...E para a alma era aquela rosa
que docemente entre as rosas se escondia,
e que uma tarde depois não se viu mais.
De que amarelo aquela fresca rosa?
Tudo, de rosa em rosa, louco vive,
a luz, a asa, o ar,
a onda e a mulher,
e o homem, e a mulher e o homem.
A rosa prende, bela
e delicada, para todos,
seu corpo sem penumbra e sem segredo,
a um tempo suave e pleno,
íntimo e evidente, ardente e doce.
Esta rosa, essa rosa, a outra rosa...
Sim (mas aquela rosa...)
Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 150/151
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
«Parecia a Iegoruchka que esta canção suave, dolente e melancólica, como um queixume, que mal se ouvia, ora vinha da direita, ora da esquerda, ora de cima ora de baixo da terra; dir-se-ia que um espírito invisível voava sobre a estepe cantando. Iegoruchka olhava em volta, sem conseguir compreender donde partia este estranho canto. Momentos depois, escutando com mais atenção, convenceu-se de que era a erva que cantava; meio morta, condenada sem remissão, tentava com esta canção sem palavras, queixosa mas sincera, convencer alguém da sua completa inocência; fora injustamente que o Sol a calcinara. Repetia que desejava ardentemente viver, que ainda era jovem e que, sem aquele calor e sem aquela secura, teria sido bela. Não era culpada, e no entanto pedia perdão a alguém e jurava que sofria horrivelmente, que estava infinitamente triste e era digna de dó.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 17
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« - Um homem não é como uma agulha, com certeza que havemos de o encontrar. A esta hora deve ele andar aí às voltas pelos arredores.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 17
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 17
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«Um gavião volteja muito alto, batendo as asas com um movimento harmonioso; de repente pára em pleno voo, parecendo meditar sobre o tédio da existência, depois sacode as asas e foge como uma flecha por cima da estepe, sem que se saiba porque voa e o que procura. Ao longe as velas do moinho continuam sempre a girar...»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 10
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 10
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«Por muito que já tivessem andado, não havia forma de se ver nem o princípio nem o fim.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 9
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 9
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sábado, 31 de julho de 2010
«Para lá do cemitério, as chaminés dos fornos de tijolo deitavam fumo. Um fumo negro e espesso saía em grandes volutas por baixo dos grandes lenhados feitos de cana e abatidos contra o chão e depois eleva-se preguiçosamente para o céu. Por cima dos fornos de tijolo e do cemitério o céu estava dum tom ocre, enquanto nuvens de fumo cobriam os campos e a estrada com grandes sombras. Por entre o fumo, junto dos telhados, viam-se mexer homens e cavalos cobertos de poeira encarnada...
Transpostos os fornos de tijolo, a cidade cedia lugar ao campo. Iegoruchka virou-se uma última vez para olhar a cidade, encostou a cara ao cotovelo de Deniska e começou a chorar amargamente...
- Livra! Ainda não choraste tudo, meu palerma? -disse Kuzmitchov. - Olhem para este medricas a choramingar outra vez? Se não queres vir não venhas. Ninguém te obriga!
- Não chores, pequeno, não chores... - disse, por entre dentes, o padre Cristóvão em voz baixa e rápida.
-Não chores, pequeno. Pede a Deus que venha em teu auxílio...Se partes é para teu bem. Os estudos são, como se diz, a luz, e a ignorância, as trevas. Isto é que é a pura verdade.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7/8
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«(...) O rapazinho olhava atentamente aqueles lugares familiares enquanto a odiosa caleça corria à desfilada, deixando tudo para trás de si. Depois da prisão, foi a forja negra de fuligem que ele viu aparecer e desaparecer e depois o cemitério verde e acolhedor, cercado dum murinho de pedra grossa. Para lá do murinho distinguiam-se as cruzes e os jazigos, que, de longe, punham nódoas brancas e alegres por entre a folhagem das cerejeiras, Iegoruchka recordou-se que, quando estavam em flor, essas nódoas se confundiam com as flores de cerejeira num mar de brancura e que, quando as cerejas amadureciam, as cruzes e os jazigos ficavam salpicados de manchas vermelhas como sangue. Sob as cerejeiras, por trás do murinho, dormiam, noite e dia, o pai de Iegoruchka e a avó Zenaida Damilovna. Quando a avó morreu tinham-na posto num longo e estreito esquife com duas moedas de cinco copeques sobre os olhos, que não se queriam fechar. Até ao dia da sua morte estivera tão viva como toda a gente, e quando ia ao mercado trazia macios biscoitos cobertos de grãos de dormideiro. Agora não fazia senão dormir, dormir...»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Adolescente
Certo verão - eu tinha dezasseis anos - uma voz estrangeira
cantou em meus ouvidos.
Era, lembro-me bem, à beira-mar, entre os regos vermelhos, e a
carcaça de um barco abandonado na areia, tal um esqueleto.
Quis aproximar-me dessa voz, colando o ouvido na areia.
A voz desapareceu
Mas uma estrela cadente
Como se pela primeira vez eu visse uma estrela cadente e nos meus
lábios o sal da vaga.
Naquela noite, as raízes das árvores não voltaram mais.
Na manhã seguinte, uma viagem abriu suas folhas em mim e se
fechou como um livro de imagens.
Eu quis todas as noites ir à praia
Aprender primeiro a praia e partir depois para o largo.
No terceiro dia, amei uma jovem numa colina;
Ela morava numa casinha branca feito capela de montanha, tinha
a mãe velhinha à janela, óculos abaixados para o tricô, sem-
pre calada,
Um vaso de manjericão, um vaso de craveiros.
Chamava-se, parece, Vasso, Frosso ou Bílio.
Assim esqueci o mar.
Numa segunda-feira de outubro
Encontrei um jarro quebrado diante da casa branca
Vassi (para simplificar) estava de roupa negra, os cabelos desfei-
tos, os olhos vermelhos.
E como a interrogasse, disse-me:
''Ela morreu, o doutor disse que ela morreu porque não estran-
gulamos o galo negro nos alicerces...Onde encontrar um
galo negro por aqui...Só animais de casa, e a criação,
vendem toda já crescida no mercado...''
Eu não imaginava assim a tristeza e a morte.
Parti e voltei para o mar.
De noite, na ponte do São Nicolau,
Sonhei que uma oliveira muito velha chorava.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 122/123
cantou em meus ouvidos.
Era, lembro-me bem, à beira-mar, entre os regos vermelhos, e a
carcaça de um barco abandonado na areia, tal um esqueleto.
