terça-feira, 26 de abril de 2011

« [...] perfeitamente gracioso no seu porte, amado por todos, sendo a alegria de todos, não tinha qualquer alegria no seu coração. Sonhos e pensamentos perturbadores vinham até ele, flutuando nas águas do rio, cintilando nas estrelas da noite, fundidos nos raios do sol; sonhos e inquietude de alma vinham até ele, diluídos no fumo dos sacrifícios, suspirados nos versos do Rig-Veda, escorrendo dos ensinamentos dos velhos brâmanes.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 13
« [...] amava o seu espírito, os seus pensamentos elevados e ardentes, os seus desejos impetuosos, a sua vocação nobre.»




Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 12

O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele...

«O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele, ao vê-lo caminhar, sentar-se perto dela e levantar-se; Siddhartha, o forte, o belo, aquele que caminha com pernas elegantes, aquele que saúda com delicadeza.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 12

O Filho do BRÂMANE

 «Na penumbra da casa, ao sol nas margens do rio, junto aos barcos, à sombra do bosque, à sombra das figueiras, cresceu Siddhartha, o belo filho do brâmane, o jovem falcão, na companhia de Govinda, o seu amigo, o filho do brâme.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 11

segunda-feira, 25 de abril de 2011

«Mas eu sou humano, acho, e a minha progressão ressentia-se disso, desse estado de coisas, e de lenta e penosa que tinha sido até ali, tenha eu dito o que tiver, transformava-se, salvo o vosso respeito, em verdadeiro calvário, sem limite de estações nem esperança de crucificação.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 112

Porque o caçador...

«Porque o caçador no fundo não passa de um fraco e de um sentimental, com reservas de ternura e de compaixão, que não pedem outra coisa senão transbordar.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 96
9

As grandes portas do celeiro estão todas abertas,
A erva seca da ceifa amontoa-se na carroça lentamente puxada,
A luz límpida brinca com os matizes do cinzento e do verde,
As braçadas empilham-se na meda de feno que se inclina.

Estou lá, ajudo, vim deitado em cima da carga,
Senti os seus solavancos suaves, uma perna sobre a outra,
Salto das traves e apodero-me do trevo e da erva dos prados,
E dou cambalhotas e o meu cabelo fica todo emaranhado com
             pedaços de palha.




Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 36
5

Acredito em ti, minha alma, o outro que sou não se deve rebaixar
              perante ti,
E tu não te deves rebaixar ao outro.

Entrega-te comigo ao ócio sobre a erva, liberta o nó que tens na
            garganta,
Não quero palavras, música ou rimas, nem regras ou prelecções,
           nem mesmo as melhores.
Apenas gosto da quietude, do sussurro da tua voz velada.


Recordo como numa manhã límpida de Verão em que estávamos
         deitados,
Tu pousaste a tua cabeça nas minhas ancas e te voltaste sobre mim
         com toda a suavidade,
E afastaste a camisa do meu peito e mergulhaste a língua no
         meu coração desnudado,
E te estendes até sentir a minha barba e te estendeste até agarrares
         os meus pés.


De repente surgiram e rodearam-me a paz e o conhecimento que
        ultrapassam todas as polémicas da terra,
E sei que a mão de Deus é a minha promessa,
E sei que o espírito de Deus é meu irmão,
E que todos os homens alguma vez nascidos são também meus
         irmãos e as mulheres minhas irmãs e amantes,
E que o amor é o suporte da criação,
E que são inúmeras as folhas firmes ou a cair nos campos,
E por baixo delas as formigas escuras nos seus pequenos poços,
E crostas musgosas da cerca em ziguezague, pedras amontoadas, o
                sabugueiro, o verbasco e a erva-tintureira.





Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 32/3
Pudesse eu não sentir mágoa, e tudo perdoar, ouvindo o canto dos pássaros nas cerejeiras, ao acordar.
«O meu primeiro cuidado portanto, ao cabo de algumas milhas na alvorada deserta, foi procurar um sítio onde dormir, porque o sono também é uma espécie de protecção, por mais paradoxal que isso possa parecer. Porque o sono, se é certo que excita o instinto de captura, parece apaziguar o da matança imediata e sangrenta, qualquer caçador vo-lo pode dizer.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 95
(...)

Exercitaste-te tanto tempo para aprender a ler?
Sentiste-te muito orgulhoso ao compreender o significado dos
        poemas?

Fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem de todos os
        poemas,
Quero que possuas o que há de bom na Terra e no sol (há milhões
        de outros sóis),
Não quero que recebas mais coisas em segunda mão ou em terceira
        mão, nem que olhes através dos olhos dos mortos, nem
        que te alimentes dos espectros dos livros,
Também não quero que olhes através dos meus olhos, nem que
        recebas de mim coisas,
Quero que tudo escutes e as filtres a partir de ti mesmo.



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 30
«Hei-de ir para o talude junto do bosque e tirar todos os disfarces e
               ficar nu,
Estou louco por lhe sentir o contacto.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 29
«Vós, oceanos que tendes permanecido calmos dentro de mim!
           como vos sinto, insondáveis, agitados, preparando vagas e
           tempestades sem precedentes.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 27
12

Democracia! próxima de ti uma garganta enche-se agora de ar e
           canta alegremente.

Ma femme! para os filhos que vêm de nós e depois de nós,
Para aqueles que são daqui e aqueles que hão-de vir,
Eu, exultante por estar pronto para eles lanço cá fora canções
             mais vigorosas e altivas do que qualquer outras alguma
             vez ouvidas na terra.

Hei-de escrever canções de paixão para lhes mostrar o seu caminho,
E as vossas canções, transgressores proscritos, porque vos observo
             com olhos de pai e vos levo comigo como a qualquer outro.

Hei-de escrever o verdadeiro poema da riqueza,
Alcançar para o corpo e para o espírito tudo o que se lhe prenda e
             progrida e não seja abandonado pela morte;
Hei-de derramar o egotismo e revelá-lo subjacente a tudo e ser o
             bardo da personalidade,
E hei-de mostrar do macho e da fêmea que um é apenas igual ao
            outro,
E os órgão e actos sexuais! Concentrai-vos em mim pois estou
           decidido a dizer-vos com uma voz límpida e corajosa para
           mostrar que sois gloriosos,
E hei-de mostar que não existe qualquer imperfeição no presente
           e nenhuma pode existir no futuro,
E hei-de mostrar que, seja o que for que aconteça a alguém, pode
           transformar-se em belos resultados,
E hei-de mostrar que nada existe de mais belo que a morte,
E hei-de passar um fio através dos meus poemas para que o tempo
           e os acontecimentos fiquem unidos,
E todas as coisas do universo sejam milagres perfeitos, cada um tão
           profundo como os outros.

