Fonte: https://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
sábado, 17 de agosto de 2024
Canícula
quarta-feira, 9 de junho de 2021
“TEMOS DE ENCONTRAR FORMAS DE ENCORAJAR AS PESSOAS E MOSTRAR-LHES QUE TÊM UM PAPEL E UMA RESPONSABILIDADE NA CIDADE”
Publicado por Filipa Cardoso | Jun 9, 2021 | Notícias, Opinião / Entrevista
''Até 25 de Julho, as cidades de Porto e Matosinhos são palco da edição de 2021 da Porto Design Biennale. Alter-realidades é o tema central do evento, que acontece entre a nano e a macro escala dos lugares urbanos. Em entrevista, o curador geral, Alastair Fuad-Luke, conta como esta bienal pretende despertar “a fome de criar cidade” nas pessoas e explica como o design, a ecologia e outras especialidades podem aliar-se à sabedoria comunitária na construção de soluções.
Fotografia destaque: © Renato Cruz Santos
Destaca-se pelo seu trabalho de investigação em design, mas o seu background está ligado a temas de ecologia e sustentabilidade. Como é que isso influenciou a sua percepção de design?
Sempre fui interdisciplinar. Quando me formei como cientista ambiental, trabalhei com geólogos, hidrologistas, engenheiros. Aprendi programação computacional, há muito tempo e de forma muito básica [risos]. Na minha tese de mestrado, fiz uma avaliação de impacto ambiental para duas opções de auto-estradas, que tinha bons argumentos, foi até a consulta pública, e isso abriu-me muito os olhos. Ouvi diferentes especialistas de várias áreas e sempre achei que a integração de diversas especialidades era mais importante do que a especialidade de uma única pessoa e isso foi algo que ficou sempre comigo e me permitiu ir para o design.
Depois de 12/13 anos a trabalhar em ambiente no Reino Unido (RU), Sudeste Asiático e Austrália, confrontado com tudo o que estamos a causar, precisei de uma pausa das dores de cabeça ambientais. Como era um bom fotógrafo amador, acabei por tornar-me fotojornalista no Sudeste Asiático e, quando voltei para o RU, envolvi-me nas bibliotecas fotográficas e na transição entre a fotografia analógica e digital. Foi interessante porque esta era uma nova tecnologia que estava a chegar e que tinha também muitos cépticos. Estas transições acontecem quando mudamos de tecnologias e não se trata apenas da tecnologia em si, mas da infraestrutura.
Se pensarmos na fotografia, inicialmente as pessoas tinham de ir às lojas para imprimir as fotografias digitais, isso foi algo que mudou muito rapidamente. Quando fiz a primeira versão do Eco-Design Handbook, em 2002, foi [um processo] totalmente analógico. A edição de 2005 foi uma mistura e a de 2009 foi totalmente digital. Bastaram apenas sete anos para passar de algo analógico para totalmente digital. O que é que isto nos diz sobre as transições nas sociedades? Todas as questões sobre a qualidade [da imagem] e tudo o mais foram rapidamente ultrapassadas. Talvez seja isto que estamos agora a viver com as nossas cidades.
Como entra aí o design?
Quando escrevi o livro, como tinha trabalhado com cientistas ambientais e ecologistas sobre o desperdício, apercebi-me de que os designers podiam desenhar melhor para o evitar. Comecei a investigar o tema e, na altura, não se falava em economia circular, mas em ecologia industrial. A questão principal é que temos sempre de lidar com infraestrutura. Nas cidades, associamo-la a estradas, serviços de mobilidade… Se pensarmos na alimentação, não vemos a maior parte do que acontece em backoffice – a comida que chega aos portos, os grandes centros de distribuição dos supermercados, etc. Mas essa é a infraestrutura e vai até ao design dos navios que transportam as matérias-primas. Quando tudo isto funciona bem, torna-se invisível. Aí, temos um problema, porque, por natureza, a infraestrutura é normalmente intergeracional. E, nas cidades, temos ainda a padronização, com longos ritmos, e um acoplamento estrutural, que sempre esteve lá.
Como assim?
Olhemos para a mobilidade. No final do século XIX, no mundo ocidental, os veículos eléctricos eram muito mais populares do que os a petróleo. Eram mais limpos e sabia-se muito sobre baterias, enquanto os motores de combustão eram barulhentos e viciosos. O que aconteceu teve a ver com o acoplamento estrutural, pois as empresas de petróleo do centro-oeste americano começaram a promover uma infraestrutura que tornou o sistema de carregamento das baterias um problema e favoreceu a distribuição do petróleo. E foram muito agressivos em termos de marketing. Substituíram uma infraestrutura embrionária de baterias de carros – impressionante para a altura – por outra de postos de abastecimento de petróleo, que ainda hoje existe. O acoplamento estrutural era o motor de combustão com os produtores de petróleo e o sistema de distribuição. E por aí adiante: se tiver um carro, tenho mobilidade, logo não tenho de viver onde trabalho, posso viver nos subúrbios. Aí, temos o carro acoplado estruturalmente à capacidade de deslocação, tanto para trabalhar como para lazer. Então abrem-se possibilidades para habitação e constroem-se novas casas, mas precisa-se também de estradas e, assim, surge todo um novo sistema.
