segunda-feira, 4 de outubro de 2010

«— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los.
E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não alteraria!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!»




Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.6

Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu
nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…»


Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«Se ficares com a capa do teu próximo em penhor, restitui-la-ás antes do pôr do sol, porque não tem mais nada para se cobrir, é o vestuário com que cobre o seu corpo; com que dormiria ele?»

Bíblia Sagrada, Êxodo, p.111

domingo, 3 de outubro de 2010

Uma corola

Em algum lugar
esplende uma corola
de cor vermelho-queimado
metálico

não está em nenhum jardim
em nenhum jarro
da sala
ou da janela

não cheira
não atrai abelhas
não murchará

apenas fulge
em alguma parte alguma
da vida



Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

O Jasmim

me invade as ventas
no limite do veneno

assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto
fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas

entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
o que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor ou eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas
[ o cheiro da alfazema?

Nasce o perfume com as
[florestas
um silêncio a inventar-se nas
[plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos
[folhas
o aroma
que se torna arbusto
[ - um jasmineiro.

Nos jardins dos prédios
[ (na rua senadir Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis
[ alfazema

(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque:
já o da alfazema
dorme manso nas gravatas
[de roupas

em São Luís
e reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que
[ontem à noite
arranquei flores de um
[jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
- um lampejo entre
[as mãos-
pela rua
sorvendo-lhe o aroma
[selvagem
enquanto foguetes Tomahawk
[caíam sobre Bagdá.





Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O dia dos fantasmas

Amanhã é o dia dos fantasmas. Vão
erguer-se como pó
e desatar às gargalhadas.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que
caíram na terra das batatas. Não posso
negar que eu
sou culpado desta morte dos rebentos.
Sou culpado!
Amanhã é o dia dos fantasmas, que trazem
na fronte o meu tormento,
que possuem o meu trabalho diário.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que dançam
como carne no muro do cemitério
e me mostram o Inferno.
Porque tenho eu de ver o Inferno? Não há outro caminho
para Deus?

Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho
passa pelo dia dos fantasmas,
passa pelo Inferno.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 25
« (...)Com um grande esforço, mesmo com desespero, Bernhard procura conquistar um papel de poeta e um mundo poético que sugere a mortalidade e o pó do mundo vulgar.»
«O jovem poeta sente-se fora do seu tempo e indigno. Mas não quer deixar a poesia. E prefere percorrer, como que numa ronda clássica, o campo e as cidades, olhando a existência humana aqui e além. E chega à conclusão de que a podridão produz a decomposição da vida no campo e de que as cidades calcinadas, despedaçadas, morrem. Há por detrás das aparências um outro mundo, mas este não é o mundo nobre e elevado que se esperava, mas sim um mundo de podridão e de aniquilamento.»

Hugo Diettberner: «Der Dicher wird Kolorist. Thomas Bernhards Epochensprung», in Text+Kritik, Heft 43, Thomas Bernhard, 3. Auflage: Neufassung, November 1991, p.12/13
S'io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma per cìo che giammai di questo fondo
Non tornò viva alcun, s'i'odo il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.



Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre
[a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos de
[uma noite
E restaurantes com serradura e conchas
[de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento
[enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita.

(...)


T.S.Eliot. A canção de amor de J. Alfred Prufrock. Edição bilingue do poema e de um texto crítico de E. Pound. Trad. de João Almeida Flor. Assírio & Alvim, Lisboa, 1985, p.17

Joanne Woodward with Paul Newman


quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«...Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará
oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.2

terça-feira, 28 de setembro de 2010

«Acontece que, tendo-me voltado, nesta ocasião, para o meu percurso, eu me dei conta de que, para não me perder de mim próprio, como na história célebre do Pequeno Polegar dos Irmãos Grimm, fui deixando muitas pedras brancas no meu caminho, mais numerosas do que eu podia imaginar, algumas hoje já desconhecidas de mim próprio. Hoje, nem essas pedras brancas me servem para eu, através delas, reinventar o meu próprio passado. Mas elas estão lá, podem ser lidas por outros, revisitadas como objecto de curiosidade ou objecto de interesse, se o tiverem.»


Eduardo Lourenço a 21 de Janeiro de 2003, por ocasião de uma homenagem pelos seus sessenta anos de vida literária e filosófica.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Green Night

(Summer, 1982)

We walked down the path to breakfast.
The morning swung open like an iron gate.

We sat in Adirondack chairs and argued
for hours about the self—it wasn’t personal—

and the nature of nature, the broken
Word, the verse of God in fragments.

We trotted back and forth to readings.
The trees were the greenest I had ever seen.

We cut bread from a large brown loaf
at a long wooden table in the mountains.

A farmer hayed the meadows
and the afternoon flared around us.

Pass the smoky flask. Pass the cigarettes:
twenty smoldering friends in a package.

We swam in the muddy pond at dusk.
The sky was a purple I had never seen.

Someone was always hungover,
scheming with rhymes, hanging out.

Nothing could quench our thirst for each other.
At the bonfire, we flamed with words.

The houses were named after trees.
I slept with someone at the top of a maple.

It was a green night to be a poet in those days.
We didn’t care if the country didn’t care about us.


Edward Hirsch
Wagner. Horas tenho também de fantasia,
Mas aspiração tal em mim não sinto.
De bosques e de prados cedo farto,
Nunca invejei aos pássaros as asas.
Como o prazer do estudo outro nos leva
De livro em livro, de uma a outra página!
Assim se tornam belas, tediosas
Noites de inverno, e calorosa vida
Os membros nos aquece, e, ai!, se acaso
Um douto pergaminho desenrolas,
É o céu que sobre ti baixar se digna!


