segunda-feira, 7 de junho de 2010

Debaixo dos meus pés, os mortos confundem-se
com a terra. As pedras metem-se por entre os ossos,
a humidade corrompe os tecidos que os envolvem,
apressa a decomposição dos metais. Esses mortos
ainda falam. No entanto, não os ouço, quando
passo por cima deles, e prefiro distrair-me com as aves
que cantam, com o vento que faz saltar as folhas
do outono. Os meus pés podem, então,
pisá-los; e os meus passos abafam o seu choro, que
também se fonfunde com o murmúrio do vento. Mas
o que ouço, sempre, é esta voz que sai do silêncio
dos mortos. Tenho-a dentro de mim; tento agarrá-la
com os dedos do poema, fixá-la no verso para que
não volte a incomodar-me; e ela foge, mete-se
pelos buracos da terra, esconde-se com as raízes
mais fundas. No entanto, não sei
quem são estes mortos. Limito-me a pisá-los, quando
atravesso os adros, os terreiros, os baldios
de onde fugiram os rebanhos. Como
um pastor de sombras, levo atrás de mim todas
as suas vozes - ou, apenas, a voz única que as minhas
mãos moldam numa paciência de artesão. Já não sei quem
me encomendou este trabalho. Um dia, a mulher
de olhos roxos pediu-me que não a esquecesse; e
desde então colecciono vozes, procuro a memória
do seu seio no barro do inverno, evito pisar
a terra, à noite, quando a sua imagem me aparece
por entre o halo da névoa.

José Tolentino Mendonça .Teoria Geral do Conhecimento, Quetzal. In "Jornal de Letras Artes e Ideias" nº 744 de 7 a 20 de Abril de 1999

CAFÉ/XXII

Bati com o pé no deserto
e não nasceu uma fonte...

Toquei numa rocha
e não se cobriu de açucenas...

Beijei uma árvore
e o enforcado não ressuscitou...

Amaldiçoei a paisagem
e não secaram as raízes...

Digam-me lá: para que diabo serve ser poeta?
(Os santos são mais felizes.)

José Gomes Ferreira

Myrtho

Je pense à toi, Myrtho, divine enchanteresse,
Au Pausilippe altier, de mille feux brillant,
A ton front inondé des clartés d'Orient,
Aux raisins noirs mêlés avec l'or de ta tresse.

C'est dans ta coupe aussi que j'avais bu l'ivresse,
Et dans l'éclair furtif de ton oeil souriant,
Quand aux pieds d'Iacchus on me voyait priant,
Car la Muse m'a fait l'un des fils de la Grèce.

Je sais pourquoi là-bas le volcan s'est rouvert...
C'est qu'hier tu l'avais touché d'un pied agile,
Et de cendres soudain l'horizon s'est couvert.

Depuis qu'un duc normand brisa tes dieux d'argile,
Toujours, sous les rameaux du laurier de Virgile,
Le pâle hortensia s'unit au myrte vert !


Gérard de Nerval
Les Chimères
La Bohême galante
Petits châteaux de Bohême
(1854)

O espelho

O senhor Valéry não era bonito. Mas também não era feio.
Há muito tempo atrás havia decidido trocar os espelhos por quadros de paisagens. Desconhecia, pois, o seu aspecto exterior actual.
O senhor Valéry dizia:

- É preferível assim.

E explicava:

- Se me visse bonito ficaria com medo de perder a beleza; e se me visse feio ficaria com ódio às coisas belas. Assim, não tenho medo nem ódio.

E sem ser bonito nem feio, o senhor Valéry passeava pelas ruas da cidade, olhando, com atenção, para as pessoas com quem se cruzava.
Ele explicava:

- Se me sorrirem percebo que estou bonito, se desviam os olhos percebo que estou feio.
Teorizando dizia ainda:

-A minha beleza é actualizada a cada instante pela cara dos outros.


Por vezes, depois de se cruzar com alguém que desviava os olhos, o senhor Valéry, percebendo, passava a mão pelo seu cabelo, penteando-se ao mesmo tempo que procurava um outro rosto dentro de si próprio, agora mais agradável.
O senhor Valéry comentava, em jeito de conclusão:

- O espelho é para os egoístas.

- E o desenho? - perguntaram-lhe.

- Hoje não há desenho - respondeu o senhor Valéry, e despediu-se logo de todos com um movimento brusco, mas gentil.

As pessoas gostavam do senhor Valéry.



Gonçalo M. Tavares. O Senhor Valéry. Editorial Caminho, Lisboa, 2002., p. 49/50
« - Há dias em que não percebo nada de mim.»


Gonçalo M. Tavares. O Senhor Valéry. Editorial Caminho, Lisboa, 2002., p. 48.

domingo, 6 de junho de 2010

Louis-Ferdinand Céline

“Eu dizia-lhe que queria ser escritor, que tinha 15 anos e ele respondeu-me com uma carta de uma imensa ternura: 'Não tenho fotografia porque não sou actor de cinema. Mas se queres ser escritor vê lá porque depois não podes ir ao cinema, não podes ter namoradas, não podes não sei lá o quê... Porque escrever é uma coisa muito difícil e exige muito tempo, tens de passar a vida agarrado ao livro...'”


