"Jorge, dirige o departamento de Hematologia do Instituto de Oncologia de Lisboa. Um dia, chega Clarisse, que sofre de leucemia em estado avançado. Apaixonam-se. Jorge tenta salvá-la. Clarisse morre, apesar de todos os esforços de Jorge - que, cada vez mais desencantado, prossegue os seus trabalhos, com experiências de rotina, que sabem serem inúteis...
Observações: "Domingo à Tarde utltrapassa imediatamente as dificuldades surgidas na adaptação e, na sua concepção estética, na sua novidade formal, até na sua ousadia, vai bem mais longe do que, no plano literário, o romance de Fernando Namora. Ainda com uma forte componente experimental, é obra fria, neutra, dominada pela morte que persegue a personagem do médico no seu trabalho do Instituto de Oncologia, e fornece a Macedo amplas oportunidades para revelar o seu interesse pelo mundor - ele também, figura em certa medida, marginal e de gostos esotéricos - conseguiu dominar, melhor do que os outros, certas deficiências técnicas e, servindo o livro, deu dele uma adaptação que à generalidade do público pareceu singularmente escorreita."
João Bénard da Costa, in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa
«Gente perdida, sem saber para onde vai, sem saber o que quer ou o que os espera. O que podem eles fazer contra o destino? Há um acidente. Um funeral. Um homem que já não é bem-vindo. O seu caminho cruza uma mulher e o seu filho, ambos com medo; um outro homem (marido, ex-marido?), caçador, alguém que cria medo. Andam à volta uns dos outros, como animais enjaulados num zoológico. (E às tantas a mulher é veterinária.) Há algo de malsão a trabalhar em Mariphasa, algo de maligno, de mais assustador do que qualquer filme de terror. Mas há também um conforto estranho: o de sabermos que esta gente é como nós. Talvez sejamos nós — gente perdida, transtornada, que já não sabe mais para onde se virar, gente perdida, assustada, à beira de explodir, à beira de libertar algo. O quê? Não sabemos, Sandro Aguilar não no-lo diz. Prefere deixar-nos ali a boiar neste plasma líquido, neste fluido amniótico de vidas com medo, de pesadelos nocturnos, sempre de noite, sempre às escuras, sob o signo do sangue.»
Que saudades eu já tinha da minha alegre casinha tão modesta como eu. Como é bom, meu Deus, morar assim num primeiro andar a contar vindo do céu.
O meu quarto lembra um ninho e o seu tecto é tão baixinho que eu, ao ir para me deitar, abro a porta em tom discreto, digo sempre: "Senhor tecto, por favor deixe-me entrar."
domingo, 21 de agosto de 2016
''Tem 67 anos. Há cerca de oito teve uma doença grave, julgou que iria morrer, apostou em viver até ao último fôlego e ganhou a aposta. Viver é, sempre foi, um modo de estar. Filmar é outra coisa: “As coisas da vida são de outro mundo, se as fixarmos perdem-se. A matéria dos filmes vem de outro lugar.” Esse outro lugar pode surgir da palavra, como a palavra de Fernando Pessoa em “Livro do Desassossego”, ou na beleza pura de “Os Maias”, de Eça de Queirós. Em 40 anos realizou 26 filmes, entre documentários, curtas e longas-metragens.
Encontrámos João Botelho, o cineasta malabarista que se tornou personagem desta cidade, em trânsito entre Lisboa e o mundo para apresentar em vários festivais o seu último filme “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, espécie de homenagem ao homem com quem aprendeu a fazer cinema, e que ainda não se estreou por cá. Entretanto, prepara-se para avançar para “Peregrinação”, que será rodado no Oriente, nas mesmas paragens por onde andou Fernão Mendes Pinto. Durante um bom par de horas tentámos perceber de que matéria é feito este ser de corpo frágil e energia eletrizante. O cinema aconteceu-lhe por um acaso, ou melhor, pelo efeito catalisador de uma “catástrofe, no sentido em que é um acontecimento muito forte, como uma revolução, pode mudar uma vida”, dirá ele. No cinema assume-se radical. “A história não conta, é tudo aldrabice.” Mas quando não está está a filmar, são os pequenos fragmentos das histórias que descobre nas pessoas e em bocados de cidade que se revelam na efémera intensidade dos dias e das noites que o espantam e o fazem mover. “A vida é uma coisa tão maravilhosa que não se pode falar sobre ela.” E se tivesse de a contar em filme? Propomos. Botelho acede.