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 55

domingo, 26 de setembro de 2010

"Boston Common (Men Sleeping on Grass)"


Com teu rir descarnado, tu, caveira,
Que me dizes, senão que em outro tempo,
Como o meu, delirou teu pobre cérebro,
A luz do dia procurou, com vasto
Desejo de verdade, e vagou triste
Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Mas corações não ganhareis vós nunca,
Se o próprio coração vos ficar mudo.»



Negrito
J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 35
( Toma o livro e pronuncia misteriosamente o signo do
Espírito. - Reluz uma chama avermelhada. O Espírito aparece na chama)


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 33

37.

«Contudo esperamos que este morrer
Seja ilusão só, a enganar;
Que o rio que ora passa a correr
Encontre, inda que longe, um mar;
Que para além do frágil saber
Uma vida maior vá guardar.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
« Como alargado em ópio, ao meu olhar
Meu próprio ser um mistério se fez assim;
A Vida no medo já vem habitar
E a Loucura, como o sopro, está em mim.»

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
«Qualquer burro escoucinha o leão caído
Que, em vida, imóvel o fazia temer,»


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 55



«Gastando com um filho ao colo as forças que parecem falhar,»



(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 49
« Tarde, tarde de mais aprenderás agora,
Já com a voz baixa e de humilde porte,
Já com a alma esmagada sem o garbo de outrora,
O pior mal que os deuses nos dão em sorte.»


(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 47
«À profunda agonia sujeitado;
O que sente o trinco do portal da razão
Cair, com um som de conclusão,
Como algo que se fecha e para sempre passado.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 45
«Ora bem, não sei porquê eu tinha vontade de sair à noite. Em geral prefiro deitar-me e levantar-me cedo, mas há dias em que se sente a necessidade dum pouco de álcool, dum pouco de calor humano, de companhia. Devo ser um sentimental.»
Vernon Sullivan. Morte aos feios. Traduzido do americano por Boris Vian. Versão portuguesa de António Sabler. A Regra do Jogo, Edições, 1981., p. 5

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

«É necessário ter o caos cá dentro, para gerar uma estrela.»


Nietzsche

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

17.

Homens do presente


Homens do presente, nada do passado,
Antes de serdes as coisas que vemos,
Quem podia ter sabido ou pensado
Que seríeis hoje aquilo que temos?
Ah, passantes pela mesma via,
Quem pôde pensar-vos antes deste dia?

Homens do presente e pó de amanhã,
Ao passar dos anos aonde ireis ter?
Que rude mudez ou ânsia em pressa vã
Irá registar vossa dor ou prazer?
Ondas ou cristas do mar desta vida,
Quem vos pensará passado este dia?

Só o génio pode o fogo atiçar
Que na natureza em vós abrigais;
Só o génio pode a lira tocar
E erguer vosso nome aos céus dos mortais;
O génio pode a morte romper
E o nada de ontem num tudo verter.

Mas a virtude, como os choros humanos,
Pelos areais depressa bebida,
Mergulha no pó dos passados anos
E nem sabereis onde está escondida.
Que o génio, então, possa ser laureado;
Que o pó de amanhã seja eternizado.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

domingo, 19 de setembro de 2010

14.

Soneto

Pudesse o que penso exprimir e dizer
Cada pensamento oculto e silente,
Levar meu sentir moldado na mente
A ser natural perante o viver;

Pudesse a alma verter, confessar
Os segredos íntimos em meu ser;
Grande eu seria, mas não pude aprender
Uma língua bem, que expressasse o pesar.

(...)


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

13.

Cá como lá


(...)


«Pois quando no pensar o escuro pesa
E sobre a tua alma a noite desce,
Não regressam de novo os teus pesares?
Não fica a tua alma presa às sombras?
Não sentes em ti que o medo cresce?»




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

Briony

2.

A morte do titã


Do grande ventre da noite a manhã rompeu em dor,
Sobre a terra palpitante ronca a feroz a trovoada,
O Titã acorda enfim, sua cara ensanguentada,
E o rude carvalho arranca, brutal, em seu estertor.

Em agonia mortal delira e, ao seu rugido,
Aves tremem, a costa afunda-se em mar e de terror
Rios secam, montes sucumbem no seu interior,
Rochedos fendem e o manto das nuvens é rompido.

Uiva o relâmpago, os mares extravasam em estrondo;
O gigante vacila e então, com embate hediondo
Cai, e dos tronos brilhantes as estrelas irrompem.

Caiu; a terra alarmada, em louca fúria ferida,
Fendeu, rompeu, vergou; no ar, o eco da praga ouvida;
Mas no céu, o som continuou a sorrir em seu desdém.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11

«(...) a obra literária deve ''educar o gosto''. Gosto que o público, por definição,não possui e que é, portanto, dever do romancista formar.»


Fedeli, M. A mão que balança o berço. Funções do feminino em Júlio Dinis. São Paulo, 2007 Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,.p.34
«E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal.»


Castanheiro, em A Ilustre Casa de Ramires
«Toute oeuvre est réponde à une question, et la question qu'à son
tour doit se poser l'interprète, consiste à reconnaître [...]ce que
fut la question d'abord posé, et comment fut articulée la réponse»

Jean Starobinski

sábado, 18 de setembro de 2010

«Ardo como de mosto embriagado;
Ânimo sinto de arrojar-me ao mundo,
Da terra os gozos partilhar e as penas,
Lutar com a tormenta , e ao estrondo
De naufrágio cruel suster o rosto!»