António Lobo Antunes, lembrança de uma carta que escreveu a Céline onde lhe pedia uma fotografia, in Ípsilon, Público

Etiquetas e Preferências

Sempre se me afigurou que o traço distintivo da nossa família é o recato. Levamos o pudor a extremos inacreditáveis, tanto na maneira de vestir e comer, como nas palavras, como a subir para o eléctrico. As alcunhas, por exemplo, que no bairro do Pacífico se adjudicam tão afoitamente, são para nós motivo de cuidado, reflexão e até de inquietude. Parece-nos que se não pode atribuir um apodo qualquer a alguém que durante toda a sua vida o deverá absorver e sofrer como um atributo. As senhoras da rua de Humboldt chamam Toto, Coco ou Cacho aos filhos e Nega ou Beba às raparigas, mas na nossa família tal tipo de alcunha não existe, e muito menos outras rebuscadas e espaventosas como Chirola, Cachuzo ou Matagatos, que abundam para os lados de Paraguay e Dodoy Cruz. Como por exemplo do cuidado que temos com estas coisas bastará citar o caso de uma minha tia. Visivelmente dotada de um traseiro de imponentes dimensões, nunca nos permitimos ceder à fácil tentação das alcunhas habituais; assim, em vez de dar-lhe o cognome brutal de Ânfora Etrusca, assentámos no de Cuzuda. Procedemos sempre com igual tacto, embora tenhamos as nossas brigas com vizinhos e amigos que insistem em motes tradicionais. Ao meu primo em segundo grau, o mais novo, notoriamente cabeçudo, sempre recusámos a alcunha de Atlas que lhe tinha sido dada na tasca da esquina e preferimos a infinitamente mais delicada de Mona. E assim por diante.
Quero esclarecer que não fazemos estas coisas para nos diferenciarmos do resto do bairro. Só desejaríamos modificar, gradualmente e sem pretender vexar os sentimentos de ninguém, as rotinas e tradições. Desgosta-nos a vulgaridade em qualquer das suas formas, e basta que algum de nós oiça no café frases como: «Foi uma partida de cariz violento», ou: «As finalizações de Faggioli foram caracterizadas por um notável trabalho de infiltração prévia da linha média», para que imediatamente nos socorramos de expressões mais castiças e aconselháveis ao caso como: «Foi cá um arraial de porrada», ou «Primeiro baratinámo-los e depois foi cá uma goleada». As pessoas olham-nos, surpresas, mas há sempre alguém que aproveita a lição existente nestas frases delicadas. O meu tio mais velho, que lê os escritores argentinos, afirma que com muitos deles se poderia fazer algo parecido, mas nunca nos explicou lá muito bem como. E é pena.


Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p. 33/4

quinta-feira, 3 de junho de 2010

144

Ao lado do meu corpo morto,
minha obra viva.
O dia
de minha vida completa
no nada e no todo
(a flor fechada com a flor aberta);
o dia da alegria de partir,
pela alegria de ficar
(de ficar para partir); o dia
do dormir saboroso, sabendo-o, para sempre,
inefável sono maternal
da casca inútil e do botão seco,
junto ao eterno fruto
e à mariposa infinda!



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 127

quarta-feira, 2 de junho de 2010

C'est certes la même campagne...

C'est certes la même campagne. La même maison rustique de mes parents: la salle même où les dessus de porte sont des bergeries roussies, avec des armes et des lions. Au dîner, il y a un salon, avec des bougies et des vins et des boiseries rustiques. La table à manger est très-grande. Les servantes ! Elles étaient plusieurs, autant que je m'en suis souvenu. - Il y avait là un de mes jeunes amis anciens, prêtre et vêtu en prêtre, maintenant: c'était pour être plus libre. Je me souviens de sa chambre de pourpre, à vitres de papier jaune: et ses livres, cachés, qui avaient trempé dans l'océan !

Moi j'étais abandonné, dans cette maison de campagne sans fin: lisant dans la cuisine, séchant la boue de mes habits devant les hôtes, aux conversations du salon: ému jusqu'à la mort par le murmure du lait du matin et de la nuit du siècle dernier.

J'étais dans une chambre très sombre: que faisais-je ? Une servante vint près de moi: je puis dire que c'était un petit chien: quoiqu'elle fût belle, et d'une noblesse maternelle inexprimable pour moi: pure, connue, toute charmante ! Elle me pinça le bras.
Je ne me rappelle même plus bien sa figure: ce n'est pas pour me rappeler son bras, dont je roulai la peau dans mes deux doigts: ni sa bouche, que la mienne saisit comme une petite vague désespérée, minant sans fin quelque chose. Je la renversai dans une corbeille de coussins et de toiles de navire, en un coin noir. Je ne me rappelle plus que son pantalon à dentelles blanches.
Puis, ô désespoir, la cloison devint vaguement l'ombre des arbres, et je me suis abîmé sous la tristesse amoureuse de la nuit.



1871


Rimbaud. Les déserts de l'amour (fragments)

Cette fois, c'est la Femme

Cette fois, c'est la Femme que j'ai vue dans la ville, et à qui j'ai parlé et qui me parle.


J'étais dans une chambre sans lumière. On vint me dire qu'elle était chez moi: et je la vis dans mon lit, toute à moi, sans lumière ! Je fus très ému, et beaucoup parce que c'était la maison de famille: aussi une détresse me prit ! j'étais en haillons, moi, et elle, mondaine, qui se donnait; il lui fallait s'en aller ! Une détresse sans nom, je la pris, et la laissai tomber hors du lit, presque nue; et dans ma faiblesse indicible, je tombai sur elle et me traînai avec elle parmi les tapis sans lumière. La lampe de la famille rougissait l'une après l'autre les chambres voisines. Alors la femme disparut. Je versai plus de larmes que Dieu n'en a pu jamais demander.