Descreva-nos a sua infância como se a estivéssemos a ver no cinema. Nasci no frio. Lamego, 1949. Vivi lá até aos dez anos e depois fui para Vila Real. O frio era terrível, contaminava tudo. Pés com frieiras e botas difíceis de calçar. Os meus colegas iam para a escola descalços com os pés enterrados na neve. Até ao quinto ano do liceu não se podia usar calças compridas, andávamos de calções e joelhos à mostra para enrijecer. Lembro-me de ter acontecido a revolta na Hungria e de ouvir histórias que nos aterrorizavam: “Os comunistas raptam crianças para fazer sabão.” Naquele tempo a ideia da pobreza era muito forte.
Em sua casa também? Em minha casa não havia pobreza. A minha família vinha de Vila Real, de Trás-os-Montes. Os meus pais eram professores primários e foram dar aulas para Lamego. Em Lamego, o meu pai era um homem muito respeitado. Educava os filhos dos ricos e frequentava o clube da terra que era bastante chique e elitista. Muito menino, eu ia para o clube jogar pingue-pongue e, nas tardes de domingo, havia uns bailes completamente idiotas, com os rapazes sentados de um lado e as raparigas com as mães do outro. Tínhamos de atravessar a sala para convidar a menina para dançar e mandávamos o gordo à frente para ser o primeiro a levar tampa... Mas quando penso em Lamego a memória mais forte que se atravessa é o frio e o silêncio. Se tivesse de filmar a infância era isto.
A imagem do frio já é forte. Porquê o silêncio? Coisas terríveis aconteceram. A primeira, foi a morte da minha mãe quando eu tinha 6 anos. Depois a do meu irmão, com 20 anos, num acidente de aviação. Ele era o mais velho e eu o mais novo. Tinha 9 anos quando ele morreu. As minhas irmãs tomaram conta de mim e uma das imagem mais antigas que guardo é de uma delas a cantar e a embalar-me. Mas também há boas memórias. As vindimas, por exemplo, em casa de uns tios numa quinta perto da Régua onde eu ia passar o verão. Eram férias fantásticas. Crianças a dormir em camas muito largas, umas para os pés outras para a cabeça. De manhã levantava-me e não precisava de beber leite. Serviam-me um caldo de cebola para depois poder comer as uvas. As uvas eram peganhentas e colavam-se aos dedos. Ainda hoje, quando vou ao coração do Douro, o que me agarra são os cheiros. Cebolas cruas com sal, o cheiro das uvas e das giestas.
Gostava de voltar à imagem do silêncio. A morte da mãe ficou marcada pela ausência. Qualquer coisa sobre a qual nunca se falava porque naquele tempo não se podia falar da dor. Portanto, instalou-se um silêncio que tomava conta de tudo. Refeições inteiras onde ninguém dizia uma única palavra. Beijávamos a mão ao pai, e dávamos também um beijo pela mãe. Mais tarde, pelo irmão.
O silêncio era a regra do seu pai? Sim. Tornou-se muito duro. Tinha quarenta e poucos anos quando lhe morreu a mulher com um cancro. Foi uma coisa muita rápida e violenta. Nunca mais se casou. A minha avó veio tomar conta de nós e chamávamos-lhe “mãezinha”. À minha volta só havia mulheres — a minha avó, as três irmãs — e o trauma dessa ausência da mãe acabou por ser colmatado por um certo conforto feminino. Eu era o bebé da casa e elas protegiam-me. O primeiro livro que li foi “Os Desastres de Sofia”, da Condessa de Ségur, que era considerado literatura para raparigas.