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 32/3
«Teu mundo é isto?! Chama-se isto um mundo?!
E perguntas ainda porque ansioso
Teu coração no peito confrange,
E oculto sofrer inexplicado
A energia vital em ti comprime?
Em lugar de vivente natureza.
Em cujo seio Deus criou os homens,
Rodeiam-te entre a podridão e o fumo
Somente ossadas nuas e esqueletos.»



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 30/1

Nothing To Hold On To


Vejo só como os homens se afadigam.



J. W. Goethe. Fausto.Negrito Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 22
240 Falar de inspiração pouco aproveita,
Nunca ao homem que hesita ela se mostra.
Se vos dais por poetas, que a poesia
A vosso mando ceda. O que é preciso
Já de mais o sabeis; licor bem forte
245 Desejamos beber; pois sem demora
No-lo dai preparado. Não se cumpre
Amanhã o que hoje não for feito,
E nem um dia só perder se deve.
Um homem resoluto, do possível
250 Lança mão com ardor, fugir não o deixa
E na empresa prossegue, assim lhe é a força.
Sabeis que cada qual nos nossos palcos
Exp'rimenta o que quer; pois neste dia
Prospectos não poupeis nem maquinismos.
255Da lua e sol servi-vos, e aos centos
Espalhai as estrelas. Fogo e águas,
Rochedos, bosques, pássaros não faltem.
Do bastidor no acanhado espaço
A criação inteira se desdobre,
260E caminhai, com rapidez medida,
Desce o céu, pela terra, ao fundo inferno.


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 19/20
«Paixões, razão, engenho e sentimento
Em vossos cantos brilhem; mas cuidado,
Que neles a loucura também entre.



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 15
Trazeis convosco de bem doces dias
A saudosa lembrança. Sombras caras
Ressurgem numerosas; qual remota
Tradição esquecida, vão volvendo
Primeiro amor, antigas amizades;
A memória cruel com dor recorda
A marcha errante que seguiu a vida,
E nobres peitos lembra, que, frustrados
Pela sorte de dias deleitosos,
Antes de mim a vida terminaram.


Dedicatória


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 11

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sonho de prisão

No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).

Canti Orfici

Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Para a Nossa Senhora da Ponte quem é quem é que acendeu a lâmpada – sente-se
No quarto um cheiro a podre: há
No quarto uma chaga vermelha languescente.
As estrelas são botões de madrepérola e a noite veste-se de veludo:
E treme a noite fátua: é fátua a noite e treme mas há
No coração da noite há,
Sempre uma chaga vermelha languescente.


Canti Orfici



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Nemzedékek (1969) · Generations


« (...) sobre a relação entre Literatura e Loucura que é, desde sempre, uma relação complexa e fecunda . Na literatura italiana do século XX, por exemplo, ela manifesta-se através da voz de grandes escritores, como Italo Svevo, que em La coscienza di Zeno cria a personagem do alienado e do «anormal» que é mais «normal» de muitos outros. Ou de Luigi Pirandello que, à volta da temática da loucura, constrói as suas melhores obras teatrais; ou de Cesare Pavese, que igualmente fala de marginalização social e do «ser diferente»; ou ainda Italo Calvino, que cria a ambígua personagem de Palomar, um alieno neste mundo, um estranho.
São todos autores que falam da loucura. Dino Campana não fala dela, mas vive-a na pele, no corpo martirizado, na alma atormentada e recria-a através do poder mágico das palavras.
Nele, a Vida transforma-se, definitivamente, em Literatura.»


Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 115
«Segundo Sebastiano Vassalli, escritor e estudioso de Campana, a presumida loucura do poeta muito tem a ver com os seus sucessivos ataques de sífilis, uma doença que ele terá contraído já em 1915. Doença inconfessável, naquela altura considerada «vergonhosa» e pela qual nunca foi verdadeiramente tratado. A sífilis destrói-lhe inexoravelmente o sistema nervoso e envenena-lhe o sangue, mas no manicómio preferem curá-lo com repetidos choques eléctricos, tanto que ele, ironicamente, se chama a si mesmo «o homem eléctrico»



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 114
«Ma se voi avete un qualsiasi bisogno di creazione non sentite che monta intorno a voil’energia primordiale di cui inossare i vostri fantasmi?» (1)

«Mi volevano matto per forza» (2)

Dino Campana


1 «Mas se vós tiverdes uma qualquer necessidade de criação não sentireis que sobe à vossa
volta a energia primordial que dá ossos aos vossos fantasmas?»
2 «Queriam à força que eu fosse louco »

O ESTUDANTE DE LATIM

«Das várias coisas boas que havia na loja em grandes quantidades, poucas delas subiam as íngremes escadas, pelo menos para Karl Bauer, porque a comida da Sra. Kusterer era pouca e nunca o saciava. Sem ser isso, viviam ambos muito amistosamente e ele tinha o quarto como um príncipe tem um palácio. Ninguém o incomodava, podia fazer o que quisesse e ele fazia muita coisa. Os dois abelheiros na gaiola seriam a coisa menos importante, mas ele também tinha uma espécie de oficina de marceneiro e no fogão fundia o chumbo e zinco e no Verão tinha licença e lagartos numa caixa - eles desapareciam sempre pouco tempo depois através de buracos que nunca eram os que apareciam na rede. Além disso tinha também o violino e quando não estava a ler ou a carpinteirar, estava seguramente a tocar violino a qualquer hora do dia ou da noite.
E assim o jovem passava com prazer todos os dias e nunca se aborrecia, até porque não lhe faltavam livros que copiava quando encontrava qualquer coisa. Lia bastante mas, na realidade, era-lhe tudo um pouco indiferente, a não ser os contos de fadas e lendas, assim como as tragédias em verso.»


Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.19/20
« É ela quem, quando lhe apraz,
Ordena que às árvores subam as lagartas.»





Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.85

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um rio longo e rigoroso...

Sobre os dois beijos

«O facto de não podermos um com o outro tinha uma boa razão. Ele tratava-me com sobrançaria ou com uma bonomia insuportavelmente irónica, e como o meu entendimento ultrapassava a minha idade, esta maneira desprezível de lidar comigo magoava-me profundamente com o decorrer do tempo. Como bom observador também eu tinha descoberto algumas das suas intrigas e segredos, o que obviamente lhe era muito desagradável. Por vezes tentou ganhar-me através de um comportamento hipocritamente ansioso, mas eu não caía nessa. Se eu fosse um pouco mais velho e mais esperto, tê-lo-ia apanhado através da sua redobrada gentileza e tê-lo-ia feito cair - pessoas mimadas e com sucesso são tão fáceis de enganar! Mas eu tinha crescido apenas o suficiente para o odiar, e era ainda demasiado criança para conhecer outras armas como a aspereza e a obstinação, e em vez de lhe devolver as setas que me tinha mandado, devidamente envenenadas, enterrava-as mais profundamente na minha própria carne com a minha indignação impotente.»

Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.12

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Család (1959) · Family


1

Sobre a Morte


Quando penso que os dias a passar
Em passos breves, mas em peso sentidos,
Minh'alma levam a espaços temidos
E a juventude à morte vai dar,

Por estranho e triste me pareça
Que em breve (ora vivo) eu vá morrer,
Vaga, incerta dor que pesa em meu ser
Faz com que a mente em pavor desfaleça.

Contudo mesmo em raiva, choro e pena
Cada instante é consolo ao coração
E com riso acolherei cada gemido:

Do fundo desespero a esp'rança acena.
Na morte não vejo a libertação -
É melhor o mau que o desconhecido.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11
Tu, Senhor Deus de minha pátria,
Tu, que nasceste entre pastores,
Dá alento à minha voz, fogo às minhas palavras.
Tu o sabes: em meio à verdura,
Aos raios do sol, à orvalhada,
Quando os figos amadurecem
Vem o homem como um lobo e pilha a árvore toda.


Canto Primeiro: A granja das almezas



Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.43

A Lamartine

Te consagro Miréia: é ela a flor dos meus anos;
A minha alma e o meu coração;
-Uva da Crau, com as folhas todas, que te envia,
Humildemente, um aldeão.


Maillane (Bouches du Rhône), 8 de setembro de 1859.


Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.39

domingo, 12 de setembro de 2010

Segunda Meditação

Existe uma grande diferença entre todos os homens e Charlot. Todos os homens se riem dos peixes coloridos e Charlot chora ao ver os peixes coloridos.
Em nenhuma estética se utilizou o pranto desta maneira tão pura.
O pranto foi sempre uma consequência. Charlot faz do pranto uma causa, fonte isolada sem relação com o tema que o produz. Pranto redondo. Pranto em si mesmo.
O riso oferece-se aos peixes coloridos porque o riso é abundante e não exige esforço. Após oferecer o riso à mulher, ao céu e às brisas alegres da primavera, ainda resta o riso para os elefantes e para os peixes coloridos, os calmos e muito distantes peixes coloridos.
O pranto é outra coisa. Oferece-se ao amor e ao morto que se despede. Quem chora gasta-se como uma vela. Todos são avaros das suas lágrimas por esta razão.
(...)
Frederico García Lorca. A Morte da mãe de Charlot. Trad. Fernando Ilharco Morgado. Farândola, Paris, 1999.,p. 17/8

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

«E ofertar o sangue morno de recém-nascidos.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.53
FAUSTO - Tivesse eu tantas almas como estrelas há no céu,
Todas elas haveria de dar por Mefistófeles.
Por ele serei o Imperador do mundo,
Farei uma ponte através dos ares instáveis
Para com um bando de homens passar o oceano;




Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.49

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tennessee Williams: Um Eléctrico Chamado Desejo

[Cena 3; I, 3]

Trovão. Entram Lúcifer e quatro diabos. Fausto dirige-se-lhes.

FAUSTO - Agora que a sombra triste da noite
Rompe do mundo antárctico até ao céu,
Embaciando o empíreo com o seu bafo negro,
Para ver o toldado rosto de Oríon,
Começa, Fausto, os teus encantamentos,
E vê se ao teu apelo os diabos obedecem,
Pelos sacrifícios e orações que lhes ofertaste.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45
Se negamos ter pecado, a nós próprios nos enganamos e ne-
huma verdade existe em nós.
Mas parece então
Que temos de pecar e, por conseguinte, morrer.
Ai...temos de morrer, e morrer para todo o sempre.
Como chamais a esta lei? Che sarà, sarà:
O que for se há-de ver. Teologia, adeus.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.35

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sebastião Salgado, San Juan, Chimborazo, Ecuador, 1979


Sobre os autores

«É a partir da apresentação dos seus escritos, expostos ao olhar do mundo, que devemos ajuizar da sua capacidade, mas não dos seus costumes nem da sua pessoa.»



Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 42
«Os aprendizes (os que não são capazes de uma leitura aprofundada), a esses vi-os enfarinhar a cara, travestir-se e contorcer-se em movimentos e esgares selvagens para nos preparar para o riso.»


Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 36
«De cem membros e rostos que cada coisa tem, pego num, só para o largar, ou para o aflorar, por vezes para penetrar nele até ao osso. Dou-lhe um apontamento, não o mais exaustivo mas o mais profundamente que sei. E prefiro sempre captá-los por algum ponto de vista inusitado. Atrever-me-ia a tratar a fundo qualquer matéria, se me conhecesse menos. Semeando aqui uma palavra, ali outra, amostras destacadas da peça, soltas, sem desígnio nem promessa, não cuido tratar bem a questão, nem de me imiscuir nela, sem variar, quando me agrada; e entrego-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma mestra, que é a ignorância.»
«Deixemos de tomar para desculpa as qualidades externas das coisas: é a nós que cabe responder por elas. O nosso bem e o nosso mal só a nós os devemos.»




Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 16/7

Montaigne: Dos Livros

Pensa que é mais importante aprender a reflectir do que a adquirir e expor conhecimentos, pelo que define a leitura «como uma conversa com homens desaparecidos».

(...)

Percebeu que não há saber sem atenção e paixão; só uma relação pessoal e crítica com os livros produz homens verdadeiramente livres; percebeu que não podemos ler todos os livros e que a relação com o saber é um exercício individual. Exercício de leitura, reflexão e recriação.


cit. Conceição Moreira in Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 11/14

domingo, 5 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até)
................................................................................................................
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu sendo
eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.


Mário Cesariny. Cesariny Uma Grande Razão os poemas maiores. Assíro & Alvim. Lisboa, 2007.,p.141
Entra um diabo.
Ordeno-te que vás mudar de forma;
Estás horrendo demais para me servir:
Vai e volta feito velho franciscano,
Que parecer santo é o que mais convém a um diabo.
Sai o Diabo.

Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és a flor nem luto nem acalanto nem estrêla
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espêlho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral, rasgando-os os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem




Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.147

ars magna

Devo ter corredores por onde ninguém passa devo
ter um mar próprio e olhos cintilantes
devo saber de cor o cetro e a espada
devo estar sempre pronto para ser rei e lutar
devo ter descobertas privativas implicando viagens
ao grande imprevisto
de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do
teu peito o animal que inanimado canta
devo ser Júlio César e Cleópatra a força de Dniepper
e o carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não




Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.147

manuel

A cidade a que tanto serviste de modêlo morreu
Esta rosa cortada para ti morreu
O teu irmão morreu
A noiva e o amigo e a alegria da sêde e da fortuna
morreram


A bem dizer estás vivo no deserto


Foi um luto gradual um luto que só foi luto de
repente
um dia
ninguém estava a dar por isso
e que alargou os teus braços essa forma especial
de pensamento que trazes colada ao peito para destinar países

É verdade Manuel! É verdade! É verdade!


Eu, de luto para luto, fico mais criança.
Havias de brincar à criança que sou
em volta desta mesa - e que servisse de exemplo!

Não falas? Não. Não falas
Os fantasmas não falam logo ao primeiro encontro
e tu és um fantasma COM TODA A FAMÍLIA VIVA
apesar do que digo, para variar


Que crueldade, não é? Mesmo variada.
Antes a tua sombra e essa rosa cortada.
Boa noite Manuel vou-te concretizar




Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.145/6

arte de ser natural com eles

Senhor Fantasma, vamos falar


Tudo foi e tudo acabou
numa cidade venezuelana
Boa parte de mim lá ficou
não vês senão o que voltou
no princípio desta semana


Senhor Fantasma, em que é que trabalha?

Em luzes e achados
chãos e valados
barcos chegados
comboios idos
Procuro os meus antepassados
altos hirsutos penteados
mudos miúdos desprevenidos

Senhor Fantasma, a vida é má
muito concerto pouca harmonia


A vida é o que nos dá
Não quero outra filosofia,

Senhor fantasma, diga lá
que estrêla se deve seguir?


(Mestre Fantasma: Ah, ah, ah!)


Senhor Fantasma, vamos dormir


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.138/9

XVI

Duas aranhas esperam a mosca
com radiadores ventiladores rosa-chá
passagem ao estado de amora
alguns coupons
e várias teses de combate moderno

A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso

Mas duas aranhas esperam a mosca
com serviço de Turismo Dlão
lume aceso
página de sentença judiciária

Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
c0'a mosca que foge espavorida no vento

Agora à luz das baratas e dos apetrechos para campo
duas aranhas esperam a aranha
e esta é que não escapa
à ligeira tremura de ter vindo
pois nenhuma aranha escapou jamais às aranhas
nenhuma não sendo mosca fugiu
ao que mandam os deuses




Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.104/5

A Man Escaped


XIV

hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitéio onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora êste foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt...uma poção de estricnina
deu-lhe a molesa foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio Itálico


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.102

Au Hasard Balthazar (1966)


Madrugada

Os lábios e as mãos do vento
o coração da água
um eucalipto
o acampamento das nuvens
a vida que nasce cada dia
a morte que nasce cada vida

Esfrego as pálpebras:
o céu anda na terra.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.99

Aldeia

As pedras são tempo
O vento
séculos de vento
As árvores são tempo
as pessoas são pedras
O vento
volta-se sobre si mesmo e enterra-se
no dia de pedra

Não há água mas os olhos brilham



Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.98

On Reading


Túmulo de Amir Khusrú

para Margarida e António Gonzalez de Léon

Árvores carregadas de pássaros
sustêm a tarde a pulso.
Arcos e pátios. Entre vermelhos
muros, verde peçonha, um tanque.
Um corredor leva ao santuário:
mendigos, flores, lepra, mármores.