Je sortis dans la ville sans fin. O Fatigue ! Noyé dans la nuit sourde et dans la fuite du bonheur. C'était comme une nuit d'hiver, avec une neige pour étouffer le monde décidément. Les amis auxquels je criais: où reste-t-elle, répondaient faussement. Je fus devant les vitrages de là où elle va tous les soirs: je courais dans un jardin enseveli. On m'a repoussé. Je pleurais énormément, à tout cela. Enfin je suis descendu dans un lieu plein de poussière, et assis sur des charpentes, j'ai laissé finir toutes les larmes de mon corps avec cette nuit. - Et mon épuisement me revenait pourtant toujours

J'ai compris qu'elle était à sa vie de tous les jours; et que le tour de bonté serait plus long à se reproduire qu'une étoile. Elle n'est pas revenue, et ne reviendra jamais, l'Adorable qui s'était rendue chez moi, - ce que je n'aurais jamais présumé. - Vrai, cette fois, j'ai pleuré plus que tous les enfants du monde.

Rimbaud. Les Déserts de l'amour (fragments).

«Et que sont-ils (les poèmes) comparés à la poésie sans forme ni conscience que palpite dans les plantes, rayonne dans la lumière, sourit dans l'enfant, étincelle dans la fleur de la jeunesse, s'embrase dans le coeur aimant des femmes? - C'est pourtant cette poésie qui est la première, l'originaire, et sans laquelle assurément il n'éxisterai pas de poésie du verbe. »



Friedrich Schlegel, ''Entretien sur la poésie'' (1800), in Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, org. (1978), L'absolu Littéraire, Théorie de la Littérature du Romantisme Allemand, Paris, Editions du Seuil.,p. 290.
«(...) todo o autor, na proporção em que é grande e ao mesmo tempo original, tem tido sempre que criar o sentimento estético pelo qual há-de ser sempre apreciado; assim foi sempre e assim continuará a ser... »


Fernando Pessoa, ''Orpheu - Revista Trimestral de Literatura - nº1 '', Fernando Cabral Martins (ed.), Crítica - Ensaios, Artigos e Entrevistas, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 108

POST-SCRIPTUM

I
Mais pourquoi de leur cendre évoquer ces journées
Que les dédains publics effacent en passant?
Entre elles et ce jour ont marché douze années :
Oublions et la faute et la fuite et le sang,
Et les corruptions des pâles adversaires
-Non. Dans l'histoire il est de noirs anniversaires
Dont le spectre revient pour troubler le présent.

II
Il revient quand l'orgueil des obstinés coupables
Sort du limon confus des Révolutions
Où pêle-mêle on voit tomber les incapables,
Pour nous montrer encor ses vieilles passions
Et hurler à grands cris quelque sombre horoscope
. -En observant la vase aux feux d'un microscope,
On voit dans les serpents ces agitations.

III
S'agiter et blesser est l'instinct des vipères;
L'homme ainsi contre l'homme a son instinct fatal :
Il retourne ses dards et nourrit ses colères
Au réservoir caché de son poison natal.
Dans quelque cercle obscur qu'on les ait vus descendre,
Homme ou serpent, blottis sous le verre ou la cendre,
Mordront le diamant ou mordront le cristal
.
IV
Le Cristal, c'est la vue et la clarté du JUSTE,
Du principe éternel de toute vérité,
L'examen de soi-même au tribunal auguste
Où la Raison, l'Honneur, la Bonté, l'Equité,
La Prévoyance à l'oeil rapide et la Science
Délibèrent en paix devant la Conscience
Qui, jugeant l'action, régit la Liberté.

V
Toujours sur ce Cristal, rempart des grandes âmes,
La langue du sophiste ira heurter son dard.
Qu'il se morde lui-même en ses détours infâmes,
Qu'il rampe aveugle et sourd dans l'éternel brouillard.
Oublié, méprisé, qu'il conspire et se torde,
Ignorant le vrai Beau, qu'il le souille et qu'il morde
Ce Diamant que cherche en vain son faux regard.

VI
Le Diamant? c'est l'art des choses idéales,
Et ses rayons d'argent, d'or, de pourpre et d'azur
Ne cessent de lancer les deux lueurs égales
Des pensers les plus beaux, de l'amour le plus pur.
Il porte du Génie et transmet les empreintes.
Oui, de ce qui survit aux Nations éteintes
C'est lui le plus brillant trésor et le plus dur.


28 mars 1862.


Alfred de Vigny (1797-1863)

terça-feira, 1 de junho de 2010

La Maison du Berger

I

Si ton coeur, gémissant du poids de notre vie,
Se traîne et se débat comme un aigle blessé,
Portant comme le mien, sur son aile asservie,
Tout un monde fatal, écrasant et glacé;
S'il ne bat qu'en saignant par sa plaie immortelle,
S'il ne voit plus l'amour, son étoile fidèle,
Éclairer pour lui seul l'horizon effacé;
Si ton âme enchaînée, ainsi que l'est mon âme,
Lasse de son boulet et de son pain amer,
Sur sa galère en deuil laisse tomber la rame,
Penche sa tête pâle et pleure sur la mer,
Et, cherchant dans les flots une route inconnue,
Y voit, en frissonnant, sur son épaule nue,
La lettre sociale écrite avec le fer;

Si ton corps, frémissant des passions secrètes,
S'indigne des regards, timide et palpitant;
S'il cherche à sa beauté de profondes retraites
Pour la mieux dérober au profane insultant;
Si ta lèvre se sèche au poison des mensonges,
Si ton beau front rougit de passer dans les songes
D'un impur inconnu qui te voit et t'entend,

Pars courageusement, laisse toutes les villes;
Ne ternis plus tes pieds aux poudres du chemin;
Du haut de nos pensers vois les cités serviles
Comme les rocs fatals de l'esclavage humain.
Les grands bois et les champs sont de vastes asiles,
Libres comme la mer autour des sombres îles.
Marche à travers les champs une fleur à la main.

