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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A Arthur Rimbaud

Mortal, anjo e demónio, ou seja, Rimbaud,
Mereces o primeiro lugar no meu livro,
Apesar do boçal escriba que te chamou
Ébrio liceal, devasso imberbe, monstro a abrir.

Fumo em espirais de incenso, acordes de alaúde
Alegram-se ao entrares no templo da memória
E o teu nome radioso cantará na glória,
Porque tu amaste como foi preciso, em tudo.

Mulheres verão em ti um jovem muito forte,
Belo, de uma beleza rústica e perversa,
Desejável, com a tua indolência atrevida!

E a história esculpiu-te ao triunfares da morte
Fruindo até aos puros excessos da vida,
Com os teus brancos pés na cabeça da Inveja!

(DEDICÁCIAS)




Paul Verlaine. Poemas Saturianos e Outros. Tradução, prefácio, cronologia e notas de Fernando Pinto Amaral. Assírio&Alvim ., p. 175

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

«— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los.
E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não alteraria!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!»




Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.6

terça-feira, 13 de abril de 2010

Dois Sonetos Morais à Crítica Lusitana de Poesia e à Mesma Poesia em Relação com aquela Crítica, e referentes ao ano de 1970 da Salvação do Mundo

1

Surdos a versos, só do tururum
da banza pinicada vos sentis
molhados entre as pernas. Ou fingis
que imagens e metáforas zunzuns


sem pés e sem cabeça ou piço algum
vos dão na verborreia o que o nariz
de música não saber ser juiz.
E delicados logo uivais se algum

verso mais limpo do que as vossas cuecas,
mais nu de inventos do que de existência,
mais nobre que cantiga de pilecas,

se encrava abrupto na flatulência
de vossas tão francesas bibliotecas.
Ou vos descobre o horror de haver consciência.


2

De cu pró ar contando os sons concretos,
ou co'a mão esquerda em realistas pívias,
ou de tutu e em pontas académicas,
ou boca aberta língua e lábios prontos

a provocar na goela surrealista
toda a tesão dos deuses palavrosos,
os lusos da poesia se preparam
sob as visitas simpáticas da PIDE

que já PIDE não é no nome apenas.
E porque os prelos como putas abrem
a quem lhes paga mesmo mal, as pernas,

às vezes parem livros que os Gaspões
e os outros muitos à semana lambem,
buscando com ardor a esporra seca neles.


Dezembro de 1970


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; pp. 71/2
«Os génios micro-poetas
com solares à beira-povo
hão-de morrer das punhetas
que lhes faz o estilo novo.»




Dezembro de 1971


excerto da dedicácia:'Balada à Maneira de Charles d'Orléans
sobre o Ano Literário Português de 1971'


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.81
O poeta delicado de ascendência humilde
foi sempre um cão batido e se não fosse
viveria mais infeliz ainda por não ser
o cão batido. É bom no fundo, amigo, leal, o dedicado.
Mas, nas entrelinhas dos sorrisos dele,
há sempre um rosnar doce de contida inveja:
é que outros a quem batem são leões ou alifantes,
porém não cães batidos. E não nasceram
nas palhas da província, embora se não escolha
onde se nasce para cão batido.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.97

domingo, 4 de abril de 2010

A Canalha

Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.

7 de Dezembro de 1971

Publicado na revista Hífen, Porto, nº.6, Fevereiro 1991.



Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010.
Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
que «o Sena não se vende». E é verdade:
Não vende. Só as putas se vendem.
E em Portugal são tantas que não há
bolsas bastantes para comprá-las,
nem caralhos bastantes
para fodê-las como mereciam.


Glasgow-Londres, 23 de Fevereiro de 1973

Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp. 87

domingo, 28 de março de 2010

(...)


Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os
[mandasse.

21 de Maio de 1964


excerto da dedicácia Epístola a Álvaro Salema, publicada na revista Hífen, Porto, nº6, Fevereiro de 1991.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.31/2

Sua Putidade o Crimertídaco

Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,
persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe
sempre ao meu lado, e nos lugares aonde
julga que eu passei. Filho, como é,
do que nem pode chamar-se bem
uma puta, vive de cuspir, de arrepelar
de arranhar, de perseguir as sombras
que ele julga serem as de quem não passa
nos becos onde a mãe o deu à luz,
depois de untada a vida com lubrificante
que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,
e a mãe, logo que o viu, lhe calçou
meias verdes e lhe comeu o imbigo.
Filho do que, de puta, nem por prenha basta
para gerar um esterco assim tão penteado,
tão crítico, tão de meias verdes,
tão arrotantemente porco nas regueifas que
do cachaço ascendem ao tutano encefálico,
julga suinamente que não há lugares,
nem seres humanos, livres de presença
de Sua Putidade. Há.
Exactamente as pessoas e os lugares aonde
ser filho da puta é ser filho da puta,
com ou sem regueifas nas ideias
ou verdura nas meias,
ou brilhantina uterina
de quem lambido foi em sua mãe
antes de nascer para cri-mer--da-co.

3 de Agosto de 1962
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.29
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