Deu azo à dispersão urbana que temos hoje, em particular nos Estados Unidos.
Todo este movimento de pessoas só foi possível pela estrutura original que rege o motor, a distribuição de petróleo e muito mais. Temos cada vez mais acoplamento estrutural e ficamos presos a isto. É a posição em que estamos agora relativamente ao petróleo.
O design pode alterar esse estado das coisas?
Nos últimos 22 anos, tenho trabalhado nessa área em diferentes universidades e diria que sim. Através do design, podemos tornar visível o invisível e fazer muitas questões. Se visualizarmos este acoplamento estrutural, apercebemo-nos de que até os licenciamentos para construir casas a 20 quilómetros do Porto estão relacionados com o motor de combustão interna.
Nos últimos dez anos, começámos a ter, na área do design e muito impulsionados pelas tecnologias de internet, cursos especializados em visualização de dados, jornalismo visual e até a fisicalização de dados. Vemos isso acontecer também nos media, como o The Guardian, que começaram a usar estas ferramentas muito bem para dar forma a temas como as alterações climáticas. O mesmo se aplica às cidades – como é que as visualizamos através do design? É uma pergunta importante quando pensamos nos desafios que se colocam e para onde queremos ir.
Isto relaciona-se directamente com esta Biennale, na qual temos um projecto do MIT Senseable City Lab de Carlo Ratti Associati, com título de Liminal Ghettos. “Liminal” é um termo interessante, ecológico, que tem a ver com a zona entre a maré alta e a maré baixa, uma zona que muda bastante. E é assim que nos movemos actualmente nas nossas cidades– temos padrões, mas, se houver uma mudança na infraestrutura, esses padrões vão mudar. Ou quando há um evento ou abre novo restaurante de que todos falam. Podemos falar de infraestrutura a vários níveis.
Esse foi um ponto de partida para a Biennale?
Quando começámos e porque são duas cidades , defini que, se queremos fazer uma bienal para os cidadãos e designers – que foram sempre os nossos públicos principais – e queremos que seja algo muito participado, temos de estar atentos aos nano e micro espaços, ir subindo na escala, até ao macro espaço, que é o que chamaria ao Parque da Cidade. Tínhamos consciência destas diferentes camadas de espaços e quisemos atravessar esta ideia de escala, tal como no vídeo Powers of Ten, que continua muito actual. Temos de pensar em diferentes escalas e aplicar este tipo de pensamento também nas infraestruturas e como elas se conectam, como as coisas se acoplam e afectam umas às outras. Isso esteve sempre nas raízes do meu pensamento.
Como podemos aplicar isso às cidades?
Nos últimos dez anos, vimos designers entrarem na conversação política e temos projectos fantásticos, como o MindLab em Copenhaga ou até em Lahti, onde trabalhei, nos quais os planeadores urbanos tinham consciência do impacto das decisões de design feitas a diferentes escalas e, por isso, envolveram diferentes profissionais e cidadãos. É preciso uma verdadeira participação. Em Lahti, ajudei a criar um manual de co-design, que é uma forma participada de fazer design.
As cidades são locais de força e energia trazidas pelas pessoas. Como se consegue mobilizar os actores para co-criar uma cidade melhor?
Já muito se escreveu sobre isso e volto aos anos 1960 – isto não sou eu a ser nostálgico, mas foi realmente uma altura de muito debate, na sequência do pós-Segunda Grande Guerra e do boom económico que se viveu. Nessa fase, tivemos os primeiros Bauhaus e internacionalistas a aparecer também na arquitectura e na infraestrutura e, depois, começou a ver-se que aquilo, afinal, não funcionava tão bem – como aconteceu com os grandes planos de Le Corbusier. Eram grandes projectos, que até podiam ter uma boa intenção cívica, mas eram muito autoritários, top-down.
Aí, tivemos pessoas como Sherry Arnstein, que criou a Escada da Participação, que é ainda uma forma clássica de pensar estas coisas. No topo, temos a tomada de decisão genuinamente participada entre os cidadãos e quem planeia a cidade, enquanto na base está o tokenismo – que é quando uma decisão já está tomada, mas se pergunta às pessoas o que querem sem ter em conta as respostas. Esta escada já foi revista muitas vezes e é uma boa analogia, mas penso que o design participativo tem raízes longas em algo que foi usado nos 1960, na Escandinávia. Aliás, nos países nórdicos a participação cívica é muito elevada. Eles perceberam que, quando estamos no meio de grandes transformações – e, neste momento, vivemos várias crises e teremos de mudar –, temos de garantir que diferentes vozes vão contribuir para tomar uma decisão. Nas cidades, isso deve acontecer: há um grupo de pessoas cujo trabalho é tomar decisões difíceis, mas que serão sempre mais bem informadas se houver processos de participação.
É algo que tem aplicado no seu percurso?