La Nature t'attend dans un silence austère;
L'herbe élève à tes pieds son nuage des soirs,
Et le soupir d'adieu du soleil à la terre
Balance les beaux lis comme des encensoirs.
La forêt a voilé ses colonnes profondes,
La montagne se cache, et sur les pâles ondes
Le saule a suspendu ses chastes reposoirs.

Le crépuscule ami s'endort dans la vallée
Sur l'herbe d'émeraude et sur l'or du gazon,
Sous les timides joncs de la source isolée
Et sous le bois rêveur qui tremble à l'horizon,
Se balance en fuyant dans les grappes sauvages,
Jette son manteau gris sur le bord des rivages,
Et des fleurs de la nuit entr'ouvre la prison.

Il est sur ma montagne une épaisse bruyère
Où les pas du chasseur ont peine à se plonger,
Qui plus haut que nos fronts lève sa tête altière,
Et garde dans la nuit le pâtre et l'étranger.
Viens y cacher l'amour et ta divine faute;
Si l'herbe est agitée ou n'est pas assez haute,
J'y roulerai pour toi la Maison du Berger.

Elle va doucement avec ses quatre roues,
Son toit n'est pas plus haut que ton front et tes yeux;
La couleur du corail et celle de tes joues
Teignent le char nocturne et ses muets essieux.
Le seuil est parfumé, l'alcôve est large et sombre,
Et, là, parmi les fleurs, nous trouverons dans l'ombre,
Pour nos cheveux unis, un lit silencieux.

Je verrai, si tu veux, les pays de la neige,
Ceux où l'astre amoureux dévore et resplendit,
Ceux que heurtent les vents, ceux que la neige assiège,
Ceux où le pôle obscur sous sa glace est maudit.
Nous suivrons du hasard la course vagabonde.
Que m'importe le jour? que m'importe le monde?
Je dirai qu'ils sont beaux quand tes yeux l'auront dit.

Que Dieu guide à son but la vapeur foudroyante
Sur le fer des chemins qui traversent les monts,
Qu'un Ange soit debout sur sa forge bruyante,
Quand elle va sous terre ou fait trembler les ponts
Et, de ses dents de feu, dévorant ses chaudières,
Transperce les cités et saute les rivières,
Plus vite que le cerf dans l'ardeur de ses bonds

Oui, si l'Ange aux yeux bleus ne veille sur sa route,
Et le glaive à la main ne plane et la défend,
S'il n'a compté les coups du levier, s'il n'écoute
Chaque tour de la roue en son cours triomphant,
S'il n'a l'oeil sur les eaux et la main sur la braise
Pour jeter en éclats la magique fournaise,
Il suffira toujours du caillou d'un enfant.

Sur le taureau de fer qui fume, souffle et beugle,
L'homme a monté trop tôt. Nul ne connaît encor
Quels orages en lui porte ce rude aveugle,
Et le gai voyageur lui livre son trésor,
Son vieux père et ses fils, il les jette en otage
Dans le ventre brûlant du taureau de Carthage,
Qui les rejette en cendre aux pieds du Dieu de l'or.

Mais il faut triompher du temps et de l'espace,
Arriver ou mourir. Les marchands sont jaloux.
L'or pleut sous les chardons de la vapeur qui passe,
Le moment et le but sont l'univers pour nous.
Tous se sont dit : " Allons ! " Mais aucun n'est le maître
Du dragon mugissant qu'un savant a fait naître ;
Nous nous sommes joués à plus fort que nous tous.

Eh bien ! que tout circule et que les grandes cause
Sur des ailes de feu lancent les actions,
Pourvu qu'ouverts toujours aux généreuses choses,
Les chemins du vendeur servent les passions.
Béni soit le Commerce au hardi caducée,
Si l'Amour que tourmente une sombre pensée
Peut franchir en un jour deux grandes nations.

Mais, à moins qu'un ami menacé dans sa vie
Ne jette, en appelant, le cri du désespoir,
Ou qu'avec son clairon la France nous convie
Aux fêtes du combat, aux luttes du savoir ;
A moins qu'au lit de mort une mère éplorée
Ne veuille encor poser sur sa race adorée
Ces yeux tristes et doux qu'on ne doit plus revoir,

Evitons ces chemins. - Leur voyage est sans grâces,
Puisqu'il est aussi prompt, sur ses lignes de fer,
Que la flèche lancée à travers les espaces
Qui va de l'arc au but en faisant siffler l'air.
Ainsi jetée au loin, l'humaine créature
Ne respire et ne voit, dans toute la nature,
Qu'un brouillard étouffant que traverse un éclair.

On n'entendra jamais piaffer sur une route
Le pied vif du cheval sur les pavés en feu ;
Adieu, voyages lents, bruits lointains qu'on écoute,
Le rire du passant, les retards de l'essieu,
Les détours imprévus des pentes variées,
Un ami rencontré, les heures oubliées
L'espoir d'arriver tard dans un sauvage lieu.

La distance et le temps sont vaincus. La science
Trace autour de la terre un chemin triste et droit.
Le Monde est rétréci par notre expérience
Et l'équateur n'est plus qu'un anneau trop étroit.
Plus de hasard. Chacun glissera sur sa ligne,
Immobile au seul rang que le départ assigne,
Plongé dans un calcul silencieux et froid.