E o irmão? Fazíamos 11 anos de diferença. Estava no Exército, na Força Aérea, e só aparecia em casa de vez em quando. Era a pessoa que vinha. Namorava com uma rapariga de Lamego e anunciava a sua vinda com acrobacias de jato sobre o rio Balsemão: “Olha o Raul Zé!” Quando chegava era uma festa. Mas nunca ficava mais de quatro dias, por isso já era uma figura ausente depois da morte da mãe. Mas, claro, para mim era um herói. Um dia recebemos uma comunicação a anunciar que tinha havido um acidente. Muitos anos mais tarde, descobrimos que o acidente tinha sido num exercício de fogo real em que um obus atingiu o jato. Na altura o caso foi abafado.
Quando foi fazer filmes inscreveu nalgum deles essas memórias? Nunca misturei, não gosto do cinema de resolução. Gosto do cinema que inquiete e perturbe, mas que não resolva nem dê consolo. O meu único filme que pode ser um bocadinho mais biográfico é o “Adeus Português” (1985). Foi um dos poucos em que escrevi o guião. O pai do filme, também vem da província e chama-se Raul como o meu pai. Nesse filme as pessoas praticamente não falam e o silêncio que o atravessa é o mesmo que havia em minha casa, embora ali o luto seja o da Guerra Colonial.
Como é que esses acontecimentos o marcaram? Coisas simples. Adapto-me bem às circunstâncias, rapidamente tive consciência de que queria estar sozinho. Mal acabei o liceu, ainda não tinha 17 anos, quis afastar-me da família. Naquela época já vivia em Vila Real, onde passei a adolescência, e esse tempo já foi muito diferente do tempo de Lamego. Eu era muito bom em desenho e matemática e deveria ter ido para arquitetura. Mas teria de ir para o Porto, onde tinha família. Por isso escolhi estudar Engenharia em Coimbra onde não conhecia ninguém. Como recebi uma bolsa da Gulbenkian a minha decisão não foi questionada. Cheguei a Coimbra católico, todas as sextas-feiras ia comungar, e ainda fui assediado por uns grupos de extrema-direita, onde estavam o Lucas Pires, o Júdice, o Alarcão, que me convidaram para umas festas na Quinta das Lágrimas. Depois há uma série de coisas que se transformam por pressão dos acontecimentos.
Em que ano estamos? 1966. Depois apanhei a crise de 69 e fui responsável por uma série de grafitos e cartazes da faculdade. Aí comecei a minha atividade como gráfico, que me acompanhou parte da vida. Há fotografias dessa época, eu com 18 anos e de boina guevarista, a pintar nas escadas da universidade.
Acabou o curso? Não. A universidade era um pesadelo, deixei de ir às aulas. No terceiro ano, comecei a partilhar casa com outros estudantes. Rapazes e raparigas, o que não era nada comum. Uma das boas coisas boas do tempo de Coimbra, e que mudou tudo, foi ter crescido num ambiente de aprendizagem coletiva. Gosto muito das coisas coletivas. Eu era um rapaz de província, cheguei e fui aprendendo... Havia um tipo com uns óculos muito grossos que recebeu um disco do Miles Davis e nós íamos todos lá para casa ouvi-lo em grupo. Depois o Zé Manuel Pinto dos Santos, semissurrealista e doido por literatura, obrigava-nos a ler em voz alta o “Quarteto de Alexandria”, do Lawrence Durrell. No Círculo de Artes Plásticas, onde um Barreto, o irmão do António, dava umas aulas, aprendi a desenhar. Mas o mais importante foi o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), onde comecei por ser um ator vagamente estúpido e acabei na direção.
Que ambições tinha? Nenhumas. Era cinéfilo. No primeiro ano havia aquela coisa sinistra da praxe. Se a partir das seis da tarde um caloiro fosse apanhado fora de casa podia ser espancado. Como sou galdério desde que nasci, todas as noites me enfiava no cinema para não estar na rua. Outra coisa importante que fiz logo desde muito cedo foi ter começado a viajar à boleia pela Europa — Dinamarca, Suécia, Inglaterra... Ia sozinho, trabalhava em restaurantes ou em fábricas e depois gastava o dinheiro na cinemateca de Paris. Quando o dinheiro acabava, voltava para Portugal na camioneta dos imigrantes. A viagem demorava 36 horas, vinha sem um tostão no bolso mas os imigrantes eram generosos e davam-me de comer durante a viagem.