Comecei o trabalho colaborativo muito cedo. Para esta Biennale, já fiz workshops sobre co-design com diferentes stakeholders e tenho o grupo de curadores a trabalhar em conjunto, mesmo que estejam a fazer trabalhos individuais. Estamos a trocar conhecimento e informações e isto é absolutamente crítico quando enfrentamos múltiplas crises. Agora, temos a pandemia e o que esta trouxe, mas, antes disso, havia já o tema das alterações climáticas e como a cidade lhes dá resposta. A visualização de dados pode ajudar a fazê-lo, há trabalhos que mostram como a temperatura tem aumentado nas cidades europeias nos últimos 30 anos. Em Lisboa, foram cerca de 3 º C, o que é muito. Claro que isto envolve muitos factores, mas também é possível simplificar as coisas falando com ecologistas de plantas ou responsáveis florestais, porque eles são eles que nos vão dizer que uma árvore equivale a 50 unidades de refrigeração.
Todos os conhecimentos podem contribuir para a solução, mesmo que não sejam uma especialidade?
Adoptei a visão dos etnógrafos de design, nos anos 1980, quando começaram a trabalhar com empresas como a Xerox para estudar como as pessoas usavam as fotocopiadoras e juntaram os antropologistas para isso. Percebemos que precisamos de muitos especialistas para compreender a complexidade, mas é também preciso envolver aquilo que se chama a experiência quotidiana das pessoas. Cada um de nós tem um chapéu profissional, mas é também um cidadão com conhecimento sobre o nosso bairro. E este é um tipo de conhecimento ao qual nem sempre os planeadores urbanos conseguem chegar. Na minha experiência em Lahti, para criarmos o ecossistema de co-design, criou-se um clube cívico chamado Lahen D, e 500 cidadãos inscreveram-se. Havia um cartão que permitia que estas pessoas pudessem participar em qualquer debate sobre questões de design da cidade – era muito radical e interessante. Se falamos, por exemplo, de ciclovias, estações ou estacionamento de bicicletas, o conhecimento local é essencial. Temos de desenvolver enquadramentos em que os especialistas possam ter melhor informação a partir dos peritos locais, que são os cidadãos. É aqui que uma cidade pode fazer realmente a diferença e é o que estamos a fazer na Biennale.
“Nas cidades, há um grupo de pessoas cujo trabalho é tomar decisões difíceis, mas que serão sempre mais bem informadas se houver processos de participação.”
As tecnologias digitais ajudam nesta conexão entre os cidadãos e quem toma decisões?
Sim, e há projectos muito interessantes nessa matéria, como o Copenhagen Wheel, que colocou sensores nas bicicletas para medir a qualidade do ar na cidade em tempo real, dando essa informação aos decisores. Este tipo de coisas, com base em sensores e IoT, pode ajudar a tomar medidas para melhorar certos aspectos, mas seríamos tolos se pensássemos que podemos guiar-nos só pelos dados. Temos de nos lembrar que, talvez, metade da população não use a internet todos dias e até os telemóveis podem não usar toda a sua capacidade de interface.
Podemos ter coisas tão simples com meios físicos, como cada bairro ter um quadro de sugestões… Estamos a testar isso na Biennale, através de uma Open Box, uma forma de ter feedback, perguntando às pessoas que ideias têm para melhorar a cidade e, trabalhando com os designers e não só, vamos tentar responder-lhes. Umas [respostas] são muito rápidas, outras mais complexas e exigem mais tempo. Temos diferentes escalas temporais, assim como a nano à micro escala física, e temos também as mesmas escalas em termos de conhecimento. Isso diz-me que a smart city integra, de forma inteligente, diferentes especialidades e conhecimentos, e, por aí, chegamos às questões certas.
O design ajuda nessa integração?
O design é, muitas vezes, visto como uma disciplina para a resolução de problemas, mas se o pensarmos como um meio para enquadrar um problema, acaba por ser uma actividade para encontrar a solução para um problema. E é uma oportunidade para todas as cidades para realmente encontrarem o problema certo. Tal significa compreender a complexidade do problema e como este se conecta, porque, se não identificarmos o problema correctamente, vamos também desenhar soluções erradas. É complexo, pois temos espaço, tempo, conhecimento e especialidades sobrepostos. Encontrar o ponto certo é um desafio… Talvez seja aqui que as tecnologias podem ajudar, já que podem analisar grandes volumes de dados.
E que papel cabe ao cidadão?
Temos de redefinir o que é hoje um cidadão. Na minha geração, os cidadãos abdicaram da sua responsabilidade ao eleger as pessoas e esperar que estas façam o seu trabalho bem. Isso tem de mudar! Se olharmos para o tipo de governança cívica dos anos 1950 na Europa, vemos que resultou em edifícios cívicos e praças públicas fantásticos, construídos com orgulho pelas cidades e com o apoio dos cidadãos, que tomaram a responsabilidade pelo seu comportamento na cidade e pelos seus bairros. Hoje, entregamos isso, elegemos os governantes e só nos queixamos quando a cidade não está limpa.
Neste debate, temos de encontrar formas de encorajar as pessoas e mostrar-lhes que têm um papel aqui e uma responsabilidade. Podem idealizar, se souberem que as suas ideais vão ser ouvidas ou implementadas, mas têm também a responsabilidade de fazer a cidade o que é. Penso que perdemos um pouco isso e por isso é que há muitos serviços que passaram a ser privados – embora em Portugal, isso não seja tanto assim. Quando pagamos pelos serviços, deixamos de prestar atenção ao que podemos fazer enquanto cidadãos. E se os planeadores derem um pouco mais de responsabilidade aos cidadãos? Se lhes derem um jardim, cuja manutenção custa muito à cidade, para manter? Podem criar um grupo comunitário e cuidar desse jardim? É o que fazem os guerilla gardeners.
