segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Era difícil, complicada a empresa; tão complicada que Deus não a pôde simplificar...Não pôde...nem soube. O filho, quando nasce, martiriza, tortura a mãe...mata-a muitas vezes...e não ri ao chegar ao mundo...Não ri...chora...grita...

Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...

Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados. É um crime matar, preceituam as leis. Crime muito maior é formar assassinos.

O filho devia amaldiçoar os pais. Foram eles que o condenaram à existência...ao suplício eterno...

Só há uma coisa pior que a vida: é a morte.

Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que tinha mais força do que o Criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos; com os sentidos, ninguém quer ser hipócrita...

A morte era a recompensa da vida. Os homens que estragam tudo, estragam também essa recompensa: inventaram a alma, o Inferno e o Céu.

Só se compreende o compreensível. O Universo é incompreensível para os homens. Por isso estes o admiram, pasmam alarvamente diante dessa chocha «maravilha»...

A vida faz doer. E a morte?


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p. 54/5

1 comentário:

  1. Forte , muito forte , chega a ser violento este argumentar . Lembro-me de ter lido isto quando era novo e não me lembro de o ter lido . Se calhar o Calvino é que tem razão , certos livros precisam de ser estudados mais do que uma vez numa vida . Este pú-lo na minha lista de releitura .

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