«Para melhor compreender Bertha torna-se necessário recorrer ao mito. Também os nossos psicólogos e caracterologistas encontram aqui, frequentemente, sem disso se aperceberem, as suas bases. Um capítulo de Plutarco ou de Vico diz-me mais do que as suas tabelas de avaliação.
O que nos ligava a Bertha e a mim, não era apenas o gosto mas também a paixão. Devemos a Stendhal a diferença, foi ele quem a determinou. À medida que a paixão diminuía, o bom gosto impedia que entre nós se gerasse uma desarmonia ao estilo de Strindberg. Não havia nem um outro homem, nem uma outra mulher. Afastávamo-nos um do outro, o que a ambos causava sofrimento - certamente que Bertha se perguntava, tal como eu, em que medida a culpa seria sua.
Não deixou de fazer pequenas tentativas que as mulheres entendem melhor do que nós. A propósito de aniversários, por exemplo, que nós esquecemos mais facilmente que elas - porquê hoje as flores em cima da mesa? É verdade, era o aniversário da nossa primeira noite juntos. Outro dia era o meu prato favorito que era servido à refeição, ou então punha uma jóia barata oferecida por mim enquanto estudante. Eram recordações dos velhos tempos, nada mais nada do que recordações.
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Mas o afastamento teria acontecido de qualquer forma, mesmo sem a profissão que me absorvia cada vez mais, e começava até a prejudicar a minha saúde, sobretudo quando a agência se revestiu de uma importância inesperada. Se se pudesse falar em culpa seria toda minha - do meu carácter que se revelara com a profissão; todavia, noutras circunstâncias, o tempo certamente teria actuado, obtendo o mesmo resultado. Como dizia um moralista, com a idade, não só se manifestam os perfis como também os caracteres, cujos contornos se desenham mais claramente.»
Ernst Jünger. O Problema de Aladino. Tradução de Ana Cristina Pontes. Edições Cotovia, Lisboa, 1989., p. 66/67