As crises que estamos a viver podem fazer-nos assumir esse papel?
Porque não? Porque não havemos de criar uma nova geração de “jardineiros pandémicos”? Os jardins foram tão importantes nesta fase que isto é algo que as pessoas compreenderão facilmente. Esta é a altura para experimentar estas coisas e espero que possamos levantar muitas destas questões na Biennale. Temos muitos debates e conversas programadas. São questões às quais não devemos fugir: podemos organizar-nos de forma diferente? É isto uma colaboração real? As administrações locais estão muito pressionadas nos seus orçamentos, mas este tipo de iniciativas que dão alguma responsabilidade às pessoas pode ajudar a libertar fundos que podem ser investidos noutras áreas, como a saúde.
A pandemia afectou a programação da Biennale?
Nem por isso. O tema central é “alter-realidades”, alinhado a isso temos as alter-paisagens, alter-cuidados, alter-produções, alter-vivências. Ou seja, já estávamos a pedir alter-visões, imaginários diferentes e isso não mudou. Espero que haja, nas pessoas, uma fome de criar cidade, numa perspectiva mais humana, tal como refere o livro The Art of City Making. Vamos ter uma iniciativa que pensa como os humanos partilham a cidade com os não- humanos – como damos espaço aos animais, às plantas. Há agora um movimento de renaturalização das cidades, que, como ecologista, me leva ao debate nos anos 1970/80 e a um programa que havia no RU em que um ecologista urbano apontava onde a natureza estava a nascer na cidade. Vamos ter vários projectos satélite, pequenos, lançámos uma open call e alguns deles abordam estas ligações com outros seres vivos. E isto pode relacionar-se com as alterações climáticas.
Que legado pretende que a Biennale deixe a estes dois territórios?
Se sensibilizarmos as pessoas para ver a sua cidade de forma diferente, elas criarão o seu próprio legado. É uma ambição modesta, mas, se o conseguirmos, isto vai gerar conversas muito positivas e também acções, espero. A Biennale só vai alcançar alguns cidadãos, mas, ainda assim, penso que vamos ter uma boa campanha. Se conseguirmos tornar cidadãos passivos em activos, serão estes que vão deixar o legado.''
Fonte da Publicação: https://smart-cities.pt/noticias/porto-design-biennale-alastair-fuad-luke-0906/
domingo, 16 de maio de 2021
Hélia Correia
''sinalAberto — O mundo de hoje, soberbo pela ilusão da tecnologia e pela confusão do ruído, ainda tem lugar para o indizível compasso da literatura? Porquê?
Hélia Correia — Há lugar para tudo. Isso a que chamam comunicação tecnológica não passa de um avanço na massificação dos media de registo das linguagens. Quando apareceu o livro tal como o conhecemos, os alfabetizados retiraram-se da roda da lareira onde alguém transmitia as histórias orais, curvaram-se, calados, sobre as páginas e o ambiente emudeceu bastante.
Agora todos leem, e escrevem, e encurtam as palavras, coisa que já fazíamos na linguagem oral. É uma nova imprensa, acessível ao vulgo, com as duas direções verbais escancaradas: a da produção e a da receção. Ocupam muito espaço, mas, como não existe a fisicalidade, são bolas de sabão que se desfazem à pressão do botão de desligar. Pois é ainda o humano quem detém o último poder. Ninguém se queixe. A literatura não tem nada a ver com isto. O rumor que ela faz é subaquático, é preciso correr um risco para o ouvir.''
Entrevista aqui.
segunda-feira, 3 de maio de 2021
''Uma voz que se levanta pelas desigualdades urbanas
Margarida Queirós é professora associada no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e investigadora efetiva do Centro de Estudos Geográficos (CEG), onde desenvolve investigação sobre temas da igualdade de género, ambiente e ordenamento do território.
Em Portugal, quais são as desigualdades (de género) mais acentuadas, por si identificadas, na nossa sociedade?
MQ: Poderia referir as desigualdades de rendimentos, entre os 10% das pessoas mais ricas e os 10% das pessoas mais pobres no nosso país, mas não é com esse fim que me coloca a questão, mas sim no que respeita às desigualdades de género.
Se atendermos ao Índice de Igualdade de Género calculado pelo EIGE (Instituto Europeu para a Igualdade de Género) para o contexto da UE, em 2019, Portugal ocupava o 16º lugar (59,9 em 100 pontos, correspondendo 1 à desigualdade total e 100 à igualdade plena), sendo que o nosso país, em relação a 2005, aumentou 10 pontos, revelando que estamos a progredir no sentido da igualdade de género no contexto dos estados-membros.
Este é um índice que revela as tendências no domínio da igualdade de género (domínios centrais: trabalho, tempo, rendimento, política/poder, conhecimento, saúde) na Europa. Este índice é depois complementado com informação sobre experiências vividas de violência sobre as mulheres (prevalência, severidade), e de desigualdades entrecruzadas entre diferentes grupos de mulheres e de homens (idade, tipo de família, nível de instrução, in/capacidade, país de origem).