Jamais la Rêverie amoureuse et paisible
N'y verra sans horreur son pied blanc attaché ;
Car il faut que ses yeux sur chaque objet visible
Versent un long regard, comme un fleuve épanché ;
Qu'elle interroge tout avec inquiétude,
Et, des secrets divins se faisant une étude,
Marche, s'arrête et marche avec le col penché.


II
Poésie ! ô trésor ! perle de la pensée !
Les tumultes du coeur, comme ceux de la mer,
Ne sauraient empêcher ta robe nuancée
D'amasser les couleurs qui doivent te former.
Mais sitôt qu'il te voit briller sur un front mâle,
Troublé de ta lueur mystérieuse et pâle,
Le vulgaire effrayé commence à blasphémer.

Le pur enthousiasme est craint des faibles âmes
Qui ne sauraient porter son ardeur ni son poids.
Pourquoi le fuir ? - La vie est double dans les flammes.
D'autres flambeaux divins nous brûlent quelquefois :
C'est le Soleil du ciel, c'est l'amour, c'est la Vie ;
Mais qui de les éteindre a jamais eu l'envie ?
Tout en les maudissant, on les chérit tous trois.

La Muse a mérité les insolents sourires
Et les soupçons moqueurs qu'éveille son aspect.
Dès que son oeil chercha le regard des Satyres,
Sa parole trembla, son serment fut suspect,
Il lui fut interdit d'enseigner la Sagesse.
Au passant du chemin elle criait : Largesse !
Le passant lui donna sans crainte et sans respect.

Ah ! fille sans pudeur, fille du Saint Orphée,
Que n'as-tu conservé ta belle gravité !
Tu n'irais pas ainsi, d'une voix étouffée,
Chanter aux carrefours impurs de la cité,
Tu n'aurais pas collé sur le coin de ta bouche
Le coquet madrigal, piquant comme une mouche,
Et, près de ton oeil bleu, l'équivoque effronté.

Tu tombas dès l'enfance, et, dans la folle Grèce,
Un vieillard, t'enivrant de son baiser jaloux,
Releva le premier ta robe de prêtresse,
Et, parmi les garçons, t'assit sur ses genoux.
De ce baiser mordant ton front porte la trace ;
Tu chantas en buvant dans les banquets d'Horace,
Et Voltaire à la cour te traîna devant nous.

Vestale aux feux éteints ! les hommes les plus graves
Ne posent qu'à demi ta couronne à leur front ;
Ils se croient arrêtés, marchant dans tes entraves,
Et n'être que poète est pour eux un affront.
Ils jettent leurs pensers aux vents de la tribune,
Et ces vents, aveuglés comme l'est la Fortune,
Les rouleront comme elle et les emporteront.

Ils sont fiers et hautains dans leur fausse attitude,
Mais le sol tremble aux pieds de ces tribuns romains.
Leurs discours passagers flattent avec étude
La foule qui les presse et qui leur bat des mains
Toujours renouvelé sous ses étroits portiques,
Ce parterre ne jette aux acteurs politiques
Que des fleurs sans parfums, souvent sans lendemains.

Ils ont pour horizon leur salle de spectacle ;
La chambre où ces élus donnent leurs faux combats
Jette en vain, dans son temple, un incertain oracle,
Le peuple entend de loin le bruit de leurs débats
Mais il regarde encor le jeu des assemblées
De l'oeil dont ses enfants et ses femmes troublées
Voient le terrible essai des vapeurs aux cent bras.

L'ombrageux paysan gronde à voir qu'on dételle,
Et que pour le scrutin on quitte le labour.
Cependant le dédain de la chose immortelle
Tient jusqu'au fond du coeur quelque avocat d'un jour.
Lui qui doute de l'âme, il croit à ses paroles.
Poésie, il se rit de tes graves symboles.
Ô toi des vrais penseurs impérissable amour !

Comment se garderaient les profondes pensées
Sans rassembler leurs feux dans ton diamant pur
Qui conserve si bien leurs splendeurs condensées ?
Ce fin miroir solide, étincelant et dur ;
Reste des nations mortes, durable pierre ;
Qu'on trouve sous ses pieds lorsque dans la poussière
On cherche les cités sans en voir un seul mur.

Diamant sans rival, que tes feux illuminent
Les pas lents et tardifs de l'humaine raison !
Il faut, pour voir de loin les Peuples qui cheminent,
Que le Berger t'enchâsse au toit de sa Maison.
Le jour n'est pas levé. - Nous en sommes encore
Au premier rayon blanc qui précède l'aurore
Et dessine la terre aux bords de l'horizon.

Les peuples tout enfants à peine se découvrent
Par-dessus les buissons nés pendant leur sommeil,
Et leur main, à travers les ronces qu'ils entr'ouvrent,
Met aux coups mutuels le premier appareil.
La barbarie encor tient nos pieds dans sa gaîne.
Le marbre des vieux temps jusqu'aux reins nous enchaîne,
Et tout homme énergique au dieu Terme est pareil.

Mais notre esprit rapide en mouvements abonde,
Ouvrons tout l'arsenal de ses puissants ressorts.
L'invisible est réel. Les âmes ont leur monde
Où sont accumulés d'impalpables trésors.
Le Seigneur contient tout dans m deux bras immenses,
Son Verbe est le séjour de nos intelligences,
Comme ici-bas l'espace est celui de nos corps.