Não irei escrever poemas que se refiram a partes,
Mas hei-de escrever poemas, canções, pensamentos que se refiram
           ao todo,
E não hei-de cantar referindo-me a um dia, mas sim referindo-me
          a todos os dias,
E não hei-de fazer um poema ou a mínima parte de um poema
          que não se refira à alma.

Porque, após ter olhado para os objectos do Universo, vi que não
           existe um, nem uma partícula de um que não se refira à
          alma.




Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 23/4

Ao partir de Paumanok

1


Ao partir de Paumanok, a ilha em forma de peixe, onde nasci,
Bem gerado e educado por uma mãe perfeita,
Após ter percorrido muitas terras, enamorado pelos passeios
            cheios de gente,
E ter habitado em Mannahatta, a minha cidade, ou nas savanas do
             Sul,
Ou ter acampado como soldado e carregado com a minha mochila
             e a espingarda, ou sido um mineiro na Califórnia,
Ou, rústico, ter vivido na minha terra, nas florestas de Dacota,
             alimentando-me de carne e bebendo nas fontes,
Ou ter-me retirado para devanear e meditar num profundo recanto
Longe do mundo das multidões, momentos cheios de enlevo e
             felicidade,
Conhecendo o fresco e o generoso curso do Missuri, conhecendo o
            importante Niágara,
As manadas de búfalos que pastam nas planícies, o hirsuto e o
           corpulento touro,
Com a experiência da terra, das rochas, das flores de Maio,
           maravilhado com as estrelas, a chuva, a neve,
Atento aos vários cantos do mimo e ao voo do falcão da montanha
E ouvindo de madrugada o incomparável tordo eremita a cantar
           nos cedros do pântano,
Eu, solitário no Oeste, entoo o meu canto para um Novo Mundo.


Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 16

domingo, 24 de abril de 2011

«Também a ele, ela havia de enterrar um dia. Dentro da gaiola, provavelmente. Também a mim, se ali tivesse ficado, ela teria enterrado. Se tivesse o endereço dela, escrever-lhe-ia, para que viesse enterrar-me.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 53

ascese

busca do aperfeiçoamento espiritual através do afastamento do mundo e da renúncia aos prazeres associados à vida terrena.

(Do gr. áskesis, «id.»)

''arrastadas à queda pela paixão''

ora aí está uma coisa que eu sempre pensei sobre as mulheres. Mas, também, parafraseando, podem ser arrastadas até ao arrebatamento delas próprias, pela paixão.

Nu féminin (1890)


«[...] o tantrismo se propõe a reintegrar – de novo: reincorporar – todas as substâncias, sem excluir as imundas, como o excremento, e as proibidas, como a carne humana. [...] o festim tântrico é uma deliberada transgressão, uma ruptura das regras que tem por finalidade provocar a reunião de todos os elementos e substâncias. Abater as muralhas, transbordar os limites, suprimir as diferenças entre o horrível e o divino, o animal e o humano, a carne morta e os corpos vivos: samarasa, sabor idêntico de todas as substâncias.»



Octavio Paz. Conjunções e Disjunções, pg. 67.

a propósito do tantrismo em Conjunções e Disjunções,

« (...)uma experiência total, carnal e espiritual, que deve verificar-se concreta e realmente no rito.»


Desta forma, o sexo ritual é tido como um índice de religiosidade tão elevado, que incorpora o sexo à religião, em vez de excluí-lo, como afirma Octavio Paz.


 Octavio Paz. Conjunções e Disjunções, pg. 62
«Eis uma das razões por que evito falar sempre que possível. Porque digo sempre ou demais ou de menos, o que me faz sofrer, porque sou um amante da verdade.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 48

Reclining Nude; Oregon, 1976

«O homem do Egeu, sedento de calor, de luz, matei-o, matou-se ele, muito cedo, em mim.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 41
«Há que rendermo-nos à evidência, não somos nós que estamos mortos, são todos os outros.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37
«As minhas razões? Tinha-as esquecido.Porém conhecia-as, julgava conhecê-las (...)»

Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37
«Dentro do fosso a erva era basta e alta, tirei o chapéu e arrumei as compridas folhudas hastes à roda da cara. Cheirei então a terra, o cheiro da terra estava na erva, que as minhas mãos entrançavam sobre o rosto, de tal maneira que fiquei sem ver.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37

sábado, 23 de abril de 2011

''Já não vivo contigo'', diz Maggie a Brick. ''Nós apenas ocupamos a mesma gaiola.''

 in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)
«Não confio em homens que não bebem.»


 in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)
Como é que um náufrago
ajuda outro que se está a afogar?


Paul Newman in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)

Marilyn - Crucifix II (1962)



Porém...

«Porém, só depois de deixar de viver é que penso, nestas e noutras coisas. É na tranquilidade da decomposição que me recordo dessa longa emoção confusa que foi a minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos há-de julgar e com a mesma impertinência.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 34
«Sou um homem que deambula sem parar totalmente, por acaso
                olha para ti e de seguida desvia o rosto,
Deixando que sejas tu quem venha prová-lo e defini-lo,
E espera de ti as coisas principais.»


Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 15

sexta-feira, 22 de abril de 2011

MENSAGEIRO

(...) « Se o que eu te conto não te é grato, não ponho nisso prazer: digo, porém, a verdade.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.47
«Aos filhos que gerámos, vê-os ele como um lavrador que, tomando um campo distante, o contempla uma só vez ao semeá-lo e uma outra no tempo das colheitas.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.34
Dejanira

«Há uma sentença antiga entre os homens que afirma não poder a vida humana, até que a morte venha, ser tida como feliz ou infortunada, mas aquela que eu levo - e mesmo antes de ao Hades descer - sei bem que é infeliz e pesada. Quando eu vivia no palácio de meu pai, Eneu, em Plêuron, uma dolorosa angústia quanto às núpcias me assaltou, como a mulher alguma da Etólia. Meu pretendente era um rio, de nome Aqueloo, que sob três formas diferentes me vinha pedir a meu pai: ora se apresentava sob o aspecto de um touro, ora de uma serpente de espirais multicores, ora de um ser humano com cabeça taurina: das suas faces de barba espessa brotavam jorros de água viva. Na expectativa de tal pretendente, eu, triste de mim, ansiava pela morte antes que de um tal leito me aproximasse.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.33

quinta-feira, 21 de abril de 2011



«Seja como for, quero eu dizer tenha ou não me tenha visto, repito que o via afastar-se, a braços (eu) com a tentação de me levantar e de o seguir, de ir mesmo talvez com ele um dia, para o conhecer melhor, para eu próprio ficar menos sozinho. Mas apesar de este impulso da minha alma para ele, e o elástico da minha alma, por causa da obscuridade e também do terreno, atrás de cujas pregas desaparecia de vez em quando, para tornar a emergir mais adiante, mas sobretudo creio por mor das outras coisas que me chamavam e para as quais igualmente a minha alma devorava uma após outra, sem método e esbaforida. Falo naturalmente dos campos embranquecendo sob o carvalho e dos animais deixando de neles vaguear sem tomar as suas atitudes nocturnas, do mar do qual não direi palavra, do céu onde sem as ver sentia estremecer as primeiras estrelas, da minha mão sobre o meu joelho e ainda sobretudo do outro passeante.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 13/4
«Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata».