Quis aproximar-me dessa voz, colando o ouvido na areia.
A voz desapareceu
Mas uma estrela cadente
Como se pela primeira vez eu visse uma estrela cadente e nos meus
lábios o sal da vaga.
Naquela noite, as raízes das árvores não voltaram mais.
Na manhã seguinte, uma viagem abriu suas folhas em mim e se
fechou como um livro de imagens.
Eu quis todas as noites ir à praia
Aprender primeiro a praia e partir depois para o largo.
No terceiro dia, amei uma jovem numa colina;
Ela morava numa casinha branca feito capela de montanha, tinha
a mãe velhinha à janela, óculos abaixados para o tricô, sem-
pre calada,
Um vaso de manjericão, um vaso de craveiros.
Chamava-se, parece, Vasso, Frosso ou Bílio.
Assim esqueci o mar.
Numa segunda-feira de outubro
Encontrei um jarro quebrado diante da casa branca
Vassi (para simplificar) estava de roupa negra, os cabelos desfei-
tos, os olhos vermelhos.
E como a interrogasse, disse-me:
''Ela morreu, o doutor disse que ela morreu porque não estran-
gulamos o galo negro nos alicerces...Onde encontrar um
galo negro por aqui...Só animais de casa, e a criação,
vendem toda já crescida no mercado...''
Eu não imaginava assim a tristeza e a morte.
Parti e voltei para o mar.
De noite, na ponte do São Nicolau,
Sonhei que uma oliveira muito velha chorava.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 122/123
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quarta-feira, 28 de julho de 2010
Estacas
Os meus ossos estão espetados no deserto, não há
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha
caminhado em cima dela, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol
que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto, onde
o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe,
ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o
resto logo se veria.
Luís Miguel Nava. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 160
um só no meu corpo que lhe escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha
caminhado em cima dela, uma bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol
que entre elas brilha é descarnado, um sol deserto, onde
o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe,
ou amarrá-lo, amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o
resto logo se veria.
Luís Miguel Nava. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 160
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University Parks
Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.
Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.
Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.
O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem as raízes enterradas.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 155
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.
Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.
Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.
O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem as raízes enterradas.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 155
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Crepúsculo
Ao sol começa a faltar a lenha, a rua
por onde eu agora sigo
vai só onde a memória a conseguir abrir.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 140
por onde eu agora sigo
vai só onde a memória a conseguir abrir.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 140
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segunda-feira, 26 de julho de 2010
As fogueiras de São João
Nosso destino, chumbo derretido, não saberia mudar
Nada tem que se fazer,
Derramou-se o chumbo na água sob as estrelas apesar das foguei-
ras que queimam.
Se ficas nua diante o espelho à meia-noite, verás...
Verás no fundo do espelho passar um homem que, em teu destino,
Dominará teu corpo,
Na solidão e no silêncio, o homem
Da solidão e do silêncio
Apesar das fogueiras que queimam.
Na hora em que o dia acaba sem que o outro ainda comece,
Na hora em que o tempo se interrompe,
Aquele que desce então, de desde a origem dominava teu corpo
Deverás encontrar,
Deverás procurá-lo para que ao menos alguém o encontre quando
estejas morta.
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam diante das chamas
na noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não a acendesse uma criança,
Eróstrato?)
E elas jogam sal nas chamas para que crepitem
(É estranho o olhar que súbito vos lançam as casas, funis de
homens, quando as percorre um reflexo)
Mas tu que conheceste o encanto da pedra sobre o rochedo batido
pelas vagas
No poente onde a calma desceu,
Tu ouviste, no fundo da tua carne, a voz humana da solidão e do
silêncio,
Quando extinguiram-se todas as fogueiras,
Nessa noite de São João,
E decifraste a cinza sob as estrelas.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 117/118
Nada tem que se fazer,
Derramou-se o chumbo na água sob as estrelas apesar das foguei-
ras que queimam.
Se ficas nua diante o espelho à meia-noite, verás...
Verás no fundo do espelho passar um homem que, em teu destino,
Dominará teu corpo,
Na solidão e no silêncio, o homem
Da solidão e do silêncio
Apesar das fogueiras que queimam.
Na hora em que o dia acaba sem que o outro ainda comece,
Na hora em que o tempo se interrompe,
Aquele que desce então, de desde a origem dominava teu corpo
Deverás encontrar,
Deverás procurá-lo para que ao menos alguém o encontre quando
estejas morta.
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam diante das chamas
na noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não a acendesse uma criança,
Eróstrato?)
E elas jogam sal nas chamas para que crepitem
(É estranho o olhar que súbito vos lançam as casas, funis de
homens, quando as percorre um reflexo)
Mas tu que conheceste o encanto da pedra sobre o rochedo batido
pelas vagas
No poente onde a calma desceu,
Tu ouviste, no fundo da tua carne, a voz humana da solidão e do
silêncio,
Quando extinguiram-se todas as fogueiras,
Nessa noite de São João,
E decifraste a cinza sob as estrelas.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 117/118
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domingo, 25 de julho de 2010
''Pôs-se a gritar muito alto para mostrar
que não estava morto.''
SOLOMOS, A mulher de Zante.
in Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 115
que não estava morto.''
SOLOMOS, A mulher de Zante.
in Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 115
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Solomos
Raposódia Numa Noite de Vento
(...)
A lâmpada disse:
«Quatro da manhã.
Eis aqui o número da minha porta
Memória!
Tu tens a chave,
A pequena lâmpada espelha um círculo na escada.
Sobe.
A cama está aberta; a escova de dentes pendurada na
[parede,
Põe os sapatos à porta, dorme, prepara-te para a vida.»
O último revolver da faca.
T.S.Eliot. Antologia Poética. Poesia Século XX. Selecção e Trad. de José Palla e Carmo. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988., p.19
A lâmpada disse:
«Quatro da manhã.
Eis aqui o número da minha porta
Memória!
Tu tens a chave,
A pequena lâmpada espelha um círculo na escada.
Sobe.
A cama está aberta; a escova de dentes pendurada na
[parede,
Põe os sapatos à porta, dorme, prepara-te para a vida.»
O último revolver da faca.
T.S.Eliot. Antologia Poética. Poesia Século XX. Selecção e Trad. de José Palla e Carmo. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988., p.19
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Thomas Stearns Eliot
«Eu sei da tua dor, ó Cavaleiro! / A dor da Perfeição que imaginaste!»
Teixeira Pascoaes. Marânus. Lisboa: Assírio & Alvim.