III
Eva, qui donc es-tu? Sais-tu bien ta nature?
Sais-tu quel est ici ton but et ton devoir?
Sais-tu que, pour punir l'homme, sa créature,
D'avoir porté la main sur l'arbre du savoir,
Dieu permit qu'avant tout, de l'amour de soi-même,
En tout temps, à tout âge, il fît son bien suprême,
Tourmenté de s'aimer, tourmenté de se voir?
Mais si Dieu près de lui t'a voulu mettre, ô femme!
Compagne délicate! Éva! sais-tu pourquoi?
C'est pour qu'il se regarde au miroir d'une autre âme,
Qu'il entende ce chant qui ne vient que de toi:
-- L'enthousiasme pur dans une voix suave.
C'est afin que tu sois son juge et son esclave
Et règnes sur sa vie en vivant sous sa loi.

Ta parole joyeuse a des mots despotiques;
Tes yeux sont si puissants, ton aspect est si fort,
Que les rois d'Orient ont dit dans leurs cantiques
Ton regard redoutable à l'égal de la mort;
Chacun cherche à fléchir tes jugements rapides ...
-- Mais ton coeur, qui dément tes formes intrépides,
Cède sans coup férir aux rudesses du sort.

Ta pensée a des bonds comme ceux des gazelles,
Mais ne saurait marcher sans guide et sans appui.
Le sol meurtrit ses pieds, l'air fatigue ses ailes,
Son oeil se ferme au jour dès que le jour a lui;
Parfois, sur les hauts lieux d'un seul élan posée,
Troublée au bruit des vents, ta mobile pensée
Ne peut seule y veiller sans crainte et sans ennui.

Mais aussi tu n'as rien de nos lâches prudences,
Ton coeur vibre et résonne au cri de l'opprimé,
Comme dans une église aux austères silences
L'orgue entend un soupir et soupire alarmé.
Tes paroles de feu meuvent les multitudes,
Tes pleurs lavent l'injure et les ingratitudes,
Tu pousses par le bras l'homme ... Il se lève armé.

C'est à toi qu'il convient d'ouïr les grandes plaintes
Que l'humanité triste exhale sourdement.
Quand le coeur est gonflé d'indignations saintes,
L'air des cités l'étouffe à chaque battement.
Mais de loin les soupirs de tourmentes civiles,
S'unissant au-dessus du charbon noir des villes,
Ne forment qu'un grand mot qu'on entend clairement.

Viens donc! le ciel pour moi n'est plus qu'une auréole
Qui t'entoure d'azur, t'éclaire et te défend;
La montagne est ton temple et le bois sa coupole;
L'oiseau n'est sur la fleur balancé par le vent,
Et la fleur ne parfume et l'oiseau ne soupire,
Que pour mieux enchanter l'air que ton sein respire;
La terre est le tapis de tes beaux pieds d'enfant.

Éva, j'aimerai tout dans les choses créées,
Je les contemplerai dans ton regard rêveur
Qui partout répandra ses flammes colorées,
Son repos gracieux, sa magique saveur:
Sur mon coeur déchiré viens poser ta main pure,
Ne me laisse jamais seul avec la Nature;
Car je la connais trop pour n'en pas avoir peur.

Elle me dit: «Je suis l'impassible théâtre
Que ne peut remuer le pied de ses acteurs;
Mes marches d'émeraude et mes parvis d'albâtre,
Mes colonnes de marbre ont les dieux pour sculpteurs.
Je n'entends ni vos cris ni vos soupirs; à peine
Je sens passer sur moi la comédie humaine
Qui cherche en vain au ciel ses muets spectateurs.

«Je roule avec dédain, sans voir et sans entendre,
A côté des fourmis les populations;
Je ne distingue pas leur terrier de leur cendre,
J'ignore en les portant les noms des nations.
On me dit une mère et je suis une tombe.
Mon hiver prend vos morts comme son hécatombe,
Mon printemps ne sent pas vos adorations.

«Avant vous, j'étais belle et toujours parfumée,
J'abandonnais au vent mes cheveux tout entiers:
Je suivais dans les cieux ma route accoutumée,
Sur l'axe harmonieux des divins balanciers;
Après vous, traversant l'espace où tout s'élance,
J'irai seule et sereine, en un chaste silence
Je fendrai l'air du front et de mes seins altiers.»

C'est là ce que me dit sa voix triste et superbe,
Et dans mon coeur alors je la hais, et je vois
Notre sang dans son onde et nos morts sous son herbe
Nourrissant de leurs sucs la racine des bois.
Et je dis à mes yeux qui lui trouvaient des charmes:
«Ailleurs tous vos regards, ailleurs toutes vos larmes,
Aimez ce que jamais on ne verra deux fois.»

Oh! qui verra deux fois ta grâce et ta tendresse,
Ange doux et plaintif qui parle en soupirant?
Qui naîtra comme toi portant une caresse
Dans chaque éclair tombé de ton regard mourant,
Dans les balancements de ta tête penchée,
Dans ta taille dolente et mollement couchée,
Et dans ton pur sourire amoureux et souffrant?

Vivez, froide Nature, et revivez sans cesse
Sur nos pieds, sur nos fronts, puisque c'est votre loi;
Vivez, et dédaignez, si vous êtes déesse,
L'homme, humble passager, qui dut vous être un roi;
Plus que tout votre règne et que ses splendeurs vaines,
J'aime la majesté des souffrances humaines;
Vous ne recevrez pas un cri d'amour de moi.