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.98
«Peixe! - disse o velho. - Peixe! Seja como for, tu vais morrer. Precisas também de me matar?»

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.98
«Mas preciso dele bem perto, perto, perto, pensou. Não devo apontar à cabeça. Preciso de acertar no coração.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.96
«Tenho de manter-lhe a dor no grau em que está, pensou. A minha não importa. A minha domino eu. Mas a dele pode enlouquecê-lo.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.93
«Quanto a mim, gostaria agora de falar das coisas que me restam, de fazer as minhas despedidas, de acabar de morrer. Eles não querem. Sim, são muitos, parece. Mas é sempre o mesmo que vem.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 7
«Dejanira não é a mulher de grandes decisões, nada tem de Antígona ou de Electra, a não ser a solidão: mas a sua é uma solidão diferente - a da mulher insegura e frágil que vive dependente em exclusivo da figura de Héracles, a quem referencia toda a sua existência, identificando a morte ou a salvação do herói com a sua própria morte ou salvação (vv. 83-85)»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.17
Deverei concordar sempre contigo, Pai, e dizer-te sempre o mesmo: hoje são as minhas cinzas espalhadas, amanhã serão as tuas. O que vos posso dizer, vós do meu sangue? Que vos amei sempre, embora, tenhais, colocado em cima dos meus ombros pesados fardos, e, uma pedra no lugar daquilo a que chamam coração. Não espero que a vida me contemple, porque talvez não tenha sido essa a semente que me trouxe a árida terra. Não espero que me possam compreender, pois, a raiva muito me consumiu, muito me fez alguém, eu, que tantos anos vivi como se não fosse ninguém. Contemplo a espera, o céu, e a estrela lá no alto. Dou por mim, silente, melancólica, pensando-te, a ti, o único do meu sangue, que, tanto me fez verter lágrimas. A minha memória era-me um fardo. Fui fechando as gavetas com o tempo, e hão-de permanecer fechadas;delas já não há nada a conhecer . Lembro-me do punhado de terra na mão fechada, que nunca pude verter sobre o túmulo, sem nada entender. E continuo sem entender, as coisas daquele tempo. Porém, reservaram-me a passagem dolorosa pelas brasas, e, delas colhi, a ternura da endurecida caminhada. Desde que te perdi, ó sangue, sou eu mesma, a que espezinhada e amedrontada, se ergueu do adormecimento, para ser, e apenas isso: ser e existir no vento que atravessa os desertos.


[e, com o tempo, vai terminando o patético e odioso labor dos umbigos.]

terça-feira, 19 de abril de 2011

«-Também o peixe é meu amigo - disse em voz alta. Nunca vi nem ouvi falar de um peixe
assim. Mas tenho de o matar. Agrada-me pensar que não temos de matar as estrelas.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.80/1

Sailboat At Sea

«Peixe! - disse a meia voz. - Hei-de ficar contigo até morrer.                                (p.58)


«Peixe - disse. - Amo-te e respeito-te muito. Mas hei-de matar-te, antes do          (p.60)
dia acabar.»




Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956.
«Tinha escolhido permanecer nas águas fundas e sombrias, fora dos laços, das traições, dos engodos. E eu escolhi ir até lá ao encontro precisamente dele. Precisamente dele e de ninguém mais. E agora estamos unidos, e têmo-lo estado, desde o meio-dia.E ninguém pode ajudar-nos, a qualquer de nós».
«Talvez eu não devesse ser pescador, pensou. Mas foi para o que nasci.Não devo esquecer-me de comer a «tuna», antes de aclarar».


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 56

segunda-feira, 18 de abril de 2011

« Acalma-te, sê gentil - disseram-lhe os outros.
-Tu tens sempre argumentos para criticar as empresas dos teus camaradas não podes impedir que alguém se ria um pouco das tuas...
-Eu não ofendo ninguém: limito-me a precisar os factos, com lugares, datas e provas!
-Fui eu que falei. Também eu vou provar!»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93
«Nem defende nem ataca, nada tem sentido - disse Torrismundo. - A guerra durará até à consumação dos séculos, não haverá nem vencedor nem vencido, ficaremos uns em frente dos outros para sempre. E sem uns e outros não seriam nada. E doravante somos nós que esquecemos porque combatemos...Ouves estas rãs? Tudo o que fazemos tem tanta lógica e tanto sentido como o seu grasnar, os seus saltos da água para a margem e da margem para a água...»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93

Não se pode estar seguro de nada...

« E de que queres tu estar seguro? - interrompeu-o Torrismundo. - Decorações, postos, pompas, títulos...Tudo é uma patarata. Os escudos, com os feitos e as divisas dos paladinos, não são de ferro: são de cartão, que se pode atravessar com um dedo, de lado a lado.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 92

Nieves, Model of Diego Rivera, Cuernavaca

QUANDO LI ESTE LIVRO

«Quando li este livro, a famosa biografia,
E então é isto (disse eu) aquilo a que o autor chama a vida de um
                  homem?
E é assim que, depois de eu ter morrido e desaparecido, alguém
                  irá escrever a minha vida?
(Como se alguém soubesse na verdade qualquer coisa da minha vida,
Na realidade eu próprio muitas vezes penso pouco da minha vida,
                  da minha vida real,
Apenas algumas suspeitas, alguns indícios difusos e vagos ou
                  sugestões dissimuladas
Que procuro para meu próprio uso descobrir aqui.)



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p.11
«Ninguém devia estar só na velhice, pensou. Mas é inevitável.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 54

« (...), e fez por não pensar, aguentar apenas.»

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 52
«Come, de maneira a que o bico do anzol se te espete no coração e te mate, pensou. Vem para cima sossegado, que eu meto-te o arpão. Muito bem. já acabaste? Estiveste à mesa o tempo que quiseste?»



Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 50

domingo, 17 de abril de 2011

(...)

«Eis aqui os nossos pensamentos, pensamentos de viajantes,
Eis que aparece não só a terra, a terra firme (poderão eles então dizer),
Aqui o céu forma um arco, sentimos sob os pés o balançar do convés,
Sentimos a longa pulsação, o fluxo e o refluxo do movimento sem fim,
Os sons do mistério invisível, as vagas e vastas sugestões do mundo marítimo,
                as sílabas líquidas e fluentes,
O perfume, o ligeiro ranger do cordame, o ritmo melancólico,
A vista ilimitada e o longínquo e indistinto horizonte estão todos aqui,
E é este o poema do oceano.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p.6

«Sempre pensava no mar como la mar, que é o que o povo lhe chama em espanhol, quando o ama.»