Teixeira Pascoaes. Marânus. Lisboa: Assírio & Alvim.
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quinta-feira, 22 de julho de 2010
quarta-feira, 21 de julho de 2010
O Velho
Tantos rebanhos desfilaram, tantos pobres
E ricos cavaleiros - alguns,
Vindos de cidades distantes, haviam passado
A noite em cavas,
Acendido fogueiras contra os lobos. Vês
A cinza? Feridas redondas e negras, cicatrizadas.
Está coberto de cicatrizes, como a estrada.
Mais longe, no poço seco, jogavam
Os cães raivosos. Não tem olhos, está coberto
De cicatrizes, é sem peso: o vento sopra.
Nada distingue, tudo sabe,
Carcaça vazia de cigarra numa árvore oca.
Não tem olhos, nem mesmo mãos, conhece
A aurora e o crepúsculo, conhece as estrelas
O sangue delas não o alimenta, nem é sequer
Um morto, não é de raça alguma, não morreu,
Assim o esqueceremos, sem linhagem.
As unhas fatigadas de seus dedos
Traçam cruzes sobre lembranças corrompidas
Enquanto sopra o vento desordenado. Neva.
Vi a geada em volta dos rostos.
Vi os lábios húmidos, as lágrimas geladas
No canto dos olhos; vi a prega
Da dor junto às narinas e o esforço
Nas raízes da mão; vi o corpo encontrar seu fim.
Esta sombra não está só, pregada
A esta bengala que jamais se dobra,
E nem mesmo pode baixar, para estender-se.
O sono esmigalharia seu esqueleto
Entre as mãos das crianças que brincam.
Ordena como esses galhos mortos
Que se partem quando a noite cai e o vento
Desperta nos vales,
Ordena às sombras dos homens,
Não ao homem em sua sombra
Que ouve apenas as vozes baixas
Da terra e do mar, lá onde elas encontram
A voz do destino. Fica de pé,
Na margem, entre rodas de ossadas,
Entre montes de folhas mortas,
Gaiolinha vazia esperando
A hora do fogo.
E ricos cavaleiros - alguns,
Vindos de cidades distantes, haviam passado
A noite em cavas,
Acendido fogueiras contra os lobos. Vês
A cinza? Feridas redondas e negras, cicatrizadas.
Está coberto de cicatrizes, como a estrada.
Mais longe, no poço seco, jogavam
Os cães raivosos. Não tem olhos, está coberto
De cicatrizes, é sem peso: o vento sopra.
Nada distingue, tudo sabe,
Carcaça vazia de cigarra numa árvore oca.
Não tem olhos, nem mesmo mãos, conhece
A aurora e o crepúsculo, conhece as estrelas
O sangue delas não o alimenta, nem é sequer
Um morto, não é de raça alguma, não morreu,
Assim o esqueceremos, sem linhagem.
As unhas fatigadas de seus dedos
Traçam cruzes sobre lembranças corrompidas
Enquanto sopra o vento desordenado. Neva.
Vi a geada em volta dos rostos.
Vi os lábios húmidos, as lágrimas geladas
No canto dos olhos; vi a prega
Da dor junto às narinas e o esforço
Nas raízes da mão; vi o corpo encontrar seu fim.
Esta sombra não está só, pregada
A esta bengala que jamais se dobra,
E nem mesmo pode baixar, para estender-se.
O sono esmigalharia seu esqueleto
Entre as mãos das crianças que brincam.
Ordena como esses galhos mortos
Que se partem quando a noite cai e o vento
Desperta nos vales,
Ordena às sombras dos homens,
Não ao homem em sua sombra
Que ouve apenas as vozes baixas
Da terra e do mar, lá onde elas encontram
A voz do destino. Fica de pé,
Na margem, entre rodas de ossadas,
Entre montes de folhas mortas,
Gaiolinha vazia esperando
A hora do fogo.
Drenovo, fevereiro, 1937.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 113
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 113
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Santorim
Inclina-te, se podes, sobre o mar, obscuro, esquecendo
O som de uma flauta sobre pés desnudos
Que percorreram teu sono na outra vida, a devorada.
Sobre tua última concha, escreve, se podes,
O dia, o nome, o lugar
E lança-a ao mar, que ela desapareça.
Encontramo-nos desnudos sobre a pedra-pomes
Olhando as ilhas vermelhas mergulharem
No seu sono, em nosso sono.
Encontramo-nos desnudos, aqui, inclinando
A balança para a injustiça.
Tacão do vigor, querer sem falha, amor lúcido,
Desígnios que amadurecem ao sol do meio-dia,
Estrada do destino ao ruído da mão jovem golpeando as costas;
Nesse país que se rompeu, que não resiste mais,
Nesse país que outrora foi o nosso,
Ferrugem e cinza, as ilhas se devoram.
Altares destruídos
Amigos olvidados
Folhas de palmeiras na lama.
Deixa, se podes, que as tuas mãos viajem
Neste ângulo do tempo com o barco
Que tocou o horizonte.
Quando o dado bateu na eira,
Quando a lança feriu a couraça,
Quando o olho reconheceu o estrangeiro,
E se esgotou o amor
Em almas trespassadas;
Quando olhas à volta e encontras
Em tudo os pés ceifados
Em tudo as mãos inertes
Em tudo os olhos escurecidos;
Quando não há mais escolha, nem mesmo
A morte que desejavas tua,
Escutando algum grande grito,
O grito mesmo do lobo,
Teu débito;
Dexa que as tuas mãos viajem, se podes,
Separa-te do tempo enganador,
E abate-te
Como se abate aquele que leva as grandes pedras.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 97/8
O som de uma flauta sobre pés desnudos
Que percorreram teu sono na outra vida, a devorada.
Sobre tua última concha, escreve, se podes,
O dia, o nome, o lugar
E lança-a ao mar, que ela desapareça.
Encontramo-nos desnudos sobre a pedra-pomes
Olhando as ilhas vermelhas mergulharem
No seu sono, em nosso sono.
Encontramo-nos desnudos, aqui, inclinando
A balança para a injustiça.
Tacão do vigor, querer sem falha, amor lúcido,
Desígnios que amadurecem ao sol do meio-dia,
Estrada do destino ao ruído da mão jovem golpeando as costas;
Nesse país que se rompeu, que não resiste mais,
Nesse país que outrora foi o nosso,
Ferrugem e cinza, as ilhas se devoram.
Altares destruídos
Amigos olvidados
Folhas de palmeiras na lama.