Todavia, as pontuações de Portugal são inferiores às da EU, em todos os domínios. As desigualdades de género são mais pronunciadas nos domínios do poder (46,7 pontos) e do uso do tempo (47,5 pontos). Uma boa notícia diz respeito ao domínio da saúde, onde Portugal atinge a sua pontuação mais elevada (84,5 pontos).
E como se combatem essas desigualdades?
MQ: Para mim, e sublinho que é o meu ponto de vista, as desigualdades combatem-se em diversas frentes, com diversos tipos de políticas públicas, mas a que mais me toca é a da educação, do conhecimento. Existem grandes desigualdades de género no acesso à educação, quer nas competências da aprendizagem, quer da continuidade no percurso escolar, na maioria das vezes às custas das meninas e jovens. Acesso à instrução, ao conhecimento e à participação, todas são fundamentais para as competências (capacitação, empoderamento) das mulheres, para que elas possam, de facto, ter oportunidades na vida e se transformarem.
A pobreza, abandono escolar, estatuto social, deficiência, casamento precoce e gravidez prematura, violência de género, atitudes e estereótipos sobre o papel das mulheres, isoladamente ou em combinação, estão entre os muitos obstáculos que as impedem de exercer plenamente seu direito de cidadania, de participar, completar e de se beneficiar da educação.
Acredito que a educação é um bem público e um direito fundamental; e enquanto tal, as políticas de educação devem ser sensíveis às desigualdades de género. Podemos lutar para ultrapassar as referidas desigualdades através de políticas públicas que assegurem uma educação equitativa e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida.
Especialmente meninas, jovens e mulheres devem alcançar níveis relevantes de alfabetização, proficiência funcional e autonomia para a vida. No atual contexto, as tecnologias de informação e comunicação devem ser aproveitadas para fortalecer as suas competências, pois a digitalização não pode continuar a acontecer sem a participação das mulheres.
Na sua opinião, no que toca às políticas públicas de igualdade de género, considera que andamos a reboque dos compromissos internacionais, nomeadamente União Europeia e Nações Unidas? Não deveríamos planeá-las e implementá-las de forma mais autónoma?
MQ: Como referi no evento “I am…me”, em Portugal as políticas de igualdade de género são em grande parte estimuladas pelas orientações das instâncias internacionais (e.g., União Europeia; Conselho da Europa; CPLP; Nações Unidas). Não obstante a igualdade de género estar contemplada em documentos tão antigos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a sua efetivação nas políticas nacionais é recente e decorre em grande parte da abertura da sociedade portuguesa após 1974.
Hoje a sua principal alavanca externa ainda é a UE, que: 1) desenvolve orientações que foram sendo transpostas para a legislação nacional, 2) promove o estabelecimento de redes transnacionais, e 3) financia projetos de igualdade salarial, igualdade e emprego e prevenção e combate à violência, etc. Portugal participa nestas construções.
Isto não significa que Portugal “anda a reboque” da UE ou mesmo que isso seja negativo. Acontece que, por um lado, vivemos na “era da globalização”, num mundo interdependente e integrado, a funcionar em rede com o resto do mundo (a sociedade da informação), onde se efetuam trocas intensas de conhecimento, pelo que estamos permeáveis às agendas globais e assinamos compromissos internacionais no domínio da igualdade. Por outro lado, Portugal encontra-se integrado no bloco regional da União Europeia, logo é desejável que tenhamos políticas comuns, que os países possam construir pontes e convergir na direção da igualdade enquanto direito humano a ser garantido pelas instituições que criamos para o efeito.
A globalização marca a vida interna do nosso país e podemos retirar daí benefícios. Diria que, no contexto de um mundo global e regional, havendo “contaminação” e bons exemplos de agendas políticas, de princípios e de objetivos, estes são estímulos muito positivos, e os benefícios são muito grandes para a promoção da igualdade de género e não os podemos desperdiçar.
Naturalmente que a partir de desígnios comuns e compromissos internacionais, traçamos o nosso caminho de uma forma autónoma (mas que está em conformidade com os problemas que partilhamos na UE e no mundo), pois as nossas políticas públicas internas para a igualdade têm vindo a intensificar-se, a aprofundar-se e a entrecruzar-se (veja-se desde os Planos Nacionais para a Igualdade à atual Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, ENIND). E isto está a acontecer quer ao nível do país, quer à escala local e regional, com a “territorialização” das políticas públicas para a igualdade, como procurei mostrar no webinar. “I AM...ME”. As respostas estruturadas e concertadas no apoio à igualdade de género, aprofundam o trabalho em rede com entidades públicas e privadas, nacionais, regionais e locais, permite comprovar respostas flexíveis, rápidas e eficazes com e para os problemas dos territórios onde eles ocorrem. Estas redes regionais/locais enformam modelos de governança territorial de resposta integrada.
O que a moveu a dedicar-se ao estudo das desigualdades de género e a associa-las ao urbanismo?