«(...) . Mas o velho sempre pensava no mar como feminino, como algo que entrega ou recusa favores supremos, e, se tresvariava ou fazia maldades era porque não as podia deixar de as fazer. A lua influi no mar como as mulheres, pensava ele.»



Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 34/5

Sim, Senhor!

«- Quando eu era da tua idade, ia de marujo num navio rumo à África e vi leões nas praias ao anoitecer.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p.26

sábado, 16 de abril de 2011

« - Eh pintainho, tens um belo encher de peito para a nossa paladina. A ela, agora, só lhe agrada uma couraça limpa por dentro e por fora. Não sabias que está apaixonada por Agilulfo?
   -Mas como pode ser...Agilulfo...Bradamante...Como é possível?
   -É possível quando uma mulher perdeu o desejo por todos os homens existentes, e o único desejo que lhe resta é por um homem que não existe...»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
    «No limite do campo, Agilulfo passava lentamente. Sobre a armadura branca pendia um longo manto negro. Caminhava como quem não quer olhar, mas sabe que o olham, e crê dever mostrar que isso não lhe importa, quando, pelo contrário, importa-lhe sim, mas de uma maneira diferente daquela que os outros poderiam compreender.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
« - Acertas no alvo, mas sempre por acaso.
   - Por acaso? Não falho uma flecha.
   -Mesmo que atirasses bem cem flechas, era sempre por acaso.
   -Então o que é por acaso? Quem consegue acertar sem ser por acaso?»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher...

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher: mas é bem o amor que ela lhe inspirara? Ou não é antes o amor por ele próprio, a busca de uma certeza de existir que só a mulher lhe pode dar? Corre e enamora-se o jovem, duvidando de si mesmo, feliz e desesperado; para ele a mulher é esta presença incontestável, e só ela pode dar-lhe a prova desejada. Mas também a mulher está e não está ali: ei-la, assim como ele, ansiosa e insegura. Como é que o jovem não se apercebe disso? Que importa qual, entre os dois, é o mais forte ou o mais fraco? Estão à mesma altura. Mas o jovem não sabe porque não quer saber: o que ele deseja, avidamente, é a mulher que existe, a mulher indubitável. Ela, ao contrário, sabe mais coisas; ou menos; de qualquer maneira sabe outras coisas; agora é uma maneira diferente de ser que ela procura; fazem, em conjunto, um concurso de tiro ao arco; ela ri-se dele e não o aprecia; ele não sabe que é para se divertir.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 87

sexta-feira, 15 de abril de 2011

«Em definitivo, a guerra é um tanto matadouro, um tanto rotina, e não vale a pena olhá-la de muito perto.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 84

Rambaldo arrasta um morto e pensa

Rambaldo arrasta um morto e pensa: «ó morto, eu corro, eu corro para chegar aqui, como tu, para me fazer arrastar pelos calcanhares. O que valem esta fúria que me impele, esta ânsia de batalhas e de amores, vistas de onde as observam os teus olhos fechados, a tua cabeça caída que bamboleia sobre as pedras? Eu o sei, ó morto, és tu que me fazes saber. Mas o que muda? Nada. Não existem outros dias além daqueles nossos dias que nos levam à cova, para nós, vivos, e também para vós, mortos. Que me sejadado a não desperdiça-los, não perder nada do que sou e do que poderei ser.Cumprir acções ilustres para o exército franco. E abraçar, abraçado pelaorgulhosa Bradamante. Espero que tenhas empregado bem os teus dias, ó morto.Para ti, os dados já foram lançados. Para mim, ainda rodopiam no copo. E euamo, ó morto, a minha ansiedade, não a tua paz.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 78

terça-feira, 12 de abril de 2011

(...)

«Já vindo ao coração veneno assim bebido,
no coração lançou frio desconhecido;
Já só consigo ver por uma nuvem densa
céu e marido a quem ultraja esta presença;
vem a morte roubar-me aos olhos a clareza
e ao dia, onde eram mancha, outra vez dar pureza.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 167

CENA V: TESEU, PÂNOPE

PÂNOPE

Ignoro o que a rainha a projectar medita,
Senhor. Mas temo bem a exaltação que a agita.
Desespero mortal se pinta em sua tez
e seu rosto já tem da morte a palidez.
Já da presença dela expulsa, e infamada,
Enone ao fundo do mar se atirou, desvairada.
Desígnio tão febril não sei como lhe veio
e a levam para sempre as ondas no seu seio.


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 153

segunda-feira, 11 de abril de 2011

ARÍCIA

(...)

«Pois do seu coração não tendes consciência?
E tão mal distinguis o crime e a inocência?»



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 151
«Minos julga no inferno os pálidos humanos.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 137
«Que fogo mal extinto em meu peito desperta?
Que raio, ó Céu, que aviso em tão funesto brilho!»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 131

sexta-feira, 8 de abril de 2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

dos caríssimos que me caem no blogue com pérolas destas.
 Nem sei o que diga. Bem, pelo menos, serve-me para rir um pouco.

«eu quero o karalho do poema de camilo pessanha que ? a clepsydra»

''Os fermentos mais impuros''

''Toda a terra é terra, e pouco importa onde é semeada, desde que a semeemos.''

Doresse, Les livres secrets des gnostiques d’Égypte, pg. 17.


«Esta é a utilidade da memória:
Libertação – não diminuição do amor mas crescimento
Do amor para além do desejo, e assim libertação
Do futuro e do passado.»

terça-feira, 5 de abril de 2011

«Combater com um companheiro ao lado é mais belo do que combater sozinho: encoraja e conforta. E o sentimento de ter um inimigo e o de ter um amigo fundem-se no mesmo calor.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 59/60

segunda-feira, 4 de abril de 2011

«Antes de um grande crime, alguns crimes há.»

...

Um dia só não faz de um mortal virtuoso
um pérfido assassino e um torpe incestuoso.


Hipólito



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 121
(...)

«Tanto golpe imprevisto em mim desaba atroz
que sem palavras fico e se me abafa a voz.»

Hipólito



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 121
(...)

«Não se devia até, nalguns sinais, enganos
ver logo, e o coração dos pérfidos humanos?»

Teseu



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 117
(...)

«Não sei para onde vou, não sei mesmo onde estou.
Ó ternura! Ó bondade a ser paga em tormento!»