Deixa, se podes, que as tuas mãos viajem
Neste ângulo do tempo com o barco
Que tocou o horizonte.
Quando o dado bateu na eira,
Quando a lança feriu a couraça,
Quando o olho reconheceu o estrangeiro,
E se esgotou o amor
Em almas trespassadas;
Quando olhas à volta e encontras
Em tudo os pés ceifados
Em tudo as mãos inertes
Em tudo os olhos escurecidos;
Quando não há mais escolha, nem mesmo
A morte que desejavas tua,
Escutando algum grande grito,
O grito mesmo do lobo,
Teu débito;
Dexa que as tuas mãos viajem, se podes,
Separa-te do tempo enganador,
E abate-te
Como se abate aquele que leva as grandes pedras.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 97/8
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XX
Andrômeda
Em meu peito abre-se de novo a chaga
Quando as estrelas baixam, misturando-se a meu corpo
Quando o silêncio cai sob o passo dos homens.
Estas pedras que afundam nas idades, até onde me arrastarão?
O mar, o mar, quem o esgotaria?
Vejo as mãos que sinalizam para o abutre, o falcão, toda manhã.
Ligado a este rochedo feito meu pela dor,
Vejo as árvores respirarem o obscuro repouso dos mortos
E os sorrisos, imutáveis, das estátuas. Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 83
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XVI
''E seu nome é Orestes.''
SÓFOCLES, Electra, 674.
Na arena outra vez, e sempre na arena!
Quantas voltas, e circuitos de sangue, sombrios
Degraus de rostos que olham...Esta multidão que me olha,
Que me olhava quando, de pé no carro,
Levantei alto a mão, radiante, e ela me aclamou!
A espuma dos cavalos me açoita. Quando chegarão
À meta? O eixo range, o eixo aquece, quando se incendiará?
Quando se romperão as rédeas, e os cascos
Afinal pisarão a relva tenra
Entre as papoulas onde, na primavera,
Colheste uma margarida?
Eram belos, os teus olhos. Mas não sabias o que olhasses
E eu mesmo não sabia o que olhar, eu que luto,
Justamente aqui, sem pátria - quantas voltas e circuitos ! -
E que sinto meus joelhos curvarem-se no eixo,
Nas rodas, na pista selvagem.
Comodamente dobram-se os joelhos quando os Deuses assim o
determinam.
Ninguém pode escapar; para que lutar, resistir?
Não podes escapar a este mar que te embalou, e que procuras,
Neste instante de luta, no sopro dos cavalos,
Com as canas que cantavam no outono ao modo lídio,
O mar nunca tornarás a ver, nem mesmo de passagem,
Voltando sem delonga à presença das sombras
Eumênides que se aborrecem e não perdoam.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 75
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 75
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terça-feira, 20 de julho de 2010
«[…] Disseram-nos como / no instante em que nascemos a noite se
confundia com o nosso corpo. Víamos / que maiores se tornaram
estas paredes, agora presas / ao rosto materno. A sombra de uma
criança acabaria / aí por encontrar / as suas primeiras imagens. […]
Os olhos não têm pressa; viam ainda essas / recordações que se
tornaram no primeiro / dos nossos segredos. Não era outra a suspeita
que / ficava / do instante em que nascemos, até nos afastarmos de /
um sono que para nós havia de ser / difícil; recebíamos essa dádiva
e vimos como nela se / iniciara / também a culpa. O que era para
nós o nascimento / senão o início de uma separação? […]» («Acerca
de um Estúdio I»).
Fernando Guimarães. O Anel Débil. Porto, Edições Afrontamento, 1992, pp. 7-8.
confundia com o nosso corpo. Víamos / que maiores se tornaram
estas paredes, agora presas / ao rosto materno. A sombra de uma
criança acabaria / aí por encontrar / as suas primeiras imagens. […]
Os olhos não têm pressa; viam ainda essas / recordações que se
tornaram no primeiro / dos nossos segredos. Não era outra a suspeita
que / ficava / do instante em que nascemos, até nos afastarmos de /
um sono que para nós havia de ser / difícil; recebíamos essa dádiva
e vimos como nela se / iniciara / também a culpa. O que era para
nós o nascimento / senão o início de uma separação? […]» («Acerca
de um Estúdio I»).
Fernando Guimarães. O Anel Débil. Porto, Edições Afrontamento, 1992, pp. 7-8.
«A poesia é o silêncio de um nome. Os caminhos a que ela nos conduz são tão próximos como a intimidade de qualquer linguagem. Mas não é em nós que essa linguagem existe. Há nela uma realidade própria que vem recusar a presença de quem é capaz de a pronunciar, porque só deste modo estaria ao nosso alcance revelá-la aos outros. E a essa realidade, que há-de ficar por fim repartida, se poderá chamar silêncio, para que a ninguém pertença.»
Fernando Guimarães. Casa: O seu Desenho, Lisboa, INCM, 1985, p. 10. Poesias Completas, ed. cit., p. 146.
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«Alguém procura o livro / submerso; aproxima-se dele com a luz dos meses, / as imagens, a submissa reflexão. Os dedos estremecem / ainda e encontram os pesados arbustos da idade / ou folhas abertas como anéis. O último conhecimento.» («Idade»)
Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.118
Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.118
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«Lê o poema, escuta a própria voz / dele, que não é minha, e só existe em nós.»
Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.57
Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.,p.57
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«A morte nunca vem pôr em questão a presença do homem no diálogo que mantém com o tempo. Quer dizer, cada um de nós nesse diálogo que é poesia – e, portanto, criação – não se destrói, porque isso não seria mais que fugir absurdamente à própria morte. E o nosso destino é encontrá-la.»
Fernando Guimarães. Poesias Completas vol. I: 1952-1988, Porto: Edições Afrontamento, 1994.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
Poema Inicial
Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.
Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 133
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.
Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 133
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Até à infância
Tive hoje, olhando o céu pela janela do meu quarto, a sensação de que ele se me entranhava até à infância. Nunca supus que em mim houvesse uma profundidade capaz de absorver uma tão extensa superfície azul, a qual vertiginosamente refluía por mim dentro, iluminando espaços de cuja existência eu nem sequer desconfiava. O certo é que, ao atingir maior profundidade, a cor se lhe alterou sensivelmente, embora a natureza dessa mutação não fosse propriamente de ordem física. Foi como se ao chegar a esse ponto, tendo a bomba da memória começado a trabalhar, a luz que sobre ele este mecanismo vomitava lhe alterasse a própria consciência e furiosamente arrancasse ao coração da terra aquele que, a um ritmo idêntico, eu sentia acelerar-se-me entre os ossos.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 107
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«Estava de novo na estrada, de novo ao volante do velho sedan azul, de novo só. Rita estava morta para o mundo quando eu lera a carta e me debatera com as montanhas de angústia que se tinham levantado dentro de mim. Olhara para ela, que sorria adormecida, beijara-lhe a fronte húmida e deixara-a para sempre, com um bilhetinho de terno adieu que lhe colara ao umbigo, pois de contrário seria capaz de não o ver.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.277.