A cinemateca de Paris era já o desejo de aprender cinema? Não, era vício, como o vício dos cigarros. Só queria ver, ver, ver. Chegava a ver seis filmes por dia sozinho na sala. Vi “A Paixão de Joana D’Arc”, do Dreyer, pela primeira vez, a segurar os olhos para não adormecer. O desejo de fazer filmes acontece muito mais tarde. Entretanto, fui para o Porto, para acabar o curso porque se acabou a bolsa da Gulbenkian e aí comecei a fazer pequenos trabalhos gráficos para sobreviver.
Paramos no Porto? Podemos parar. O Porto representa o encontro com pessoas maravilhosas, como o Manuel António Pina, que passou a ser uma espécie de irmão mais velho. A capa do primeiro livro do Pina já é minha. O tempo do Porto marca-me muito culturalmente, mas a cidade era muito fechada e começou a tornar-se insuportável. E de repente acontece o 25 de Abril. Nessa época estava a dar aulas de desenho à noite numa escola de Matosinhos. Apanhei imediatamente um comboio e no 1º de Maio já estava em Lisboa. Aí, sim, fui para a escola de cinema, o que não estava no programa. Mas as catástrofes mudam a vida.
Catástrofes? Sim, no sentido em que um acontecimento muito forte e que não está previsto pode mudar-nos radicalmente. Decidi: “Não quero mais dar aulas nem ser engenheiro. Quero fazer cinema.” Comecei com 26 anos, os meus colegas tinham 20. Cheguei à escola com um amigo, o Fernando Cabral Martins, entregámos um texto e uma fotografia e o professor escreveu: “Percebem a coisa cinematográfica!” e entrámos. [Gargalhada]
Como é que se aprendia cinema? O ensino era completamente tradicional e eu não sabia nada. Durante muito tempo andei a passar “O Couraçado Potemkin”, nas fábricas e nos quartéis, onde os soldados de cabelos compridos cantavam a Internacional. Um crítico dos “Cahiers du Cinéma” veio a Lisboa dar um seminário e levou-nos para a mesa de montagem, mostrando-nos plano a plano como se fazia. Nessa mesa de montagem comecei a aprender cinema. Depois pegávamos numas máquinas e nas películas que sobravam e íamos fazer uns filmes. As primeiras experiências foram umas encomendas para a televisão sobre educação permanente e fizemos uma coisa a preto e branco completamente diferente. Para mim, naquela altura só havia dois cineastas no mundo, Straub e Godard, e dizia coisas como: “Abaixo Visconti, viva Rossellini.” Era muito radical.
Ser radical não era o ar daquele tempo? Depois da II Guerra Mundial, o Rossellini reinventou o cinema. Daí saiu a Nouvelle Vague, o Cinema Novo Alemão e o Novo Cinema Português. Pequenas máquinas, pequenas equipas a filmar milagres. Nada tinha que ver com a indústria americana, é isto que apanho. Como não havia meios, tínhamos de defender as nossas escolhas, havia essa prática dialética. Já nessa altura tinha identificado a minha família e tinha uma ideia que queria fazer um cinema austero, onde o artifício é sempre mostrado.
Não há uma diferença grande entre ver e fazer? Enorme. Mas enquanto vemos também vamos aprendendo. No tempo da escola consumíamos cinema 24 horas por dia. Logo de manhã começávamos na Castelo Lopes. Durante a tarde íamos para a Cinemateca e ainda víamos um filme na mesa de montagem e à noite íamos ao cinema normal. Portanto, quando comecei a realizar conhecia bem a História do Cinema. É importante.
Filmar faz medo? Tantas vezes! Mas o que faz mais medo é não chegar à resolução do tempo e do espaço. “E agora? Por onde vou?” Não se pode, equipas inteiras dependem de nós.