Teseu


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 115

domingo, 3 de abril de 2011

«(...) O vale abria-se, estriado pelos férteis campos de aveio e sebes dos medronheiros, onde o vento corria em grandes rajadas, carregadas de pólen e de borboletas. No céu flutuava a espuma das nuvens brancas.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 41
« - Dai-lhe uma gamela de sopa! - disse, clemente, Carlos Magno.
    Com caretas, contorções e propósitos incoerentes, Gurdulú retirou-se para comer, debaixo de uma árvore.
    - Mas que faz ele, agora?
     Estava procurando meter a cabeça dentro da gamela, pousada no chão, como se quisesse entrar dentro dela. O bom jardineiro aproximou-se e puxou-o por um ombro: - Quando é que compreenderás, Martinzúl, que és tu que deves comer a sopa, e não a sopa te comer? Não te lembras? Deves levá-la à boca com a colher.
    Gurdulú começou a meter colheradas na boca, com avidez. Utilizava a colher com tanta fúria que, às vezes, errava o alvo. No tronco da árvore, sob a qual estava sentado, abria-se uma cavidade, mesmo à altura da sua cabeça. Gurdulú pôs-se a deitar colheradas de sopa no buraco do tronco.
 -Aquela não é a tua boca! É a árvore - disse o jardineiro.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 40
HIPÓLITO

                                                          
                                                    Porém, demais já me adianto.
                Vejo a razão ceder da violência à lei.
                 Mas pois silêncio eu já rompendo comecei,
                Senhora, continuo: e vos devo informar
                de um segredo que assim não posso mais guardar.
                Um príncipe ante vós se mostra deplorável,
                de um temerário orgulho exemplo memorável.
                Eu que, contra o amor me revoltei altivo,
                e em ferros insultei quem dele era cativo;
               que naufrágios chorando em tão fracos mortais,
               pensei sempre de bordo olhar os temporais;
               sob essa comum lei sofrendo o jugo ao fim,
               que turvação me faz longe me ver de mim?
               Um momento venceu a minha audácia imprudente:
                esta alma tão soberba enfim é dependente.
               Mais de seis meses já, em pejo e em desgraça,
               dentro de mim levando um dardo que espedaça,
               contra vós, contra mim, me ponho à prova em vão:
               sois presente e vos fujo; ausente, e estais-me à mão:
               dos confins da floresta eis que a vossa figura
               me segue; e a luz do dia e até a noite escura,
               tudo a meus olhos traça encantos que evito,
              e tudo a mim rebelde a vós leva contrito.
              Eu mesmo, e é fruto só de tanto assim cuidar,
              eu me procuro já, sem nunca me encontrar.
              Arcos, dardos, corcel, tudo me é importuno.
              Já não lembro sequer lições que deu Neptuno.
              Ao som do meu gemer os bosques estremecem
              e meus pagens em ócio a minha voz esquecem.
              Talvez que a narração de amor tão desvairado
              vos traga algum rubor pelo que haveis causado.
              De um peito dado a vós, que duro tratamento!
              E que estranho cativo em tão belo tormento!
              A oferta a vosso olhar maior fora e tamanha.
              Pensai que vos falei nalguma língua estranha,
              sem rejeitar o voto expresso em pouco jeito,
              que Hipólito sem vós jamais teria feito.



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 73/4
ARÍCIA

Bondades moderai, o excesso me embaraça.
Tão generoso sois, honrando-me a desgraça,
Senhor, que me ides pôr, e mais do que pensais,
sob as austeras leis de que me libertais.




Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 69
«Uma esperança adoça esta mortal tristeza.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 69

sábado, 2 de abril de 2011

Tenho notado que, por todo o lado, os seus nomes mudam conforme as estações. Dir-se-ia que todos estes nomes passam por ele, sem nunca conseguirem fixar-se. É-lhe indiferente o nome que lhe dêem. Chamaste-lo e ele julgou que chamaste uma cabra: direi «queijo» ou «torrente» e ele responderá: «Estou aqui!»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 38
«Ele, Agilulfo, tinha sempre necessidade de sentir perante si as coisas como um espesso muro, ao qual contrapunha a força da sua vontade. Só assim conseguia manter uma segura consciência de si mesmo. Se, pelo contrário, o mundo que o envolvia se espumava, se tornava incerto, ambíguo, então também ele se sentia imergir na doce penumbra, e não conseguia mais fazer brotar, deste vazio, um pensamento distinto, um movimento voluntário, uma ideia fixa. Sentia-se mal: eram aqueles os momentos que tinha a sensação de que ia desaparecer. Só às custas de um supremo esforço conseguia não se dissolver. Então punha-se a contar: folhas, pedras, lanças, pinhas, qualquer coisa que estivesse à sua frente; ou a pô-las em fila, a ordená-las em quadrados ou em pirâmides. Aplicar-se a estas observações meticulosas permitia-lhe vencer o mal-estar, dominar a insatisfação, o marasmo, e encontrar a lucidez e a compostura habituais.
      Assim o viu Rambaldo: com gestos medidos e rápidos, dispunha as pinhas em triângulo e somava com obstinação as pinhas dos quadrados dos catetos, confrontando-as com as do quadrado da hipotenusa. Rambaldo compreendia que tudo se processava segundo rituais, convenções, protocolos, e, debaixo disto, o que é que havia, afinal de contas? Sentia-se tomado por uma angústia indefinida, sabendo-se fora de todas estas regras do jogo...Mas então, também o querer vingar a morte de seu pai, o ardor de combater, de se alistar, entre os guerreiros de Carlos Magno, não seriam mais do que um ritual, para não desaparecer no nada? Um pouco como o tirar-e-pôr das pinhas do cavaleiro Agilulfo? Oprimido pela perturbação de tão inesperadas perguntas, o jovem Rambaldo deitou-se no chão e começou a chorar.
     Sentiu qualquer coisa pousar-lhe nos cabelos, uma mão, uma mão de ferro mas leve. Agilulfo estava de joelhos diante dele.
      -Que tens, rapaz? Porque choras?
      Os estados de depressão, de desespero ou de furor nos outros seres humanos davam imediatamente a Agilulfo uma calma e uma segurança perfeita. O sentir-se imune à depressão e à angústia, a que estavam sujeitas as pessoas existentes, levaram-no a tomar uma atitude superior e protectora.
      -Perdoai-me - disse Rambaldo -, é sem dúvida fadiga. Em toda a noite não consegui fechar os olhos e agora encontro-me desorientado. Pudesse ao menos dormir um pouco...Mas agora é dia. E vós que tendes velado, como fazeis?
      -Eu ficaria perdido se adormecesse, nem que fosse por um momento - disse docemente Agilulfo -, não estaria mais em lado nenhum, perder-me-ia para sempre. Por isso eu passo bem acordado cada minuto do dia e da noite.
      -Deve ser mau...
       -Não! - A voz tornou-se seca e dura.
       -E a vossa armadura? Nunca a tirais de cima de vós?
       Tornou a murmurar:
       -Não tem nada dentro. Tirar ou pôr, para mim, não tem sentido.
        Rambaldo levantara a cabeça e olhava pela abertura da viseira, como se procurasse, naquela escuridão, a centelha de um olhar.
       - E como pode ser?
       - E como pode ser de outra maneira?
        A mão de ferro da armadura branca estava pousada ainda sobre os cabelos do jovem. Rambaldo sentia-a sobre a sua cabeça, apenas como uma coisa, sem lhe comunicar qualquer calor humano, consolador ou importuno que fosse. No entanto, sentia como se lhe propagasse uma tensa obstinação.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 27-30

«Aquele é um cavaleiro que não existe.»