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.277.
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«Tenho notado muitas vezes que possuímos tendência para dotar os nossos amigos com a estabilidade de tipo que as personagens literárias adquirem na mente do leitor. Por muitas vezes que reabramos o Rei Lear, jamais encontraremos o bom rei a emborcar a caneca de cerveja, numa grande farra, esquecidos todos os infortúnios, numa alegre reunião com todas as três filhas e os seus cãezinhos de regaço. (...)Sejam quais forem as evoluções por que passou esta ou aquela personagem popular entre as páginas de um livro, o seu destino está fixado no nosso espírito. Similarmente, esperamos que os nossos amigos sigam este ou aquele rumo convencional e lógico que para ele determinámos. (...)E jamais nos atraiçoará, sejam quais forem as circunstâncias. Temos tudo isso bem arrumadinho no nosso espírito, e quanto menos vemos determinada pessoa mais nos compraz verificar, sempre que dela temos notícias, como respeita obedientemente a ideia que fazemos a seu respeito. Qualquer desvio do destino que fixámos parece-nos não só anómalo, mas também contrário à ética. Preferíamos não ter conhecido o nosso vizinho, vendedor reformado de cachorros quentes, se vimos a saber que acaba de publicar o melhor livro de poesia do século.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.275
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.275
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domingo, 18 de julho de 2010
VII
Vento do Sul
O mar para Oeste se confunde com a linha das montanhas.
A nossa esquerda, o vento do Sul sopra deixando-nos loucos,
Esse vento que descarna os ossos,
Entre os pinheiros e as alfarrobeiras, nossa casa.
Grandes janelas. Grandes mesas
Para escrever as cartas que te havemos escrito
Desde há tantos meses, e que lançamos
Ao centro da separação, para a igualar.
Estrela da aurora, quando baixavas os olhos
Nossas horas eram mais doces que o azeite
Na chaga, mais ligeiras que a água fresca
No palácio, mais plácidas que a penugem do cisne.
Sustentavas nossa vida em tua mão.
Depois do pão amargo do exílio.
Se permanecemos à noite diante a parede branca
Tua voz nos chega como a esperança duma chama;
E esse vento de novo
Afia sua lâmina em nossos nervos.
Escrevemos-te cada qual as mesmas coisas
E cada qual fica silencioso diante o outro
A olhar cada qual para si, o mesmo mundo,
Trevas e claridade sobre a linha das montanhas
E tu.
Que espantarás esta tristeza de nossos corações?
Ontem à noite, um aguaceiro e hoje
Pesa de novo o céu encoberto. Nossos pensamentos
Como as agulhas de pinheiro, amassadas, inúteis
À porta de nossa casa, sob o aguaceiro de outrora,
Esforçam-se por levantar uma torre que desaba.
Nessas aldeias dizimadas,
Sobre o cabo entregue ao vento do Sul
Com esta linha de montanhas diante de nós, que te oculta,
Quem nos creditará por nossa vontade de esquecimento?
Quem neste fim de outono acolherá nossa oferenda?
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 57/8
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sexta-feira, 16 de julho de 2010
II
Outro poço, uma gruta.
Era-nos fácil dele retirar, outrora, ídolos e adornos,
Assim dando prazer aos seus amigos que nos eram ainda fiéis.
Partidas as cordas. Sulcos apenas na borda
Lembram-nos a felicidade desaparecida.
''Os dedos apalpam a borda'', disse o poeta.
Os dedos apalpam o frescor da pedra um instante
E a febre do corpo se espalha na pedra
E a gruta joga sua alma e a perde
A todo instante, cheia de silêncio, sem uma gota.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 47
Nota: ''Os dedos da borda'', disse o poeta. Dionysos Solomos, A mulher de Zante:''E os Justos, quantos são eles segundo a Santa Escritura? E, pensando nisso, meus olhos tombaram sobre minhas mãos, postas na borda do poço.''
Era-nos fácil dele retirar, outrora, ídolos e adornos,
Assim dando prazer aos seus amigos que nos eram ainda fiéis.
Partidas as cordas. Sulcos apenas na borda
Lembram-nos a felicidade desaparecida.
''Os dedos apalpam a borda'', disse o poeta.
Os dedos apalpam o frescor da pedra um instante
E a febre do corpo se espalha na pedra
E a gruta joga sua alma e a perde
A todo instante, cheia de silêncio, sem uma gota.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 47
Nota: ''Os dedos da borda'', disse o poeta. Dionysos Solomos, A mulher de Zante:''E os Justos, quantos são eles segundo a Santa Escritura? E, pensando nisso, meus olhos tombaram sobre minhas mãos, postas na borda do poço.''
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I
O mensageiro
Três anos o esperamos
Olhos fixos nos pinheiros,
Na margem e nas estrelas.
Estreitamente unidos à relha da charrua, à quilha do barco,
Queríamos achar a semente primeira
E que recomeçasse o drama tão antigo.
Voltamos a casa esfalfados,
Os membros partidos, a boca roída
Pelo gosto da ferrugem e do sal.
Ao despertar, navegamos para o Norte, estrangeiros,
Enterrados no coração dos nevoeiros
Por asas imaculadas de cisnes que nos machucavam.
Nas noites de inverno, o vento furioso do Leste deixava-nos loucos.
No verão, desorientávamo-nos na agonia do dia incapaz de morrer.
Trouxemos estes entalhes de uma arte bem humilde.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 45
Três anos o esperamos
Olhos fixos nos pinheiros,
Na margem e nas estrelas.
Estreitamente unidos à relha da charrua, à quilha do barco,
Queríamos achar a semente primeira
E que recomeçasse o drama tão antigo.
Voltamos a casa esfalfados,
Os membros partidos, a boca roída
Pelo gosto da ferrugem e do sal.
Ao despertar, navegamos para o Norte, estrangeiros,
Enterrados no coração dos nevoeiros
Por asas imaculadas de cisnes que nos machucavam.
Nas noites de inverno, o vento furioso do Leste deixava-nos loucos.