Neste filme, “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, descreve a primeira vez que entrou nos estúdios da Tobis e de como sentiu a magia do cinema. O Manoel de Oliveira estava a filmar o “Amor de Perdição” e eu dirigia a revista “Regra do Jogo”. Resolvi dedicar-lhe um número. Foi logo depois do 25 de Abril, numa época em que o ambiente nas equipas de filmagens era muito duro. Andavam há quase três anos à roda do filme, já não estavam para aturar o Oliveira e diziam-lhe: “Filma tu, ó velho!” Quando entrei na Tobis vi uma figura debruçada, calmamente a desenhar no chão, com a equipa toda de braços cruzados, parada, à volta dele. Estava a desenhar o Teorema de Talles para medir uma cena. Na altura, tudo já era feito com tecnologia e ali estava um artesão, um homem que vinha do cinema mudo e ainda usava a técnica para fazer a montagem no eixo, que permite passar de um plano largo para um plano aproximado, só com uma câmara. É a técnica do raccord perfeito. Eu era de matemática e de geometria descritiva e achei-o espantoso. Foi com ele que aprendi cinema.
Como foi? O Oliveira dizia: “Eu é que decido a luz, aqui não há Deus.” Tinha razão. O estúdio é o lugar do controlo absoluto. Nessa época, ele vivia em Lisboa, no Hotel D. Carlos, e eu todas as noites aparecia lá. Encontrava-o em frente à televisão — “A ver novelas brasileiras, Manel?”; “É o que me descansa o cérebro, João” — bebia um whisky e saíamos. Ele tinha de estar no estúdio às sete da manhã, mas andávamos avenida abaixo, avenida acima até às duas da manhã sem parar de conversar. Andava mais rápido do que eu, que tinha vinte e poucos anos, e sabia de cinema que nunca mais acabava. Era um homem conservador, católico, mas quando filmava tentava chegar à matéria funda das coisas. Ensinou-me uma coisa fantástica: “Para cada situação, uma posição. Só existe um ponto de vista.” Depois de ter percebido o que queria dizer, percebi o que era o cinema.
E o que é? Conheço quatro versões da “Madame Bovary” — do Minnelli, do Renoir, do Buñuel, e a do senhor Oliveira, a bovarinha do Douro do Vale Abraão — são todas diferentes e são todas geniais. Quer isto dizer que a história não interessa para nada. O que interessa é como se filma. Estou a filmar numa sala onde estão quinhentas pessoas e escolho só filmar uma. Para cada momento há 20 ou 30 variáveis, quem filma tem de decidir. Era isto que ele queria dizer quando falava do ponto de vista e do modo de filmar.
A narrativa não é importante? Não. Reajo muito ao cinema que se tenta identificar com a vida e toda a gente fica muito contente porque acha que o que estão a ver no ecrã é igual à vida real. Desde logo percebi que era tudo aldrabice. Cinema são luzes e sombras e lá no meio uns seres aflitos. Começou por ser uma invenção tecnológica, um espetáculo de feira, e acabou nos centros comerciais. Não há remédio, é um circo. Portanto, a ideia é tentar chegar às emoções dando a noção da aldrabice.
Não percebo o que quer dizer. Por exemplo, na ópera todo o artifício é mostrado. Uma cantora de 100 quilos e 60 anos faz papel de rapariguinha. Se cantar bem, emociona-nos profundamente, porque a verdade na ópera é a música. Também posso chorar ao olhar para as riscas de um quadro de Rothko. E o que é que lá está? Nada. No cinema procuro exatamente a mesma coisa e tento lutar por uma abstração. Só me interessam as emoções — tédio, riso, choro, alegria. Não há um único filme que tente reproduzir o real. Qualquer sentimento que se tenha perante uma obra é a verdade dessa obra. O resto é aldrabice. Há histórias maravilhosas que dão filmes da treta e histórias de treta que dão filmes maravilhosos... Alfred Hitchcock! O maior pintor abstrato do século XX. Um génio. Libertou-se do “cacaracá” e fez cinema por todo o lado. Aquilo é pintura. Camadas sobre camadas. Vinte anos depois, vejo um filme de Hitchcock e ainda descubro coisas boas.
Em que medida é que o espectador lhe interessa? A mim interessa-me o seguinte: fazer o melhor que sei. É evidente que quando se faz uma obra, queremos mostrá-la e quanto mais pessoas a virem melhor. Mas não me vendo.