« - Mas como não existe? Eu ouvio-o. Existia.
   - O que é que viste? Ferragens...É alguém que existe sem existir, compreendes miúdo?»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 24

« - Houve uma altura em que ouvi durante muitas noites...

« - Houve uma altura em que ouvi durante muitas noites o barulho de uma festa. Os sons chegavam até à Meia-Lua. Aproximei-me para ver aquilo e o que vi foi isto: o que estamos agora a ver. Nada. Ninguém. As ruas tão desertas como agora.
       Depois, deixei de ouvir. É que a alegria cansa. Por isso não estranhei que aquilo acabasse.
       -Sim - voltou a dizer Damiana Cisneros. - Esta aldeia está cheia de ecos. Eu já não me assusto. Ouço os uivos dos cães e deixo-os uivar. E em dias de corrente de ar vê-se o vento a arrastar folhas de árvores quando aqui, como vês, não há árvores. Já houve, noutros tempos, porque se assim não fosse de onde viriam estas folhas?
       E o pior de tudo é que quando ouves pessoas a conversar, como se as vozes saíssem de alguma fenda e, no entanto, tão claras que as reconheces. Nem mais nem menos, agora quando vinha a caminho, passei por um velório. Parei para rezar um pai-nosso. Estava a rezar quando uma mulher se afastou das outras e veio dizer-me:
        «-Daminana! Roga a Deus por mim, Damiana!»
        Afastou o manto e reconheci a cara da minha irmã Sixtina.
        «-Que estás tu a fazer aqui?» - perguntei-lhe.
        Nessa altura, ela correu na direcção de outras mulheres e escondeu-se.
        A minha irmã Sixtina, caso não saibas, morreu quando eu tinha doze anos. Era a mais velha. E na minha casa éramos dezasseis, agora calcula há quanto tempo está morta. E olha para ela agora, ainda a vaguear por este mundo. Por isso não te assustes se ouvires ecos mais recentes, Juan Preciado.
       - A minha mãe também a avisou da minha chegada? - perguntei-lhe.
       - Não. E a propósito, o que é feito da tua mãe?
       -Morreu - disse.
       -Já morreu? E de quê?
       -Não cheguei a saber. Talvez de tristeza. Suspirava muito.
       -Isso é mau. Cada suspiro é como um sorvo de vida de que uma pessoa se desfaz. Então morreu?
       -Sim. Pensei que talvez a senhora soubesse.
       -E por que razão saberia? Há muitos anos que não sei de nada.
       -Então como é que deu comigo?
       - ...
       -A senhora está viva, Damiana? Diga-me, Damiana!
       E de repente fiquei só naquelas ruas vazias. As janelas das casas abertas de par em par, deixando entrar os ramos flexíveis das trepadeiras. Silvas esguias subiam pelos tijolos nus das paredes.
      -Damiana! - gritei. - Damiana Cisneros!
       Respondeu-me o eco: « ... ana ...neros...!...ana...neros...!»
 
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 58/9
«Um cavalo passou a galope no cruzamento da rua principal com o caminho de Contla. Ninguém o viu. Todavia, uma mulher que estava à espera nas imediações da aldeia contou que tinha visto o cavalo a correr com as pernas dobradas como se estivesse prestes a cair de bruços. Reconheceu o alazão de Miguel Páramo. E até pensou: «Este animal vai partir o pescoço.» Depois, viu-o endireitar o corpo e, sem abrandar a corrida, caminhar com o pescoço atirado para trás como se viesse assustado por algo que deixara para trás.»
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 44
ARÍCIA

(...)

Tudo o ferro ceifou e húmido chão pranteia




Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 65
ISMÉNIA

De tal frieza sei o que se diz bastante;
mas vi perto de vós Hipólito arrogante;
E mesmo, ao vê-lo, o seu renome de vaidade
por ele redobrou-me a curiosidade.
Em nada a fama assim ele correspondia;
pois mal o olháveis vós, logo se confundia.
Os seus olhos que em vão tentavam evitar-vos,
já cheios de langor, não podem, não, deixar-vos.
Nome de amante pode ofender-lhe a coragem,
mas disso ele olhos tem, se não tem a linguagem.




Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 65
seu choro não terá mais mãos a que enxugar-se;



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 59

GMB Akash

Bastou ouvi-lo dizer, que prefere viver no seu inferno, o seu país, Bangladesh, do que viver no conforto da Europa, para querer intensamente descobri-lo. Tem um trabalho, que é uma viagem 'à privacidade' dos homens esquecidos. Esses, que vivem, com pouco mais de 2 euros, e, com as dores que só no Inferno, se conhecem.

aqui a sua página.
ENONE

Gela-me o sangue, ó Céus!, nas veias já não passa.



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 51
ENONE

O quê? De que remorso estais despedaçada?
Que crime produziu em vós dor tão premente?
Tereis sujado as mãos nalgum sangue inocente?


FEDRA

Ah, Céus!, as minhas mãos livres de crime são.
Pudesse assim eu ter sem culpa o coração!



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 45
«(...)

Recobrai sem tardar vosso perdido alento,
tanto que em vossa vida a chama não é finda
e em vez de se apagar pode acender-se ainda.»



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 45

sexta-feira, 1 de abril de 2011

'Estamos sempre a envelhecer'

            «...De vez em quando, Agilulfo parava perplexo sem saber se devia comportar-se como quem, só pela sua presença, sabe impor o respeito pela disciplina, ou como quem, encontrando-se onde nada tem a fazer, recua, discreto, e toma um ar ausente. Nesta incerteza detinha-se pensativo e não conseguia tomar nem um nem outro partido. Só sentia que se tornava fastidioso e teria feito qualquer coisa para estabelecer relações com os seus próximos, como por exemplo, pôr-se a gritar ordens; injúrias dignas de um cabo, ou então dizer palavrões e zombar como à mesa de uma taberna. Em vez disso murmurava palavras de saudação ininteligíveis, com uma timidez mascarada de soberba, ou um orgulho moderado pela timidez, e passava adiante. Mas sempre que lhe parecia que os outros lhe dirigiam a palavra, voltava-se e dizia apenas; «Eh?», mas depois convencia-se logo que não era com ele que estavam a falar e ia-se embora como se fugisse.»
 