Túmulos, dois nomes, suas histórias:
Nizam Uddin, teólogo andarilho,
Amir Khusrú, língua de papagaio.
O santo e o poeta. Austero.
brota um luzeiro duma cúpula,
evola-se o odor do tanque.

Amir Khusrú, papagaio ou rouxinol:
um e outro em cada instante,
obscura a mágoa, a voz diáfana.
Sílabas, errantes incêndios,
vagabundas arquitecturas:
todo o poema é tempo e arde.




Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.83
VI

Falar-te-ei uma linguagem de pedra
(respondes com um monossílabo verde)
Falar-te-ei uma linguagem de neve
(respondes com um leque de abelhas)
Falar-te-ei uma linguagem de água
(respondes com uma canoa de relâmpagos)
Falar-te-ei uma linguagem de sangue
(respondes com uma torre de pássaros



Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.72
«Se tu és o sol que se levanta
eu sou o caminho de sangue.»




Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.70

sábado, 28 de agosto de 2010

Pedras soltas

7. Paisagem

Os insectos atarefados,
os cavalos cor de sol,
os burros cor de nuvem,
as nuvens, rochas enormes que não pesam,
os montes como céus desmoronados,
a manada de árvores bebendo no arroio,
todos estão aí, felizes no seu estar,
frente a nós que não estamos,
comidos pela raiva, pelo ódio,
pelo amor comidos, pela morte.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.49

Pedras soltas

3. Biografia

Não o que pôde ser:
mas o que foi.
E o que foi está morto.


4. Sinos na noite

Ondas de sombra, ondas de cegueira
sobre uma fronte em chamas:
molhai o meu pensamento, e apagai-o!


6. Visão

Ao fechar os olhos vi-me:
espaço, espaço
onde estou e não estou.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.47
«os deuses bebem sangue, devoram homens.»



Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.47

Lição de coisas

2. Máscara de Tláloc
talhada em quartzo



Água petrificadas.
Dentro, o velho Tláloc dorme,
sonhando tempestades.

4. Deus surgindo
de uma orquídea de barro

Entre as pétalas de argila
nasce, sorridente,
a flor humana.

6. Calendário

Contra a água, dias de fogo.
Contra o fogo, dias de água.

9.Criança e o pião

De cada vez que o joga
cai, exacto,
no centro do mundo.



Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.43

Pedra-de-toque

Aparece
Ajuda-me a existir
Oh inexistente pela qual existo
Oh pressentida que me pressente
Sonhada que me sonha
Aparecida desvanecida
Vem via ascende desperta
Rompe diques avança
Moita de brancuras
Maré de armas brancas
Mar sem freio galopando na noite
Estrela guiada
Esplendor que te cravas no peito
(Canta ferida fecha-te boca)
Aparece
Folha em branco tatuada de outono
Formoso astro de ondulados movimentos de tigre
Vagaroso relâmpago
Fincada águia estremecida
Cai pluma flecha engalanada cai
Faz soar a hora do encontro
Relógio de sangue
Pedra-de-toque desta vida


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.42

sexta-feira, 27 de agosto de 2010


Hoje, como dizer, deu-me para uma ligeira comoção...

Bem, eu como não consigo suportar por muito tempo a comicidade destas criaturas ditas «os bem-aventurados» (para mim, claro, as bestas do céu velho), vou-me encostar (ou talvez, reconfortar) ao ombro do Cesariny:

«Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu sendo
eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.»
Quando decidirem colocar-me uma coroa de flores na cabeça, lembrem-se (aviso, lembrem-se), que eu aprecio realmente a natureza humana, e, claro está, até para a hipocrisia funda é preciso ter olho para vendê-la. De resto, ó meus amores, sal é o que vos falta no sebo.

P.S - Hoje é dia de repetida «Entrevista com o vampiro».

AOS QUE PARECEM NOS ALVÉOLOS,
nenhuma flor aquieta
as asas futuras.

Assim, onde outrem oficia,
coloquêmo-nos
fora da sua égide...

ainda que uma besta se desenrosque
até à cauda,
se engolfe em nossa vigília.



Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p. 107
«Uma palavra que está sempre na
boca transforma-se em baba.»


Provérbio Burundi
GOSTO DOS AMIGOS
que modelam a vida
sem interferir muito;
os que apenas circulam
no hálito da fala
e apõem, de leve,
um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
entre quem são
e quem eles me parecem,
o meu agrado inclina-se
para o mais reconciliado,
ao acordar,
com a sua última fraqueza;
o que menos preside à vida
e, à nossa, preside
deixando que o consuma
o núcleo incandescente
dum silencioso votivo
de que um fumo de incenso
nos liberta.


Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p.82

PÉGASO

À saída do estádio
pressentimos na brisa
a chegada dos signos da noite

Indeciso, o cavalo
transpõe o fosso do horizonte,
sob a lua e um alto
expoente de pó

Inverte-se o casco percussor
à beira da fonte de Hélicon,
e o cavalo grego
deita-se para morrer

Um frémito distende-lhe as asas;
no olhar anterior ao mito,
aflui agora
a mais pura estância
das lágrimas.

Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p.75
«De pouco serve a ida ao lugar de ausência.»


Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p.39

Russia in color, a century ago

A group of Jewish children with a teacher in Samarkand, (in modern Uzbekistan), ca. 1910.