Nunca vê cinema como puro entretenimento? Não. Não me ensina nada. Sei sempre o que vai acontecer e aborreço-me de morte. Houve um filme, do senhor Spielberg, que estragou tudo. Chama-se “O Tubarão”. Abriu a boca e engoliu todo o cinema do mundo. Foi o primeiro infanto-juvenil que apareceu, uma espécie de suspense e terror muito previsível, e nem sequer é mau. Mas foi a partir daqui que os adultos começaram a ser escorraçados das salas. Hoje, 98 por cento do cinema que se faz para passar em sala é entretenimento para jovens. Fora disto, existe o chamado cinema independente, que só passa em festivais temáticos e em mostras de cinema. Sabe porquê?
Então? A produção do cinema americano é tão cara que o mercado interno não é suficiente. Entre tudo o que produzem, e é muito, dez filmes rendem fortunas, 20 conseguem dar algum dinheiro, 30 pagam-se a si próprios e 200 dão prejuízo. Portanto, quando estreia um blockbuster, têm de ocupar mais de metade dos ecrãs disponíveis no mundo inteiro. Isto marcou uma profunda mudança no cinema que se produz e agora as pessoas saem das salas, dizem “foi giro” e vão à vida. Não há posições críticas. Isto inquieta-me profundamente.
Existe uma família do cinema português? Uma linguagem que nos identifique? Uma das características que nos distinguem é, precisamente, ninguém nunca fazer igual a ninguém. Cada um tem a sua assinatura... Mas talvez haja uma linguagem comum. Somos do tempo do movimento e da contemplação. Não somos da ação. Sabemos muito de luz, da sombra e do vento nas árvores, mas quando filmamos um assalto e dizemos: “Mãos no ar!”, desata tudo a rir. É ridículo.
O que gosta mais no trabalho de realizar? Entre as 30 variáveis, chegar à medida justa. Quando tudo bate certo: Olhar, luz, texto... Gosto de tudo o que tem que ver com a composição. Um quadro, seguido de outro quadro, onde o ideal é que não se note quadro nenhum. Mas a coisa mais bonita do cinema é a elipse.
O que é a elipse? É a passagem do tempo. A melhor que fiz foi em “Tempos Difíceis”. Uma menina de nove anos estende um lençol no arame e quando o tira já tem vinte. Numa fração de segundo passaram-se dez anos. Isto é a coisa mais maravilhosa que há. O tempo do cinema não é o tempo da vida. Fica mais perto do tempo do sonho. Estás a ser perseguido e não consegues andar, andas muito depressa ou então voas no espaço.
Como é que um filme surge na sua cabeça? A maior parte surge a partir do texto. O texto é o herói do filme. A primeira longa que fiz foi “Conversa Acabada”, uma espécie de teatro filmado, onde não existem atores. Os atores eram amigos meus que se pareciam fisionomicamente com personagens e a matéria do filme é beleza do texto de Sá Carneiro e das cartas trocadas entre ele e Fernando Pessoa. Em “Os Maias”, por exemplo, não é a relação entre a Maria Eduarda e o Carlos da Maia que me interessa. Interessam-me as páginas que o Eça escreveu e parecem tratados de pintura. Esse filme foi feito para ser um incentivo à leitura do romance que continua a ser notável. Andámos a mostrá-lo pelas escolas do país e bateu recordes de bilheteira. Teve 150 mil espectadores, foi um dos mais vistos desse ano.
O cinema é sempre um ato puramente cerebral? Sim. E é frio, e é seco, e é duro. Provavelmente, vem da minha herança da engenharia. Quando vejo um filme estou sempre a seguir os planos e a tentar perceber como é que foram feitos, onde está o artifício. Só há um cineasta que me engana, Jean Renoir. Esse ultrapassa-me sempre. Está para lá do limite da compreensão humana.
Vamos voltar à sua vida? A vida interessa pouco. É uma coisa maravilhosa mas não é para se falar dela. As pessoas estão na terra para fazer coisas.
O desejo eterno de deixar marca? Nada disso. Isto é tão complicado, tão complexo... Cada vez tenho menos certezas. As doenças são naturais, as rugas e a velhice também, portanto a ideia é aproveitar e fazer coisas. Considero-me um otimista. Hoje é bom, mas amanhã tem de ser melhor. Se assim não for, não estou cá a fazer nada.