 
Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 17/8

''Porque eu não existo, Sire.''

   «Agilulfo deu alguns passos para se juntar a um dos grupos, depois, sem qualquer motivo, passou a outro, mas sem tentar misturar-se, e ninguém lhe prestou atenção. Parou, um pouco indeciso, atrás de uns ou de outros, sem participar nos seus diálogos; por fim, afastou-se. Caía o crepúsculo. No elmo, a pluma irisada parecia de uma única e indistinta cor; mas a armadura branca destacava-se, nítida, ali no prado. Agilulfo, como se de súbito se sentisse nu, cruzou os braços e contraiu os ombros. Depois recompôs-se e, em largos passos, dirigiu-se para as cavalariças.»


 
Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 11

questiúncula

(a) - questão fútil
(a') - discussão sem importância

«Cada palavra, cada gesto eram previsíveis...

«Cada palavra, cada gesto eram previsíveis, assim como tudo naquela guerra, que durava há tantos anos; cada encontro, cada duelo, conduzidos sempre segundo aquele cerimonial, sabendo-se hoje quem é o vencedor de amanhã, quem é o vencido, quem será o herói, quem será o cobarde, quem se fará estripar e quem conseguirá salvar-se depois de ter sido lançado por terra, para fora do arção. Nas couraças, à noite, à luz das tochas, os martelos batiam sempre as mesmas amolgaduras.



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 8

quinta-feira, 31 de março de 2011

Som do cavalo

Na vila implanto o som,
o sibilino trote segue os silvos
no ocaso. Vê-se o amor eclode
em casas onde emergem
os fumos
que o outono exuma.

Os alimentos fervem
o seu escasso paladar sobre os feixes.
E são excessivos os óleos e os panos
de envolver os mortos deste dia. O ocaso
que é na vila, e nós
a percorrer no som que a percorria
o amor, tersos lajedos
onde o cavalo freme, os fumos
se degradam,
e lhe desfaz o homem o freio tenso
e ali recolhe
o seu repouso o medo.




Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 82

Sesta IV

Perdura a imagem
do mar
visto dúctil
o senso suave
de a profunda
água ser mutável.


Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 66

Ante - Sesta

Dos tempos e os fios
de águas naturais
só restam os mais
doridos deleites
duradouros

Como se fossem só
dias transitórios
e o homem
não pudesse ao ódio
o ar acrescentar-lhes.


Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 65

quarta-feira, 30 de março de 2011

«Foi Ele quem te conduziu através deste imenso e temível deserto,
repleto de serpentes venenosas, e de escorpiões, terra estéril e sem
água, onde fez jorrar, para ti, água da pedra dos rochedos.»


(Deuteronómio, pg. 236)
FEDRA

Que insensatez! Que disse eu? Onde estou?
Meus votos, minha mente, o que é que os transtornou?
Perdi-a: os Deuses já não deixam que funcione.
E o meu rosto a corar desta vergonha, Enone:
demais te deixo ver a minha dor enquanto
meus olhos, sem querer, assim se enchem de pranto.



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 41
Nossos gritos já mal ressoam no arvoredo.
Sob um secreto fogo o vosso olhar é quedo.
Não há que duvidar: vós ardeis, vós amais;


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 35
E em minha juventude a louco amor me dou...


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 35
« a mais madura idade eu mesmo tendo vindo,
ao ir-me conhecendo eu me ia aplaudindo.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 33
HIPÓLITO

Esse tempo morreu. Tudo mudou de rosto
quando dos Deuses foi mandada a estes destinos
a filha de Pasífaa e do rei Minos...


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 29

terça-feira, 29 de março de 2011

Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se tratava a batalha de Aljubarrota

Está sobre a mesa e repousa
o pão
com uma arma de amor
em repouso

As armas guardam no campo
todo o campo
Já os mortos não aguardam
e repousam

Dentro de casa ela aguarda
abrir o forno
Ela tem mão que prepara
o amor

Pelos campos todos armas
não repousam
nem aguardam mais os mortos
ter amor

Sobre a mesa põe as mãos
pôs o pão
Fora de casa o rumor
sem repouso

Ela agora abre o fogo
pão
sem repouso ouve os mortos
lá de fora

Lá de fora entram armas
os homens
As mãos dela não repousam
acolhem

Sobre a mesa pôs o pão
arma de paz
Contra as armas da batalha
arma de mão

Contra a batalha das armas
não repousa
Caem contra a mesa os mortos
contra o forno

Outra paz não defende ela
que a do pão
Defende a paz que é da casa
e das mãos.




Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.26/7

Onda

Pois as coisas cedem e eu me peço
ao tamanho da onda por medida

Pois a causa do amor é a maior
figura que se aumenta por palavras

Também assim a ordem e o sentimento
designem a figura de uma onda

E pois a onda encurva enche solta
no exercício em si fechando a orla

Liberta se exorbita construída
no vidro cai a sua queda

Pois a vejo a ela e ela cedo
no movimento peço tamanho



Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.22
«Aprendo o sangue e seu calor o fundo
a linha necessária e o sigilo»


Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.21
Verosímel
um rio se inclina


Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.13
«Aproximastes-vos, então e paraste junto ao monte; e o monte estava abrasado em fogo, que se erguia até ao céu, coberto de nuvens e de nevoeiro. O senhor falou-vos, do meio do fogo; ouvistes o som das palavras, mas não vistes figura alguma. Era uma voz apenas. O Senhor deu-vos a conhecer a Sua aliança, ordenando-vos que cumprísseis os dez mandamentos que Ele escreveu em duas tábuas de pedra.»



(Deuteronómio, pg. 230)

segunda-feira, 28 de março de 2011

«Como poderia, eu só, encarregar-me, de vós
e suportar o peso e as vossas questões?»

(Deuteronómio, pg. 225)
«Porque o sangue mancha a terra; e a terra só pode ser lavada dessa mancha
com o sangue daquele que o tiver derramado.»

(p: 222)
« - Esta aldeia está cheia de ecos. Parece que estão fechados no interior das paredes ou por baixo das pedras. Quando andas, sentes que vão pisando os teus passos. Ouves estalidos. Gargalhadas. Umas gargalhadas já muito velhas, como se estivessem cansadas de rir. E vozes já gastas pelo uso. Ouves tudo isso. Penso que chegará o dia em que estes sons se apagarão.»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 57

domingo, 27 de março de 2011

68.

Como o coral alastra a sua morte
a arder em árvore púrpura no seio
do mar com a temente alma no meio
dos braços rubros presa do mais forte

Com beijo amargo de ruína veio
a ameaça Ela faz voto de sorte
que acre tormento a tal mando suporte
e é-lhe paga final final receio

Medida no festim desesperado
na turvação lembra a doçura amena
bebe o Lethes do tempo perturbado

qual dando eternidade em mão serena
dota a alma e a herança distribui
O ser simples de quem recusa flui.