MQ: Sou geógrafa de formação, logo o espaço e o lugar são as áreas onde me movo melhor. E o espaço e o lugar podem começar nos corpos (a apresentação do corpo, a gestualidade, a linguagem, as expressões faciais, por exemplo). Neles refletem-se relações de poder, desiguais e hierárquicas (e não meras dicotomias e relações simétricas e complementares, como tradicionalmente nos procuraram convencer). As relações de género são histórica e espacialmente contingentes. O significado de se ser homem ou mulher depende de um contexto, relacional e variável, se bem que submetido às leis e regulações, de cada tempo/época e espaço, que estabelecem o que é permitido e o que é um ato transgressor. E a ideia de conceptualizar o género como algo fluido, liberta o género dos imperativos do corpo. E são este tipo de desconstruções que as geógrafas feministas começaram a debater nos anos 80 do séc. passado. As questões geográficas, como o lugar e a posição da pessoa, sobretudo aquelas que têm sido marginalizadas e ignoradas, começaram a ser escutadas e interpretadas. Estas pessoas, sobretudo, mulheres diversas, vivem nas cidades, nas áreas urbanas e suburbanas, vidas quotidianas com mais ou menos oportunidades - para encontros e atividades diárias, onde contactam com outras pessoas, em espaços públicos ou nas áreas residenciais, experienciando a vida urbana.
De que forma é que o atual desenho das cidades condiciona a liberdade das pessoas, mais concretamente de algumas minorias (mulheres, homossexuais, pessoas com limitações cognitivas ou motoras)?
MQ: Como referi, as relações de género são constitutivas de espaços materiais e físicos, assim como de espaços simbólicos e discursivos. Por outras palavras, onde vamos, como lá chegamos e a nossa presença em certos lugares, tudo isto é influenciado e tem impacto na nossa identidade social. As dimensões (marcadores) da identidade social, tais como o género, estatuto social, sexualidade, idade, e raça estão enraizadas em relações de poder desiguais e historicamente construídas, e que privilegiam umas pessoas e marginalizam outras.
Estas identidades levantam importantes questões acerca de como a sexualidade, a raça, a classe e outros eixos de poder, são aspetos formativos de quem somos, no que acreditamos e valorizamos. Além do mais, certas identidades sociais garantem às pessoas posições de privilégio nos lugares que ocupam, por exemplo, no trabalho, na educação, em atividades políticas, ou nos locais que habitam e que frequentam. A vida urbana está repleta de desigualdades, sobretudo para as mulheres (e estas nem sequer são um grupo homogéneo), mas também o são para os homens que não encaixam no modelo hétero. Por exemplo, os homens homossexuais experienciam os bairros urbanos de uma forma diferente dos homens hétero, experiências baseadas na sua sexualidade e na predominância de espaços heteronormativos da cidade. Nestas situações, as normas sociais dominantes excluem aquelas pessoas que não se identificam como heterossexuais. Em contraste, certos espaços urbanos são descritos e representados enquanto espaços gay, tal como o Bairro Castro em S. Francisco (EUA). Estes bairros são inclusivos e disponibilizam espaços de atividade comercial, cultural e residencial para a comunidade LGBT.
As áreas residenciais e os espaços domésticos são também tradicionalmente baseados no equilíbrio binário homem-mulher, das relações de género. As normas patriarcais ou convenções associadas à casa, rotulam os espaços domésticos como feminizados. Em resultado, as relações de género contribuíram para a construção social da casa como “o lugar da mulher”. As críticas a esta classificação, interpretam a casa como o lugar da restrição e da repressão, precisamente porque reproduzem as normas patriarcais e as relações sociais.
Estas são algumas razões que nos levam a estudar a complexidade da casa como um lugar de múltiplas experiências e expressões, desde o lugar seguro, da família e do conforto, mas também de insegurança, opressão e violência.
Em sociedades democráticas, espera-se que os espaços públicos (conjunto de áreas múltiplas e diferenciadas onde ocorre a vida pública) sejam importantes porque, em teoria, providenciam espaço para se “estar e ser”. Na prática, porém, têm sido espaços de exclusão, que limitam a presença de mulheres, minorias étnicas, pessoas de cor, LGBT, pobres, idosas e crianças e pessoas com deficiência. Na prática estes espaços são masculinos e heteronormativos, impedindo o pleno acesso, participação e sentido de pertença de mulheres e minorias.
As discussões sobre o espaço, o território e o lugar levantam importantes questões no que diz respeito ao espaço público e privado. As divisões entre ambos, são o resultado de construções e experiências e são mais fluidas e contestadas do que supomos. Neles algumas pessoas e suas práticas encaixam e outras não. No que concerne às pessoas com determinadas incapacidades: é todo um mundo de quase exclusão. O tema é tão vasto que não vai ter páginas para o que teria para dizer…
Como deveria ser a cidade ideal – aquela que evitasse estas minorias de se sentirem marginalizadas?
M.Q: Começo por fazer um esclarecimento: o grupo (diverso) das mulheres não é uma minoria, embora seja tratado enquanto tal.
A cidade ideal não existe, apesar das múltiplas tentativas para a sua construção. E que eu tenha conhecimento, não existem muitas propostas de cidade que tenham a igualdade de género na sua génese. Lembro, muito em particular, uma visão, da autoria de Dolores Hayden que escreveu, em 1980, o ensaio What Would a Non-Sexist City Be Like?
