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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O recreio, de Mário de Sá-Carneiro


Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

domingo, 16 de maio de 2021

Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 45

''O Rei-lua postiço''

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 44

«Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre
        fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores! 

(...)»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 39

 «É que, na infância, não possuímos ainda o sentido da impossibilidade; tanto podemos cavalgar um leão como uma abelha...»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 19

''dissera-lhe um adeus sem carícia''

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 16

 «Simplesmente amava uma vida despida de tudo quanto nela o nauseava. Ora o que o nauseava era precisamente a vida de todos e de todos os dias...»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 13

 « (...) Que tristeza!...E via-se alguém que atravessasse uma ponte transportando um fardo precioso e que, por não ter mais forças para o carregar, fosse obrigado a lançá-lo ao rio, no último desânimo, perto já do seu destino.»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 10

 «Muitas vezes o artista, para remédio da sua angústia, pensava no suicídio.»


Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 10

«Deitou-se logo, e antes de adormecer, pensou ainda:
''Todo o meu sofrimento provém disto: sou um barco sem amarras que vai bêbado ao sabor das correntes. Se conseguisse lançar âncoras...Mas aonde...aonde?...''
  E na manhã seguinte, após um sono seguido de dez horas, acordou morto de sono para viver mais um dia igual e vazio da sua vida...''

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 9

A sua vida era como se não existisse.

 «Porque era a sua vida desolação tamanha? Precisamente porque a sua vida era uma existência parada de corpo e alma e corpo - uma existência onde nunca sucedera coisa alguma. A sua vida era como se não existisse.»


Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 5

«A sua alma era toda vidros partidos e sucata leprosa.»

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 3

«A sua dor era tão grande que pondo a mão na sua
fronte sentida todo o seu esqueleto.»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 3

um acto de loucura

«(...)

Numa obsessão, no seu cérebro imaginoso,
o seu cérebro literário, logo começou a tra-
balhar essa ideia - depressa fantasiando um
homem que, no desejo de enlouquecer, saísse
à rua e desfechasse de súbito um tiro sobre
a primeira criatura que passasse e ele não 
conhecesse. Escolheria mesmo uma rapari-
guinha galante, suave e loira, porque se
escolhe sempre em todas as circunstâncias.
Assim haveria um pouco de ternura na tra-
gédia. Ora esse homem, matando alguém que
nunca encontrara, cometera um acto
injustificado - isto é: um acto de loucura. Seria
preso. Explicaria o seu crime: fora para endoi-
decer, praticando uma acção incoerente, que 
assassinara - e juntaria a razão enternecida
porque escolhera a sua vítima. À primeira
vista este homem deixava de ser um doido:
houvera um motivo no seu crime, querer 
endoidecer. Mas, por amor de Deus, tal
motivo melhor vinha provar ainda a sua
loucura: só a um doido podia ocorrer seme-
lhante ideia. E enfim o assassinato seria dado
por irresponsável, seguramente, e encerrado
em um manicómio...»

Mário de Sá-Carneiro. Mistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

7

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro
ALÉM-TÉDIO

Nada me expira já, nada me vive ---
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!… )

E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…

Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço…

………………………………………………….

………………………………………………….
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…

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Mário de Sá-Carneiro

in Dispersão

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Quarto 105


«Foi à tarde. Deviam ser quatro horas. Escrevera o meu último verso. Dirigi-me para o meu quarto. Por acaso olhei para o espelho do guarda-vestidos e não me vi reflectido nele! (...) Via tudo em redor de mim, via tudo quanto me cercava projectado no espelho. Só não via a minha imagem. (...) A sensação misteriosa que me varou...quer saber? Não foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.»

Mário de Sá-Carneiro, «Confissão de Lúcio», Tip. do Comércio, 1914.

domingo, 9 de outubro de 2016

OBRA POÉTICA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Europa América, 1996



«Beijar!» linda palavra!…
Um verbo regular
Que é muito irregular
Nos tempos e nos modos…
Conheço tanto beijo e tão dif’rentes todos!…
Um beijo pode ser amor ou amizade
Ou mera cortesia,
E muita vez até, dizê-lo é crueldade
É só hipocrisia.
O doce beijo de mãe
É o mais nobre dos beijos,
Não é beijo de desejos,
Valor maior ele tem:
É o beijo cuja fragrância
Nos faz secar na infância
Muita lágrima… feliz;
Na vida esse beijo puro
É o refúgio seguro
Onde é feliz o infeliz.
Entre as damas o beijo é praxe estab’lecida,
Cumprimento banal – ridículos da vida!
–:(Imitando o encontro de 2 senhoras na rua)
– Como passou, está bem? (Um beijo.) O seu marido?
(Mais beijos.) – De saúde. E o seu, Dona Mafalda?
– Agora menos mal. Faz um calor que escalda,
Não acha? – Ai Jesus! que tempo aborrecido!…
Beijos dados assim, já um poeta o disse,
Beijos perdidos são.
(Perder beijos! que tolice!
Porque é que a mim os não dão?)
O osculum pacis dos cardeais
É outro beijo de civ’lidade;
Beijos paternos ou fraternais
São castos beijos, só amizade.
As flores também se beijam
Em beijos incandescidos,
Muito embora se não vejam
Os ternos beijos das flores.
Há outros beijos perdidos:
Aqui mesmo,
Há aqueles que os atores
Dão a esmo,
Dão a esmo e a granel…
Porque lhes marca o papel.
– Mas o beijo d’amor?
Sossegue o espectador,
Não fica no tinteiro;
Guardei-o para o fim por ser o «verdadeiro».
Com ele agora arremeto
E como é o principal,
Vai apanhar um soneto
Magistral:
Um beijo d’amor é delicioso instante
Que vale muito mais do que um milhão de vidas,
É bálsamo que sara as mais cruéis feridas,
É turbilhão de fogo, é espasmo delirante!
Não é um beijo puro. É beijo estonteante,
Pecado que abre o céu às almas doloridas.
Ah! Como é bom pecar co’as bocas confundidas
Num desejo brutal da carne palpitante!
Os lábios sensuais duma mulher amada
Dão vida e dão calor. É vida desgraçada
A do feliz que nunca um beijo neles deu;
É vida venturosa a vida de tortura
Daquele que co’a boca unida à boca impura
Da sua amante qu’rida, amou, penou, morreu.
(Pausa – Mudando de tom)
Desejava terminar
A beijar a minha amada,
Mas como não tenho amada,
(A uma espectadora)
Vossência é que vai pagar…
Não se zangue. A sua face
Consinta que eu vá beijar…
……………………. (atira-lhe um beijo)
Um beijo pede-se e dá-se,
Não vale a pena corar…



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