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.153
(...)

«protege com seus lírios a grinalda
Só almas na memória que persistem
altas e leves té ao fim subsistem.»



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.151
reflexos do passado vão e vêm



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.139

Inde, 1964

57.

Se as ébrias singraduras não toleras
- quem cantará teus anos de odisseia
teu vento é dor teu mar te desnorteia -
e em entrar nesta casa perseveras

que tu ó dor antes que as mais veneras
bem que hoje ou nunca lá não estanceia
a aguardar-te Penélope ou Erikleia
mas se algum dia a mim voltar quiseras

penso quão fortes troarão teus passos
se subires os belos degraus lassos
de que é meu velho corpo atravessado

e de novo: inaudível e calado
tacteias planos deste íntimo foro
para aceder-me à câmara do choro.




Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.129

50.

Era a memória ardente a inclinar-se
à giesta do tempo por frescura
mas o que em seu espelho se figura
vê que está só e a mesma dor foi dar-se

noite e dia e silente de amargura
uma saudade em febre o viu queimar-se
até vir por um ''sim'' a consolar-se
e do perdão mudo hino lhe assegura

levando imagens e sinais de vez
O olhar liberto penetrou no assento
do alto luto onde da palidez

dos invernos se erguia outro rebento
de cálices que embalam as sementes
dando ao nome louvando descendentes.



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.113

58.

Proíbe o deus que a ti me escravizou
que controle os teus tempos de prazer
e das horas te peça contas. Sou
teu vassalo sujeito ao teu querer.
Oh, deixa-me sofrer, sendo a teu mando,
cativa ausência em tua liberdade,
cada revés paciente aguentando,
sem acusar maus tratos ou maldade.
Como te apetecer. Teu foro vence.
Tens sobre o tempo tal prerrogativa
que faças o que queres, pois te pertence,
a perdoar-te acção a ti lesiva.
    E eu que espere, embora inferno doa;
    nem te censuro acção, ou má, ou boa.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.127
«E até que em julgamento ressuscites,
vivas aqui e olhos de amante habites.»



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.121
«Adónis se descreva, a imitação,
imitada de ti, como sê-lo é pobre;
Dê-se às faces de Helena a cor e então
eis-te em grego atavio novo e nobre.»


Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.117

35.

Do que fizeste a dor não te possua:
rosas têm picos, fontes de prata lama,
nuvens e eclipses turvam sol e lua,
no mais doce botão vil verme acama.
Os homens todos erram e eu segui-os
abandonando-te a falta com perdão;
corrompo-me remindo os teus desvios,
mais erro é desculpá-los do que o são.
Se à falta dos sentidos dou sentido,
a parte a ti adversa é o defensor
e contra mim o pleito é dirigido,
eis em guerra civil meu ódio e amor
e tal que a ser um cúmplice me impele
de quem me é ladrão doce e cruel.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.81

sábado, 26 de março de 2011

'Elizabeth Taylor A Life in Pictures' by Yann-Brice Dherbia

«Não diga o meu espelho que envelheço,»



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.55
«-Mataram o teu pai.
  -E a ti, mãe, quem te matou?»
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 40

No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te.

«No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te. Ias tingida de vermelho pelo sol da tarde, pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Sorrias. Deixavas para trás uma aldeia da qual muitas vezes me disseste: ''Amo-a por tua causa; mas odeio-a por todas as outras coisas, até por ter cá nascido.'' Pensei: ''Jamais regressará; nunca voltará.''
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36
«..Não sentir outro sabor para além da flor das laranjeiras na calidez do tempo.»
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 35
«...Planícies verdes. Ver subir e descer o horizonte com o vento que agita as espigas, o eriçar da tarde com uma chuva de triplas ondulações. A cor da terra, o cheiro da alfafa e do pão. Uma aldeia que cheira a mel derramado...»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 34

Drinking Water from a Spigot, Italy, 1961

«-...O sujeito de que estou a falar trabalhava como «amansador» na Meia-Lua; dizia chamar-se Inocencio Osorio. Embora todos o conhecêssemos pela alcunha de Saltarico por ser muito leve e ágil a saltar. O meu compadre Pedro dizia que estava talhado para amansar potros; mas a verdade é que ele tinha outro ofício: o de «provocador». Era provocador de sonhos. Era isso que ele era verdadeiramente. E enredou a tua mãe tal como fazia com muitas. Entre outras, eu. Uma vez, senti-me doente e ele apresentou-se e disse-me: «Venho tomar-te o pulso para que te sintas melhor.» E tudo consistia nisto: começava a massajar-te, primeiro nas pontas dos dedos, depois esfregando as mãos; a seguir os braços, e acabava por meter-se entre as nossas pernas, a frio, pelo que aquilo, ao fim de algum tempo, começava a produzir calor. E, enquanto manobrava, falava-te do teu futuro. Entrava em transe, revirava os olhos fazendo invocações e amaldiçoando; enchendo-te de gafanhotos tal como os ciganos. Por vezes, ficava em pelota porque dizia ser esse o nosso desejo. E às vezes acertava; picava em tantos sítios que a algum tinha de ir dar.
    «A verdade é que o tal Osorio prognosticou à tua mãe, quando ela o foi ver, que ''nessa noite não devia deitar-se com nenhum homem porque a Lua estava bravia.''»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 33

13.

Oh, se fosses tu mesmo! Mas assim
só te pertences quanto a vida avança.
Devias preparar-te para o fim
e dar a alguém tão doce semelhança.
E da beleza que deténs a prazo
no vencimento, então também serias
outra vez tu depois do próprio ocaso
e a branda forma em brando alguém verias.
Quem deixa arruinar tão bela casa
se tem honra viril com que a mantenha,
na borrasca invernal que tudo arrasa,
contra o gelo da morte, a estéril sanha?
Bem sabes, caro amor, gastar a esmo...
Tiveste um pai, teu filho diga o mesmo.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.37

8.

 És música e a música ouves triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
Se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
É canção sem palavras, vária e em
uníssono: ''só não serás ninguém''.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.27
«Se sais de ti do zénite no brilho,
morrerás ignorado sem um filho.»


 Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.25

'The Parting of Lancelot and Guinevere'

*

O método estrito é apenas estudo,
não devia ser impresso.
Devia escrever-se para o público
num estilo livre, sem peias,
juntando-lhe apenas a demonstração rigorosa,
o desenvolvimento sistemático.
A escrita não devia ser insegura,
feita a medo, confusa, sem fim,
mas determinada, clara, sólida,
com pressupostos apodícticos, tácitos.
Uma pessoa de carácter bem definido
causa também uma impressão
benéfica e decidida e estável.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 77
Powered By Blogger