Hayden sugere que os planeadores urbanos entenderam como implícito que o lugar da mulher seria em casa. Argumenta que a casa familiar isolada e suburbana havia sido projetada para a mulher no papel de dona de casa e cuidadora e um retiro para o ganha-pão, do sexo masculino, cujo trabalho se localizava na cidade (a série Mad Men ilustra bem esta realidade das cidades norte americanas para os homens, e subúrbios para as mulheres e família). Isto gerou um ambiente construído que por sua vez moldou a ideia de como uma “família normal” deveria usar o espaço. Com um número crescente de mulheres a incorporar o mercado de trabalho (remunerado) e o tamanho das famílias a diminuir, Hayden viu o projeto da cidade - e da casa da família - como tendo potencial para criar relações mais igualitárias.
Cerca de 40 anos depois, estamos com esta realidade: cada vez menos crianças, mais pessoas moram sozinhas, e entre estas estão as mulheres, mães solteiras, e em número cada vez maior as mulheres têm empregos remunerados…
Além das diferenças óbvias entre os Estados Unidos e a Europa, o projeto de cidade ainda prende as mulheres nos subúrbios e espera que elas façam a maior parte dos trabalhos domésticos e de cuidado? Obviamente que não, e muita coisa se foi fazendo, estamos muito mais próximo da igualdade de género nas cidades, mas ainda bem longe de a ter atingido.
Para começar, as caras e os nomes das pessoas que lideram o planeamento urbano têm de mudar, pois as mulheres neste domínio são cada vez mais numerosas e reivindicam o seu reconhecimento na profissão. As experiências da vida quotidiana têm de estar representadas entre as pessoas que tomam as decisões para que mudanças reais no tecido urbano melhorem a sua qualidade de vida. Onde localizar uma creche, quais as distâncias da residência às paragens de transportes públicos, rendas de habitação mais baixas, mais iluminação, mais espaços públicos partilhados, espaços de inclusão comunitários, etc. Existem ainda muitos movimentos de reivindicação do direito à cidade.
Em Barcelona, o Colletiu Punt 6 tem desenvolvido um trabalho notável, assente no urbanismo feminista que critica a falsa ideia de que a cidade é neutra, contribuindo amplamente para repensar a cidade alternativa à cidade desenhada com base no binário casa-trabalho.
Como será a cidade a partir de quem realmente a vive no seu quotidiano, das pessoas que caminham pela cidade, que pensam em alternativas para organizar o cuidado e o trabalho pago, numa perspetiva transformativa? Não têm de ser todas planeadoras, muito pelo contrário, experiências de migrantes, comunidades racializadas, pessoas idosas, entre tantas outras que experienciam a cidade injusta, devem estar no centro das propostas, ser intervenientes ativas no fazer cidade. A cidade de hoje não pode mais ser pensada com base numa tipologia familiar e de divisão do trabalho como o foi no passado. A amizade, a irmandade (“sororidade”), a proteção física, o contacto, e o movimento, mas também a permanência, devem nortear a “cidade das possibilidades”.
Desculpe, mas uma dúvida persiste: Se observarmos as cidades de hoje, podemos afirmar que todas elas são patriarcais (machistas) e heteronormativas? Existe alguma cidade que não siga esta tendência?
MQ: Não creio. Mas podemos assinalar partes das cidades de hoje que procuram fugir à heteronormatividade, vejam-se alguns dos bairros mais conhecidos: Soho em Londres, Castro em São Francisco, West Village em Nova Iorque, Amstel em Amesterdão, Le Marais em Paris, Bairro Alto em Lisboa, são exemplos. E há outros bons exemplos. Veja-se o caso de Viena, onde três conjuntos de habitação de interesse social, promovidos pelo Departamento de Género da cidade (Women’s Office), os chamados Frauen-Werk-Stadt I, II e III e In der Wiesen Generation Housing, foram concebidos com base na ideia de que a casa deve mais do que um abrigo físico (uma crítica à abordagem monofuncional), a partir da seguinte pergunta: como seria um distrito planeado a partir da perspetiva das mulheres?
“O medo foi naturalizado pela mulher” – Disse-o durante a sua apresentação na conferência I AM…ME. Alguma vez, por ser mulher, sentiu a sua segurança ameaçada na rua?
MQ: Nas mulheres, o medo instala-se desde a mais tenra idade. Os espaços associados à nossa casa são tradicionalmente tidos como seguros. Mas está demonstrado estatisticamente que a maior parte da violência contra as mulheres, ocorre em casa e são crimes perpetrados por pessoas que elas conhecem. Durante o nosso período vida, 1 em 3 mulheres e 1 em 4 homens foram ou serão vítimas de violência física de um parceiro íntimo.
Por outro lado, os espaços públicos são frequentemente percebidos como abertos, acessíveis e desregulados. Porém, muitas áreas públicas, têm vigilância e policiamento que restringe a mobilidade e a liberdade de expressão. Neste caso, algumas pessoas e suas práticas encaixam e outras não.
Vamos equacionar a cidade do medo. Desde criança que me recordo de ensinamentos relacionados com o espectro do “stranger danger” (perigo desconhecido): nunca fales com um estranho, nunca digas que estás sozinha em casa, não aceites presentes de um estranho - a figura do predador assola as mulheres desde crianças.