Por isso vive tão intensamente os seus dias? Divirto-me imenso. Mas, ao contrário do que as pessoas imaginam, trabalho para caramba. Quando estou a trabalhar, acordo às oito da manhã, trabalho 15 horas seguidas e não faço mais nada. Por brincadeira costumo dizer: “Sou marxista. Oito horas de trabalho, oito horas de lazer, oito horas de descanso.” Como nesta idade já só preciso de dormir seis horas e como adoro dançar, aproveito a noite. Diz o ditado: “Homem pequenino ou velhaco ou bailarino”. Escolhi dança. A noite, a mim, marcou-me mais do que as mortes que tive na infância.
Como? Há qualquer coisa no sol que me incomoda. Em Coimbra, nos dois anos em que estive sem estudar, levantava-me às duas da tarde, começava a ensaiar às cinco e deitava-me às nove da manhã. No Porto, dava aulas à noite. Depois tive três filhos com cinco anos de intervalo entre cada um. Nessa altura, como só conseguia encontrar o silêncio para trabalhar a partir das duas da manhã, deitava-me de manhã. Foi assim durante muito anos.
Os seus filhos e da Leonor Pinhão? Eram considerados um casal histórico. Conheci a Leonor numa peça do Ricardo Pais, “Ninguém Duas Vezes”. Eu vi essa peça dez vezes. E nem era grande coisa, mas estava lá a Leonor. Todas as noites íamos para o Jamaica dançar. A Leonor era uma pessoa completamente diferente do normal e foi essa diferença que me atraiu. Quando fui apresentado à família, o avô dela, o pai do Carlos Pinhão, perguntou: “É dos nossos?” Ela respondeu que sim e ele não precisou de saber mais nada: “Então está bem”. Se eu não fosse do Benfica não havia hipótese nenhuma de relacionamento. Ela tinha 21 anos quando tivemos o primeiro filho e eu 29. Vivemos 27 anos maravilhosos, e um dia, tal como os impérios acabam, o casamento acabou. É isto.
Foi comentador do Benfica na TVI, foi o primeiro passo da sua personagem pública. E fiz mais viagens ao estrangeiro com os meus filhos para ir ver o Benfica do que a festivais de cinema. Convidavam-me para ir a festivais e como tinha medo de andar de avião não ia.
E como fazia para ir ver os jogos do Benfica? Ia com eles. O avião do Benfica nunca cai.
E a briga com o Pinto da Costa? Foi uma história complicada. Teve que ver com uma pequena vingança. Ele tinha aquela guarda pretoriana composta por dragões, e uma vez, em Aveiro, insultaram, cuspiram e bateram no pai da Leonor, o Carlos Pinhão. Foi uma coisa horrorosa, de uma humilhação absoluta. Isso aconteceu porque no jornal “A Bola” apareceu num título: “Ontem foi o Guímaro”. O José Guímaro, o árbitro que tinha beneficiado um jogo porque eles queriam o título e naquela altura mandavam no futebol. Em Aveiro fizeram-lhe uma espera e a Leonor, que é uma pessoa de boa moral, disse: “Vamos vingar-nos”. Quando apareceu a Carolina Salgado e toda aquela história horrorosa foi posta num livro, a Leonor ofereceu-se para o corrigir e melhorar o texto. Foi uma confusão. O Pinto da Costa acabou por ir a tribunal e ser julgado por um juiz do Porto, que assiste aos jogos no camarote do Futebol Clube do Porto, portanto foi ilibado. Não me orgulho nada desse episódio.
O que é para si a moral? O respeito pela diferença. Reconhecer o outro e não incomodar o espaço do outro.
Foi criada uma página no Facebook em sua honra com milhares de seguidores e, quando o encontram na noite, todos querem tirar selfies consigo. Tornou-se definitivamente uma persona pública, mais conhecido do que os filmes que faz. Não tive nada que ver com isso, nem gosto. Queria acabar com essa página, mas nem sei como se faz. Não tenho Facebook, nem iPhone, nem sequer escrevo em computador. Escrevo à mão.