With images from southern and central Russia in the news lately due to extensive wildfires, I thought it would be interesting to look back in time with this extraordinary collection of color photographs taken between 1909 and 1912. In those years, photographer Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii (1863-1944) undertook a photographic survey of the Russian Empire with the support of Tsar Nicholas II. He used a specialized camera to capture three black and white images in fairly quick succession, using red, green and blue filters, allowing them to later be recombined and projected with filtered lanterns to show near true color images. The high quality of the images, combined with the bright colors, make it difficult for viewers to believe that they are looking 100 years back in time - when these photographs were taken, neither the Russian Revolution nor World War I had yet begun. Collected here are a few of the hundreds of color images made available by the Library of Congress, which purchased the original glass plates back in 1948.



terça-feira, 24 de agosto de 2010

Destino de Poeta

Palavras? Sim, de ar,
e no ar perdidas.
Deixa-me perder entre palavras,
deixa-me ser o ar nuns lábios,
um sopro vagabundo sem contornos
que o ar desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.19

Lago

Tout pour l'oeil, rien pour les oreilles
Ch. B

Entre áridas montanhas
as águas prisioneiras
repousam, cintilam
como um céu caído.

Nada senão os montes
e a luz entre as brumas;
água e céu repousam,
peito a peito, infinitos.

Como o dedo que afaga
uns seios, um ventre,
estremece as águas,
delgado, um frio sopro.

Vibra o silêncio, bafo
de pressentida música,
invisível ao ouvido,
apenas para os olhos.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.17

Teu nome

Nasce de mim, de minha sombra,
amanhece em minha pele,
aurora de luz sonolenta.

Pomba brava teu nome,
tímida sobre o meu ombro.


Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.15

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Carnaval de Salvador na década de 1950

Era difícil, complicada a empresa; tão complicada que Deus não a pôde simplificar...Não pôde...nem soube. O filho, quando nasce, martiriza, tortura a mãe...mata-a muitas vezes...e não ri ao chegar ao mundo...Não ri...chora...grita...

Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...

Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados. É um crime matar, preceituam as leis. Crime muito maior é formar assassinos.

O filho devia amaldiçoar os pais. Foram eles que o condenaram à existência...ao suplício eterno...

Só há uma coisa pior que a vida: é a morte.

Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que tinha mais força do que o Criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos; com os sentidos, ninguém quer ser hipócrita...

A morte era a recompensa da vida. Os homens que estragam tudo, estragam também essa recompensa: inventaram a alma, o Inferno e o Céu.

Só se compreende o compreensível. O Universo é incompreensível para os homens. Por isso estes o admiram, pasmam alarvamente diante dessa chocha «maravilha»...

A vida faz doer. E a morte?


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p. 54/5
- Saber quem uma pessoa é; é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos; saber como pensa, como executa. Numa noite, não se pode fazer tanto. A maioria das vezes, nem ao cabo de muitos anos se logra conhecer um companheiro de muitos anos. Por isso à tua pergunta «Quem é?», respondi: «Não sei». O seu nome, sei-o: Marcela, a filha da condessa.


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.17

sábado, 21 de agosto de 2010

Keir Dullea as the Marquis de Sade


- Meu amigo - confessou o escultor -, já não penso o mesmo acerca da literatura. Considerava-a dantes como uma futilidade, apenas digna dos espíritos fracos. Hoje compreendo que laborava num erro. A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas.
Se pudéssemos conjugar as nossas duas artes faríamos vida. Felizmente é possível...


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.12
Pensando em Raul, dizia para mim próprio: «Será apenas um original que se deseja salientar, que faz galas nas suas originalidades; ou será um louco?»
Um louco, parecia-me a hipótese mais verdadeira. Mas no espírito do meu amigo havia tais incoerências que eu, vacilando, terminava por concluir: «É uma criatura incompreensível...um excelente rapaz...um grande artista...»


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.9/10

Filme: Salò ou 120 Dias de Sodoma


-Foi por isso justamente que me armei em escultor: faço estátuas. As minhas estátuas não são como as outras, meu velho, têm vida...Vida, percebes?...Em vez de fazer carne com a minha carne, faço vida com as minhas mãos; isto é, com o meu cérebro, que as conduz. Faço vida, o tempo passa sobre as minhas estátuas, não passa sobre mim...
(...)
-Pateta...Mulheres?Para quê?Não tenho as minhas estátuas, não tenho mármore?...Dizem vocês os literatos cretinos, descrevendo o corpo de uma mulher ideal: «As suas pernas bem torneadas e nervosas, eram duas colunas de rijo mármore; o seu colo alabrastro puro.» Sim, apesar da vossa grande imbelicidade , vocês compreendem que a suprema beleza da carne está em parecer pedra ...Ora eu tenho pedra; para que hei-de querer carne, pateta? E a dizer isto, acariciava os seios de uma maravilhosa dançarina grega.


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.8/9
Raul era dotado de um bizarro carácter; ora alegre, ora triste; ora falador - sem poder estar um minuto calado - , ora conservando-se largo tempo silencioso, imerso em profunda meditação. Por coisas insignificantes, assaltavam-no às vezes terríveis cóleras: lembro-me de que um dia , só por não querer adoptar uma opinião sua, me atirou com um insulto obsceno, acompanhado de um pesado tinteiro de vidro que, se me acertasse, podia muito bem dar cabo de mim. Mas as suas cóleras logo abrandavam; a chorar, pedia perdão. Eu perdoava-lhe sempre...
Frequentemente tinha ideias esquisitas, de uma esquisitice sinistra. Por exemplo, uma noite - depois de um dos seus costumados períodos de mutismo -. exclamou de súbito:
-Gostava que morresse toda a gente...todos os animais e que só eu ficasse vivo...
-Para quê? - perguntei espantado.
-Para experimentar o medo de ver completamente só, num mundo cheio de cadáveres. Devia ser delicioso! Que calafrio de horror!...



Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.5

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

« é enquanto infinitos que nos sentimos limitados.»


Maurice Blanchot

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

movimento

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu a leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e é mais movimento?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.63

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca a janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.22/3

II.

não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro. canso o corpo,
enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.

lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam
a casa, mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísce-
ras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de
mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das
cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para
atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a
vida um do outro.

o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio...capaz de ordenar
e desordenar o mundo, o canto sublime das miragens.
mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias come-
ça a zumbir à roda da cabeça.

abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando tocava um sorriso por um
verso, ou por um insulto.
imitávamos assim a felicidade.

o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do
passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gar-
galhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...

e a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se
com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões des-
feitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pál-
pebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessi-
vas, de fome, de violência, de sangue, de aquedutos, de
esperma, de barcos, de comboios, de gritos...talvez...tal-
vez uma voz.


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 66/7

II morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de novembro de 1996

(...)

« de nada me serviria inventar outra vez o rio das pala-
vras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cris-
tais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite...olhando o bri-
lho da lua jorrando águas.

o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar.
reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as cons-
telações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me. ouço músi-
cas...espirais de som subindo aos subúrdios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não
foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.



Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 65

carta de emile

a minha cidade tinha um rio
donde sobre hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos

as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória

mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver

nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos

tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 48/79

aqueronte

ensanguentou-se a fonte dos sonhos
por isso fecha os olhos e vê
como o desejo acabou - vê a prata suja
envolvendo os amantes
no meio de sedas cintilantes espelhos e fogos
onde o sussurro das horas se perde
na trepadeira fatal da paixão


como um protege o outro - os dois procurando
um sémen limpo e
nenhuma palavra será adiada ou dita como antes


como a terra é um veludo a escorrer da boca
para a boca - triste néctar envenenado
contra os lábios que se despendem da casa
dos afectos
dos amigos
das coisas insignificantes e
da rua que não voltarão a ver

isolados dos outros
pernoitando na dormência ávida dos rios avançam
deitados no fundo da pesada barca - etéreos
entram com vagar na cidade desmoronada
na fissura deste tempo pestífero
que já não lhes pertence



Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 26/7

casa

durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia

esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo

olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta contigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos




Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 22/3

recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte


vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 9

sábado, 14 de agosto de 2010

É muito cedo

Grave imobilidade do silêncio. Altera-o o cacarejo de um galo. Também a passada de um homem de trabalho. Mas o silêncio continua.
De repente, uma mão distraída no meu peito sentiu o latejo do meu coração. Não deixa de ser surpreendente.
E de novo - oh, os dias de outrora! -, as minhas recordações, as minhas dores, as minhas intenções caminham agachadas para se crucificarem nos caminhos de espaço e de tempo.
Assim, pode transitar-se com facilidade.



Pablo Neruda. Nasci para nascer. Publicações Europa-América. Trad de Eduardo Saló (texto em prosa), Dr. Mário Dionísio (poemas), 1878., p.20

Laura & Adrienne Hair


Elegia X - Sonho

Imagem da que amo, mais do que ela própria,
Cuja impressão clara no meu fiel coração
Me torna Medalha sua, e a obriga a amar-me,
Como os reis às moedas, a que o seu selo impõe
O valor: vai, e retira daqui o meu coração
Que se tornou grande e bom demais para mim.
As Honras oprimem os espíritos fracos, e aos sentidos
Embotaram-nos coisas fortes: se maiores, menos as vemos.

Quando partires, e a Razão partir contigo,
Então a Fantasia será Rainha e Alma, e tudo;
Ela oferece alegrias mais mesquinhas do que tu,
Mais convenientes e proporcionadas.
Então, se sonhar que te tenho, eu tenho-te,
Pois todas as nossas alegrias são só fantasia.
Assim fujo à dor, porque a dor é verdadeira
E o sono, que fecha os sentidos, exclui tudo o resto.

Depois de tal fruição irei acordar
E, além do acordar, nada mais lamentarei.
Ao amor farei Sonetos ainda mais gratos
Que se mais honras, choros e dores fossem gastos.
Mas querido coração, e mais querida imagem: ficai.
Ah!, as veras alegrias no melhor são sonho só.
Apesar de ficares, esvais-te depressa demais:
Pois até no início o Pavio da vida é um morrão.

Cheio do amor dela, possa eu antes tornar-me
Louco com um grande coração, que idiota sem nenhum.





John Donne. Elegias Amorosas. Edição bilingue. Trad. Helena Barbas. Assírio & Alvim., p.53/4

Elegia VII - Tutela

(...)

Não te havia ensinado ainda o alfabeto
Das flores, como podem, dispostas e atadas
Com imaginação, em segredo e sem palavras
Entregar mutuamente recados mudos.

...

Com tantas dívidas, tu não és mais dele - que
Tendo-te retirado dos baldios do mundo,
Te enclausurou para não seres vista, nem veres -
Do que minha; pois com delícias amorosas
Te refinei tornando-te um Paraíso de bênçãos.
Tuas graças e boas palavras são criaturas minhas;
Do conhecimento e da vida, as árvores plantei em ti,
E delas, Oh, irão estranhos provar? Deverei, então,
Cinzelar e esmaltar Prata para em Vidro beber?
Amolecer a cera para os selos alheios?Domar um potro
E abandoná-lo depois, tornado um cavalo rodado?




John Donne. Elegias Amorosas. Edição bilingue. Trad. Helena Barbas. Assírio & Alvim., p.42/3

Idris Khan, rising series… after eadweard muybridge ‘human and animal locomotion’, (2005)


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