No verão, desorientávamo-nos na agonia do dia incapaz de morrer.
Trouxemos estes entalhes de uma arte bem humilde.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 45
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Um dia, Seferis descreveu-se nos seguintes termos: ''Sou um homem monótono e obstinado que, há mais de vinte anos, não se cansa de repetir as mesmas coisas.''
in 'Pequena História' da Atribuição do Prémio Nobel a Giorgos Seferis, pelo Dr. Kjell Strömberg
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 20/1
in 'Pequena História' da Atribuição do Prémio Nobel a Giorgos Seferis, pelo Dr. Kjell Strömberg
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 20/1
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quinta-feira, 15 de julho de 2010
quarta-feira, 14 de julho de 2010
O Demónio da Perversidade
«Hoje envergo estas correntes e estou aqui. Amanhã estarei desagrilhoado - mas onde?»
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 26
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 26
Os nós da escrita
Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 104
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A Memória
Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual -completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97
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Basalto
Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.
Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 91
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.
Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 91
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Apenas a folhagem
De novo o encontro onde as linguagens abrem umas sobre as outras, o rapaz. Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto, o que me põe a braços com as palavras. As raízes entram-lhe no sangue, abrem-lhe internos focos de paixão, não tarda que penetrem pela terra e cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhe os olhos - as visões ascendem tumultuosamente, como seiva a ferver, creio que por vezes trazem pedra misturada. Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado pela força da folhagem.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 50
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ARS POETICA
O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 44.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 44.
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O Tanque de Bashô
O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de
Bashô.
A água maravilha-se.
Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono,
o dia decompõe-se, o sangue explode contra a claridade.
Um nó de leite a nudez cresce pela água.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 40
Bashô.
A água maravilha-se.
Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono,
o dia decompõe-se, o sangue explode contra a claridade.
Um nó de leite a nudez cresce pela água.
Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 40
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terça-feira, 13 de julho de 2010
segunda-feira, 12 de julho de 2010
«(...) Poe consagrará, não obstante, a imaginação como única indutora do entusiasmo da alma, via para atingir aquilo que designou como «Beleza superna», distinguindo-se do entusiasmo do coração, induzido pelas paixões terrenas e sensuais, já que « o Céu não traz consolação/ Àqueles que ouvem só o eco ao coração» («Al Aaraaf»). Como se sugeriu, o coração percebe já uma realidade adulterada. Mas parece ser, por uma qualquer fatal necessidade, um órgão sobredesenvolvido no poeta ao ponto de ameaçar a sua perdição. Sem a hipersensibilidade emocional, porém, talvez ao poeta não fosse dada a urgência de se salvar pelo esforço de alcançar a beleza «do que outros mundos conterão» (cf. poema «Estrofes»). Daí o coração-lira, tenso e vibrátil, percorrendo a obra de Poe, presente até nas «fibras de alaúde» de um anjo habitado lá no «alto firmamento» («Israfel»), e culminado na visão cosmogónica de universos ciclicamente dilatados e contraídos « a cada pulsação do coração divino» em Eureka, o «poema-ensaio» que o autor escreveria no fim da vida (1848).
Introdução da Tradutora Margarida Vale de Gato
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 15/6
«(...) A obstinação com que este órfão, por várias vezes privado de figuras maternas substitutas, se desliga do princípio de realidade tem sem dúvida algo de juvenil, sobretudo na formulação dos seus primeiros poemas: «Eu não fui, desde infância/ Como outros eram...» («[Só]»).
Introdução da Tradutora Margarida Vale de Gato
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 13/4
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009., p. 13/4
«Poe tem do mundo a visão de um homem com os sentidos perturbados, em ebulição. O mundo é para ele como o espaço para o comedor de ópio. Para o escravo do ópio, o mundo surge ampliado, expande-se para além do ilimitável, acrescentando-se-lhe uma extensão interior, ou uma espécie de alma. Há uma sensação de superabundância no êxtase. E uma dor... Assim, para os olhos de Poe, o louco, o mundo é dilatado, horrível. A sua vida é a de um sonhador.» Fernando Pessoa
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009.
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Para mim a poesia não foi nunca uma intenção, mas uma paixão; e as paixões merecem ser tratadas com respeito; não devem - não podem - ser excitadas a nosso bel-prazer com vista às compensações triviais, e às honrarias mais triviais ainda, da humanidade.
Edgar Allan Poe. Obra Poética Completa. Trad. Introdução e notas de Margarida Vale de Gato. Ilustrações de Filipe Abranches. Tinta da China, Lisboa, 1ª ed. 2009.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
«A necessidade da poesia»
As palavras de Jean Cassou, citadasno incipit, não perderam actualidade: a poesia continua a ser «a mais perfeita expressão do homem, a sua mais alta operação espiritual». Se o seu fim «é explicar o homem, acompanhá-lo, exaltá-lo no decurso da sua prodigiosa ascensão», a poesia não pode, por outro lado, deixar de reflectir «a vida dramática do homem que a todo o custo procura humanizar o mundo, mudar a vida».
Vd. Árvore – folhas de poesia, Edição fac-similada. Introdução e Índices de Luís Adriano Carlos [«Uma Árvore no meio do Cosmos ou o Retorno do Sublime»], Porto, Campo das Letras, 2003. 1.º Fascículo -Outono de 1951. Texto «programático», impresso em itálico.
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quarta-feira, 7 de julho de 2010
«(…) Ó friorento Cristo atraiçoado / Pelo culto que te usurpa a leda fala! / Pois no caudal dos deuses és o facho / De uma meiga alegria que faltava. // Vieste para beber as nossas lágrimas / Com o mesmo amor com que bebias vinho, / Campos humildes, ó deus plebeu, lavravas / E eras nas bodas campestre bailarino, // Doce derriço das samaritanas, / Consolação de corações esquecidos, / Companheiro gentil de putas santas, / Irmão de adúlteras, estrela dos vadios».
Natália Correia. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II. Lisboa. Círculo de Leitores, 1993., p. 227.
Natália Correia. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II. Lisboa. Círculo de Leitores, 1993., p. 227.
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Ora uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.
(...)
Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente.
José Régio. Poesia I. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 49
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.
(...)
Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente.
José Régio. Poesia I. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 49
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«O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro.»
(p.11)
«A obra deixa que a terra seja terra.» (p.36)
Martin Heidegger . A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1990.
(p.11)
«A obra deixa que a terra seja terra.» (p.36)
Martin Heidegger . A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1990.