Cruza-se com tanta gente e tantas histórias. Nunca teve a tentação de as filmar? Não. O cinema é demasiado importante para contar histórias particulares. Evidentemente que há expressões e emoções que capto e visualizo num ator. Posso contar o comportamento da minha vizinha ou outra coisa qualquer, mas é apenas mais uma camada. As coisas da vida são de outro mundo, se as fixarmos perdem-se. Eu nunca poderia filmar um jogo de futebol. Tente filmar uma noite louca no Lux... Gastam-se pipas de massa para filmar aquilo e mesmo assim não se consegue chegar ao coração. Reproduzir o real é sempre uma violação. Não serve para nada.
Anda a pé, não tem carta. Está sempre em movimento de um lado para outro a descobrir coisas. Fale-me da sua cidade. Durante anos foi o Príncipe Real, o meu escritório e onde sempre tive a casa. Agora não se pode, sempre cheio de feiras e feirinhas, uma chatice. O último lugar que me encantou foi a Mouraria. Sentava-me na tasca da Cristina e via as raparigas coreanas, que adoram cabelos, a pentearem-se. Passava uma carrinha cheia de cães, e atrás uma cadeirinha com um bebé que nunca tomou banho na vida. Os homens-estátuas, todos decadentes, subiam Mouraria acima e depois vinham todos frescos para baixo. Até o Nando, o chefe dos gangues, eu vi a fazer segurança na igreja de São Cristóvão, porque estava lá dentro uma exposição de arte. Gosto muito daquilo, daquela coexistência. Com também já gostei muito do Bairro Alto.
E as noites? Há sempre o Lux, onde me sinto em segurança e ninguém me incomoda... Neste momento consigo fazer o meu percurso noturno em Lisboa, durante todos os dias da semana. Aos domingos, só posso ir ao Purex e ao Lounge, mais nada. Às segundas, posso ir a uma coisa lá em baixo na Mouraria, junto das tascas do Benformoso, que tem gigolôs e negros e prostitutas, mas de repente há uma DJ chamada Full Moon que põe uma música incrível. Recentemente descobri em Xabregas um sítio que se parece com Berlim, o Ecca Palace, numa antiga escola primária, com um barzinho onde se pode tomar o pequeno-almoço. Gosto muito de descobrir pessoas e lugares.
Estou a lembrar-me de quando ouviu a Carminho cantar na Mesa de Frades, muito antes de ela se ter transformado numa fadista estrelar e fez dessa descoberta um acontecimento. E depois apareceu-me a Gisela e ainda no outro dia me cruzei com um miúdo que toca saxofone como nunca tinha visto ninguém tocar. Nem sei o nome dele. Fez uns concertos com o grupo pequenino na ZDB e andei fascinado com aquilo. Há muitas coisas novas que me emocionam.
O que lhe interessa mais nas pessoas? A alegria.
Ainda a descobre nas pessoas da sua geração? O Oliveira inventou a quinta idade, só vou na terceira. Portanto, ou trabalho ou leio ou divirto-me. Deixei de ter os compromissos do meio.
Que são? Aquela história da convivência lenta que às vezes é muito manhosa. Tenho muitas famílias, dou-me com gente muito diferente. Mas quando começa a ser chato, ou obsessivo, parto para outra. A vida é demasiado curta, não tenho tempo para me chatear. Há oito anos, aconteceu-me outra revolução. Matei um cancro. Foi outra catástrofe, mas agora um acidente, uma coisa grave, que me mudou a vida.
Teve medo? Claro que tive e durante vários dias chorei. Depois salvei-me. A partir daí ganhei uma perceção do efémero, perdi o medo do futuro e passei a divertir-me mais. Mas daqui a três anos vou deixar de dançar, já avisei toda a gente. A partir dos 70 vou começar a fazer outra coisa qualquer.''
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 13 agosto 2016
"Um filme sobre a perda de crença da existência do Amor, um filme de feridas abertas que ainda não sararam nos olhos de Laura personagem principal. Um lugar escondido por de trás de uma muralha que esconde uma casa lindíssima. "