Na realidade, apesar destes ensinamentos, fiquei consciente da minha vulnerabilidade não quando era criança, mas quando me tornei uma adolescente e sofri diversos episódios de assédio. Vivi toda a minha infância e juventude numa cidade média (Coimbra), e fazia o percurso diário de casa para a escola sozinha, ou acompanhada dos meus irmãos mais velhos. E recordo que o meu sentido de liberdade era total junto deles que, segundo os meus pais, me protegiam, menor quando acompanhada de amigas, e nulo, quando estava sozinha. Neste caso, o meu cuidado era muito maior nas minhas deslocações, sobretudo sempre que começava a escurecer. Quando estava com as minhas amigas, já nos tempos da faculdade, tínhamos estratégias para combater os perigos que então sabíamos reais e não abstratos: não ficar sozinha a altas horas da noite com colegas homens, sobretudo nas noites de festas académicas, e ter um plano para a segurança individual. Claro que, alguns deles, ainda hoje meus amigos, substituíam os meus irmãos no papel de “meus protetores”.
E não tenho palavras para descrever as mensagens que as raparigas e mulheres recebem sobre os seus corpos, roupas, cabelo, maquilhagem, peso, higiene e comportamento apropriado (como nos sentamos, falamos, caminhamos, etc.).
Quando realmente compreendemos todos estes códigos, percebemos que as meninas, raparigas e mulheres são vulneráveis devido ao género, e o desenvolvimento sexual vai-nos mostrar como esse perigo se torna real.
A socialização é tão poderosa e profunda que o medo das mulheres em si tem uma atribuição “inata”, é naturalizado. E este medo tem sido estudado por muitas áreas científicas, da antropologia à biologia. Diversos inquéritos mostram que as mulheres identificam a cidade, a noite e homens estranhos como as maiores fontes de ameaça. Eu fiz e ainda faço parte desse número. Todavia, existem dados suficientes para demonstrar que as mulheres são muito mais vulneráveis e sofreram violência nas mãos de homens conhecidos e em espaços privados, como a casa e o local de trabalho. Esta contradição é conhecida como o “paradoxo do medo da mulher”, identificado com um medo irracional porque não explicado por evidências científicas.
Isto leva-nos a pensar no estereotipo: o que têm elas de errado? São irracionais, não se entendem! Uma investigação mais ampla mostra, porém, que o poder, o patriarcado e o trauma do “paradoxo do medo das mulheres” é apenas paradoxal através das lentes (da má ciência) que ignoram os processos de socialização e as relações de poder genderizadas. A família, a escola e também os media, reportam muito mais os crimes violentos de estranhos e muito menos a violência perpetrada por um parceiro íntimo. O cinema, livros e a televisão também. Portanto o paradoxo explica-se através de um conjunto de variáveis complexo (designado por patriarcado, que é estrutural), e a ideia de que “a minha violação está atrás de mim algures numa sombra na rua” tem perseguido as mulheres. Em contraste, a violência doméstica, o assalto sexual por conhecidos, e o abuso de crianças e outros crimes em privado, são mais prevalentes e têm historicamente tido menos atenção. Em vez de procurarmos a causa interna do paradoxo é muito mais satisfatório procurarmos as causas externas que são estruturais, e se traduzem em sistemas e instituições, que reproduzem o status quo, isto é, beneficiam os homens enquanto grupo.
E onde entra o espaço e a cidade em tudo isto? O controlo social acontece na cidade. Podemos mapear a cidade do medo, os bairros e as ruas, jardins e os sítios públicos: os locais a evitar. Esta ideia é real, experienciada e também contruída, porque exerce controlo sobre o espaço público, sendo que o privado pode ser bem mais perigoso. Os tempos da pandemia parecem confirmar esta constatação.
O medo tem custos: impede as mulheres do livre acesso à cidade, ao que ela pode oferecer, enquanto opção e oportunidades e, portanto, de vidas independentes e livres. Estes custos são também económicos, porque as impede de ter as mesmas oportunidades, acesso a cursos noturnos ou a certas profissões, e restringe a mobilidade, pois as mulheres (emigrantes, negras, jovens, etc.) caminham mais que os homens e são as maiores utilizadoras de transporte publico.
Acredito que o lugar da mulher é na cidade, porque a cidade é também criatividade, anonimidade, liberdade. Acredito e espero que esta nossa conversa possa trazer para a discussão mais ampla, o que é a vida na cidade na perspetiva de género, para que encontremos formas de entrar em ação e fazer cidade de uma forma diferente.
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Não obstante de a termos encontrado na conferência I AM...ME, quis uma feliz coincidência que ficássemos a saber que Margarida Queirós integra também a equipa do Projeto eMOTIONAL Cities, outro destaque nesta edição da News@FMUL, e é PI do Projeto ViViDo - Plataforma de Gestão da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica.
Nota: as reflexões da Professora Margarida Queirós são inspiradas em Linda Mc Dowell, Leslie Kern, Ann Oberhauser, Zaida Muxí, Inés de Madariaga, Gilian Rose, Doreen Massey, entre outras académicas que tanto contribuíram para o desenvolvimento dos estudos feministas.''
Isabel Varela, Equipa Editorial