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segunda-feira, 5 de julho de 2010
o tempo percorre a espinha dorsal, a espinal medula
o céu está vermelho como o inferno
olha comigo como vamos juntos a lado nenhum
se eu fizesse sentido isto quereria dizer alguma coisa
escapar-me-á a entrelinha, o sobressalto
a esquina dos teus olhos virei-a há um segundo
e eu continuo a querer coisas que se apagam como fósforos
nenhum olhar me trará a tua luz
Susana Almeida
o céu está vermelho como o inferno
olha comigo como vamos juntos a lado nenhum
se eu fizesse sentido isto quereria dizer alguma coisa
escapar-me-á a entrelinha, o sobressalto
a esquina dos teus olhos virei-a há um segundo
e eu continuo a querer coisas que se apagam como fósforos
nenhum olhar me trará a tua luz
Susana Almeida
quinta-feira, 1 de julho de 2010
« (...)o que é preciso é compenetrarmo-nos de que, na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e nao querer que ele nos siga.»
Fernando Pessoa. Páginas Íntimas e de Auto-interpretação. Ed. por Jacinto do Prado Coelho e Georg Rudolf Lind, Lisboa, 1966, p. 116.
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terça-feira, 29 de junho de 2010
«Também há-de chegar o dia em que eu próprio nunca existi; nem eu, nem todos os fantasmas que me calcaram aos pés e me deixaram inanimado... E há-de chegar também o dia em que o mundo nunca existiu: o mundo, o sol e as estrelas...»
Teixeira Pascoaes. O Bailado. Obras Completas, VIII, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho. Lisboa. Livraria Bertrand, 1973.,p.189
Teixeira Pascoaes. O Bailado. Obras Completas, VIII, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho. Lisboa. Livraria Bertrand, 1973.,p.189
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«O pobre triste lê nas pedras a história da sua infância; e lê nos astros e nas nuvens, no voo das aves e nas entranhas do seu coração, porque ele é uma sombra humana que foi árvore, e áugure nos tempos virgilianos, e planeta na sua freguesia...»
Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes Ibid. O Pobre Tolo (elegia satírica), pp.247-248 e 251
Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes Ibid. O Pobre Tolo (elegia satírica), pp.247-248 e 251
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«Desapareço na escuridão interior. Um velho espectro me domina; adapta-se ao meu ser. Transfiguro-me, desconheço-me, não sou eu. Sou outra alma que revive; uma lembrança minha acordada com tal força, que se apodera de mim absolutamente. Sou ela e mais ninguém !" - pp.75-76; "Conclui : não existo; os tolos não existem. [...] Paira numa névoa abstracta e incolor em que ele e as outras pessoas se diluem e que forma as dimensões do Indefinido,depois das últimas estrelas" - p.77; "O tolo aparece e desaparece" - p.78; "O tolo é um mar e bóia em pleno mar... [...] Está no centro duma névoa impenetrável ao sol que a deve cercar dum infinito resplendor... »- p.79.
Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes op. cit. Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita.
Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes op. cit. Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita.
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«Somos uma turba e ninguém: um ninguém que vive, porque é sangue e carne, e existe porque é esqueleto ou pedra; e uma turba de espectros que nos acompanha desde a Origem, e é a nossa mesma pessoa multiplicada em mil tendências incoerentes, forças contraditórias, em vários sentidos ignotos...»
Paulo Borges. Heteronímia e Carnaval em Teixeira de Pascoaes op. cit. Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo (versão inédita), p.215.
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segunda-feira, 28 de junho de 2010
Ariane
Agora falarei dos olhos de Ariane.
Falarei dos teus olhos, pois de Ariane
só talvez haja memória
entre as pernas de Teseu.
De Ariane ou não, os olhos são azuis
de um azul muito frágil,
como se ao fazer a cor uma criança
tivesse calculado mal a água.
É um azul diluído, o azul dos teus olhos
diluído em duas ou três lágrimas
— uma delas minha, pelo menos uma,
e as outras tuas, as outras de Ariane.
Falarei destes olhos. Os de Ariane,
deles deixarei que seja Teseu a falar.
Falarei desse azul que não vi em Creta,
pois passei a infância numa terra sem mar,
falarei desse azul que não vi em Naxos,
mas vi em Delfos onde, entre colunas,
passava os dias divinamente a fornicar,
indiferente ao oráculo de Apolo.
De resto, que deus grego não me aprovaria?
Que outra coisa se pode fazer na Grécia?
Ali podeis fornicar com toda a gente
— é clássico e barato —,
até com os coronéis.
Agora falarei dos olhos gregos de Ariane,
que não são de Ariane nem são gregos,
desses olhos que se fossem música
seriam a música de água dos oboés,
falarei apenas dos olhos do meu amor,
desses olhos de um azul tão azul
que são mesmo o azul dos olhos de Ariane.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Falarei dos teus olhos, pois de Ariane
só talvez haja memória
entre as pernas de Teseu.
De Ariane ou não, os olhos são azuis
de um azul muito frágil,
como se ao fazer a cor uma criança
tivesse calculado mal a água.
É um azul diluído, o azul dos teus olhos
diluído em duas ou três lágrimas
— uma delas minha, pelo menos uma,
e as outras tuas, as outras de Ariane.
Falarei destes olhos. Os de Ariane,
deles deixarei que seja Teseu a falar.
Falarei desse azul que não vi em Creta,
pois passei a infância numa terra sem mar,
falarei desse azul que não vi em Naxos,
mas vi em Delfos onde, entre colunas,
passava os dias divinamente a fornicar,
indiferente ao oráculo de Apolo.
De resto, que deus grego não me aprovaria?
Que outra coisa se pode fazer na Grécia?
Ali podeis fornicar com toda a gente
— é clássico e barato —,
até com os coronéis.
Agora falarei dos olhos gregos de Ariane,
que não são de Ariane nem são gregos,
desses olhos que se fossem música
seriam a música de água dos oboés,
falarei apenas dos olhos do meu amor,
desses olhos de um azul tão azul
que são mesmo o azul dos olhos de Ariane.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Maria Helena Vieira Da Silva ou o Itinerário Inelutável
Minúcia é o labirinto muro por muro
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia —
Itinerario é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável —
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens
Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto
Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio
Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra Poética III., p. 130
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia —
Itinerario é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável —
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens
Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto
Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio
Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra Poética III., p. 130
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Romance de Cnossos
Este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
David Mourão-Ferreira. As lições do fogo.,p. 68-70 Obra poética, 1996, pp.305-306.
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
David Mourão-Ferreira. As lições do fogo.,p. 68-70 Obra poética, 1996, pp.305-306.
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domingo, 27 de junho de 2010
«Seguimos, portanto, para o Leste, eu mais arruinado do que revigorado pela satisfação da minha paixão e ela respirando saúde e com a estrutura ilíaca ainda tão escorrida como a de um rapaz, embora tivesse aumentado cinco centímetros à altura e três quilos e meio ao peso. Estivéramos em toda a parte. Na realidade, não víramos nada. E hoje dou comigo a pensar que a nossa longa viagem serviu apenas para macular, com um longo rasto de logo, o encantador, confiante e sonhador país que então, em retrospectiva, não era mais para nós do que um amontoado de mapas muito usados, guias de viagens desfeitos, pneus velhos e os soluços dela na noite - todas as noites, todas -, assim que eu fingia adormecer.»
Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.182
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sábado, 26 de junho de 2010
«[…] e se elevávamos a voz era para que se / pudesse falar acerca / de
tudo o que se tornara frágil como este corpo / reflectido apenas /
trazido pela nossa sombra. Nada mais é preciso. /Recordamos / como
teria existido outrora um rosto que só a água / percorria.»
(«Acerca de Narciso»)
Fernando Guimarães. Tratado de Harmonia. Poemas.Porto. Editora Justiça e Paz.1988.,
p. 20.
tudo o que se tornara frágil como este corpo / reflectido apenas /
trazido pela nossa sombra. Nada mais é preciso. /Recordamos / como
teria existido outrora um rosto que só a água / percorria.»
(«Acerca de Narciso»)
Fernando Guimarães. Tratado de Harmonia. Poemas.Porto. Editora Justiça e Paz.1988.,
p. 20.
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Ausência
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais — um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim — e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.
Nuno Júdice
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais — um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim — e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.
Nuno Júdice
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Minotauro
Conhecemos os sulcos abertos pelas searas, a curva
do estio nos seus flancos, quando desceram levemente
sobre a mesma dor as folhas ligeiras da manhã,
o rumor que nasce pela cicatriz das palavras.
As mãos quase esquecidas ergueram um rosto
e começaram a procurar a fresca imagem da alegria,
o pão ácido e levíssimo que se derrama pelos lábios,
o fogo, as delgadas volutas que se fecham no peito.
Assim reunimos os pulsos, abandonamos na água
o clima pressentido, os círculos de um corpo
ferido pela vigília submersa do minotauro,
enquanto sete jovens gregos e sete donzelas
vinham ao seu encontro e ele alimentava-se
de uma calma, recente adolescência.
Fernando Guimarães. Poesia (1952-1980)., p.103
do estio nos seus flancos, quando desceram levemente
sobre a mesma dor as folhas ligeiras da manhã,
o rumor que nasce pela cicatriz das palavras.
As mãos quase esquecidas ergueram um rosto
e começaram a procurar a fresca imagem da alegria,
o pão ácido e levíssimo que se derrama pelos lábios,
o fogo, as delgadas volutas que se fecham no peito.
Assim reunimos os pulsos, abandonamos na água
o clima pressentido, os círculos de um corpo
ferido pela vigília submersa do minotauro,
enquanto sete jovens gregos e sete donzelas
vinham ao seu encontro e ele alimentava-se
de uma calma, recente adolescência.
Fernando Guimarães. Poesia (1952-1980)., p.103
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Lunário
«E no centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar. E sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte – embora seja sempre absurdo morrer.»
Al Berto. Lunário. Assírio & Alvim, 2ª Edição, Lisboa, 1999., p.161
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sexta-feira, 25 de junho de 2010
RECITATIVO IV
«Há qualquer coisa de imprevisível num labirinto,embora seja um caminho em que se procura representar a uniformidade, a simetria ou a identidade que parece existir em todas as diferentes partes que o constituem. Quando principiamos a percorrê-lo, sabemos que o espaço — no qual a diversidade e a multiplicidade das coisas encontram sempre uma possibilidade de se organizarem — como que deixa existir, pois a sua realidade acaba por ser posta em causa, ao confrontar-se com o que seria, finalmente, o afastamento a que toda a realidade passava a estar sujeita. Fácil se torna reconhecer que cada caminho se identifica com a própria ausência daquele que lhe é imediatamente anterior e, ao mesmo tempo, do que fica imediatamente a seguir. É por isso que sabemos que, por mais que caminhemos, nem por isso deixamos de correr o risco de não avançarmos, de não alcançarmos o fim que queríamos apesar de tudo atingir.
Perdido que foi tudo o que podia servir de referência, somos levados a reconhecer que o labirinto não está, afinal situado num espaço que, como já dissemos, se vai tornando ausente. E, ao desaparecer esta referência última, somos levados a concluir que ele é em nós próprios que existe acabando, assim, por se confundir cada vez mais com a nossa presença. Compreendemos, então, que todos os lugares são um labirinto, não para encontrarmos uma saída, mas para nele nos encontrarmos.»
Perdido que foi tudo o que podia servir de referência, somos levados a reconhecer que o labirinto não está, afinal situado num espaço que, como já dissemos, se vai tornando ausente. E, ao desaparecer esta referência última, somos levados a concluir que ele é em nós próprios que existe acabando, assim, por se confundir cada vez mais com a nossa presença. Compreendemos, então, que todos os lugares são um labirinto, não para encontrarmos uma saída, mas para nele nos encontrarmos.»
Fernando Guimarães. Tratado de harmonia. Poemas, p. 44
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quarta-feira, 23 de junho de 2010
«(...)Fausto, perante a irreversibilidade (certamente que modalizada) de seu destino, face ao que Lacan chamaria de “segunda morte”, busca na beleza de uma mulher suporte para a sua angústia. E assim surge Helena de Tróia, personagem da Ilíada, comparada ao Paraíso perdido, como aquela que é capaz de devolver a alma de Fausto.
Foi este o rosto que lançou ao mar mil barcos
E às imensas torres de Tróia lançou fogo?
Faz-me imortal com um beijo, doce Helena.
Sugam-me a alma os lábios dela: vede onde voa.
Vem, Helena, vem devolver-me a alma!
Aqui quero viver, que o Céu está nestes lábios,
E tudo é impuro o que não é Helena
MARLOWE, C. (1987), p. 133.
Aristides Alonso. A queda para o alto: o Fausto de Marlowe. Comum - Rio de Janeiro - v.9 - nº 22 - p. 39 a 55 - janeiro / junho 2004.
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