Mais toi, ne veux-tu pas, voyageuse indolente,
Rêver sur mon épaule, en y posant ton front?
Viens du paisible seuil de la maison roulante
Voir ceux qui sont passés et ceux qui passeront.
Tous les tableaux humains qu'un Esprit pur m'apporte
S'animeront pour toi quand devant notre porte
Les grands pays muets longuement s'étendront.

Nous marcherons ainsi, ne laissant que notre ombre
Sur cette terre ingrate où les morts ont passé;
Nous nous parlerons d'eux à l'heure où tout est sombre,
Où tu te plais à suivre un chemin effacé,
A rêver, appuyée aux branches incertaines,
Pleurant, comme Diane au bord de ses fontaines,
Ton amour taciturne et toujours menacé.


Alfred de Vigny (1797-1863)

Among Those Killed in the Dawn Raid was a Man Aged a Hundred

When the morning was waking over the war
He put on his clothes and stepped out and he died,
The locks yawned loose and a blast blew them wide,
He dropped where he loved on the burst pavement stone
And the funeral grains of the slaughtered floor.
Tell his street on its back he stopped a sun
And the craters of his eyes grew springshots and fire
When all the keys shot from the locks, and rang.
Dig no more for the chains of his grey-haired heart.
The heavenly ambulance drawn by a wound
Assembling waits for the spade's ring on the cage.
O keep his bones away from the common cart,
The morning is flying on the wings of his age
And a hundred storks perch on the sun's right hand.


Dylan Thomas

Was there a time

Was there a time when dancers with their fiddles
In children's circuses coul stay their troubles?
There was a time they could cry over books,
But time has set its maggot on their track.
Under the arc of the sky they are unsafe.
What's never known is safest in this life.
Under the skysigns they who have no arms
Have cleanest hands, and, as the heartless ghost
Alone's unhurt, so the blind man sees best.


Dylan Thomas

segunda-feira, 31 de maio de 2010

141

LUA CHEIA


A porta está aberta;
o grilo, cantando.
Andas toda nua
pelo campo?

Como uma água eterna,
por tudo entra e sai.
Andas toda nua
pelo ar?

A alfavaca não dorme,
a formiga trabalha.
Andas toda nua
pela casa?



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p.25

132

A morte é uma nossa mãe antiga,
nossa primeira mãe, e que nos ama
através das outras mães, século a século,
e nunca, nunca nos esquece;
mãe que vai, imortal, entesourando
- para cada um de nós somente -
o coração de cada mãe já morta;
que está mais perto de nós,
quantas mais mães nossas morrerem;
para quem cada mãe apenas é
uma arca de carinho a ser roubada
- para cada um de nós somente -;
mãe que nos espera,
qual mãe final, com um abraço imensamente aberto,
que há-de cerrar-se um dia, breve e duro,
sobre as nossas costas, para sempre.


Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 119/20

126

Como aprendemos a morrer
em ti, sono!
Com que beleza magistral
nos vais levando - por jardins
que nos parecem cada vez mais nossos -
ao conhecimento profundíssimo da sombra!


Juan Ramón Jimenez.Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 115

domingo, 30 de maio de 2010

Instruções para matar formigas em Roma

As formigas estão a comer Roma, está visto. Andam entre as pedras; que caminho de pedras preciosas, ó loba, te corta a garganta? De algum lado saem as águas das fontes, pedras vivas, os trémulos camafeus que em plena noite negam a história, as dinastias e comemorações. Encontrar o coração que faz pulsar as fontes e precavê-lo das formigas, organizar nesta cidade cheia de sangue, cheia de cornucópias tensas como mãos de cego, um rito de salvação para que o futuro parta nos montes os dentes, se arraste sem forças e lento, sem formigas nenhumas.
Localizar primeiro as fontes, o que se torna fácil estando nos mapas coloridos, nas monumentais plantas,as flores como repuxos e cascatas azul-celestes, só que é procurá-las bem, enfiadas num círculo a lápis azul e não vermelho, porque um bom mapa de Roma é como Roma, vermelho. Sobre o vermelho de Roma, o lápis traçará um risco violeta à volta de cada fonte, e podemos agora ficar mais descansados pois já conhecemos a língua das águas.
Mais difícil, ínfimo e secreto é furar a pedra opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, descobrir à força da paciência a chave de cada fonte, velar amorosamente em noites de lua penetrante junto aos vasos imperiais, até que de tanto sussurro verde, de tanto gotejar como flores, vão nascendo as direcções, as confluências, as outras vias, as vivas. E, despertos, segui-las com varas de aveleira em forma de forquilha, triangulares, duas varinhas em cada mão, segurar um só nos dedos soltos, mas tudo isto invisível aos carabineiros e à amavelmente receosa população, andar pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, aos gritos correr pelo Pincio, imóvel como um globo de fogo perturbar a ordem da Piazza della Essedra, extrair dos surdos metais do solo a nomenclatura dos rios subterrâneos.E não pedir ajuda a ninguém, nunca.
E ver como nesta mão de mármore desolado as veias vogam harmoniosas, no prazer da água, artifício do jogo, até aos poucos se irem chegando, a confluir, enlaçar-se a crescer em artérias, desaguar duras na praça central onde palpita o tambor de vidro líquido, a raiz de copas pálidas, o cavalo profundo. Então saberemos onde, em que abóbodas calcárias, entre pequenos esqueletos de lémures, o coração da água tem o seu tempo.
É difícil sabê-lo, mas saber-se-á. Então mataremos as formigas que cobiçam as fontes, fogo pregaremos às galerias que esses horríveis mineiros tramam para possuir a vida secreta de Roma. Basta chegar primeiro à fonte central e mataremos as formigas. E num comboio nocturno, obscuramente felizes, fugiremos das lâminas vingadoras, misturados com soldados e freiras.


Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.20/1

Instruções para perceber três pinturas célebres




O Amor Sagrado e o Amor Profundo, por Ticiano



Esta detestável pintura representa um velório nas margens do
Jordão. Raras vezes pôde a estupidez de um pintor aludir com
maior baixeza à esperança do Mundo num Messias que brilha
pela ausência; ausente do quadro que o mundo é, brilha horri-
velmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto
o anjo encarregado de proclamar a ressurreição da sua carne
patibular espera impávido que os desígnios se cumpram. Não
preciso explicar que o anjo é essa figura nua, prostituída na sua
gordurosa maravilhosa, que se disfarçou de Madalena, ironia das
ironias, no momento em que a verdadeira Madalena avança pela
estrada (onde cresce a venenosa blasfémia de dois coelhos).
A criança que enfia a mão no sepulcro é Lutero, isto é, o
Diabo. Diz-se que a figura vestida representa a Glória no mo-
mento de anunciar que todas as ambições inumanas cabem numa
bacia; mas está mal pintadas e faz pensar num artifício de jasmins
ou num relâmpago de trigo.




Julio Cortázar.Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.17

quinta-feira, 27 de maio de 2010

«Como pode nascer um homem sendo velho?
Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer?»


(Nicodemos. Evangelho Segundo S. João., p. 1405)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Livro: (luz) e (sombra)

As grandes florestas do mundo são virgens

Os grandes silêncios são bárbaros.

Como eu não possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d’alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
– Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?


*
* *

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d’êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.


Paris 1913 – Maio


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão. Lisboa, 1914 p. 15/7
«Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século – LIBERDADE – deixa de ser mito para se tornar realidade visível que se procura com ânsia e desejo. Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade.»

Adelaide Ginga Tchen. A aventura surrealista. Lisboa: Colibri, 2001

Israfel

Israfel (Edgar Poe)

In Heaven a spirit doth dwell
"Whose heart-strings are a lute;"
None sing so wildly well
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tell)
Ceasing their hymns, attend the spell
Of his voice, all mute. [...]




Israfel (Mallarmé)

Dans le ciel habite un esprit "dont les
fibres du coeur font un luth". Nul ne chante
si étrangement bien – que l'ange Israfel, et
les étoiles irrésolues (au dire des légendes)
cessant leurs hymnes, se prennent au
charme de sa voix, muettes toutes.
[...]




Israfel (Artaud)

Au ciel il est un coeur dont les cordes son l'âme d'un luth
comme un esprit de flamme, lá où l'âme ne monte plus.
Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu
que celui de ce luth en rafale d'élus
qui est la corde émue du coeur d'Israfel Ange
et chaque pulsation de cet oracle étrange
est comme un Sinaï où l'Amour Infini
a mis sa main de flamme au bord du Paradis.
Les astres enivrés comme le veut l'adage
rendant leurs chants muets sur l'ordre du Très-Sage
assistent ébahis
aux magiques scansion du dictame inouï
que le Barde d'en Haut épèle avec Sa Vie. [...]




Israfel (Herberto Helder)

No céu vive um coração de que as fibras são as cordas
de um alaúde
como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. E cada pulsação deste
obscuro oráculo
é um Sinai, onde o infindo amor pôs a mão em chamas, na
orla do Paraíso.
E diz a lenda que os astros bêbados emudecem,
e assistem atónitos
à inaudita ascensão daquela música
inaudita,
que o mágico bardo do alto soletra enquanto soletra a
sua vida,
cantando. [...]





«Não é difícil notarmos que a versão de Mallarmé está muito próxima do original de Poe, preservando todo o encadeamento dos versos e até mesmo o pequeno "aparte" entre parênteses, com pequenas mudanças, obviamente. Entretanto, a principal delas diz respeito à forma, já que os versos não aparecem quebrados, e sim com a estrutura de frases. A versão de Artaud, por sua vez, introduzirá uma série de imagens e temas que não fazem parte do original, tais como o sexto, o sétimo e o oitavo versos, que não encontram nenhuma correspondência com o poema de Poe, assim como os três últimos. Essas imagens – "obscuro oráculo", "Sinaï", "amor infindo", "Paraíso", – comparecerão no poema de Helder, confirmando a hipótese de que a sua tradução é realizada a partir do texto de Artaud. Entretanto, talvez essas alterações não sejam as principais mudanças sofridas pelo poema, embora sejam as mais evidentes.
É no primeiro verso que constatamos uma alteração ainda mais significativa: no poema de Poe há um espírito que vive no céu e cujas fibras do coração são um alaúde. Artaud, ao fazer a sua versão, descreve um coração que vive no céu, cujas cordas são a alma de um alaúde. Note-se aqui a bissemia da palavra alma, presente tanto na língua francesa como na portuguesa, que por um lado tem o significado de espírito, presente no original de Poe, e, por outro, o de um pequeno cilindro de madeira colocado entre o tampo e o fundo dos instrumentos de corda. Nessa segunda acepção, a palavra alma estaria afastada de seu aspecto transcendente para adquirir uma tonalidade mais material. Herberto Helder, ao fazer a sua versão, recupera nitidamente a inversão de Artaud, já que continua sendo um coração que vive no céu, e não mais um espírito, como no original, inversão que nos faz pensar na importância que os dois poetas concederam ao corpo e aos processos vitais; entretanto, a palavra alma, introduzida por Artaud no primeiro verso, desaparece para ser recuperada apenas no verso seguinte, mantendo a comparação do coração que vive no céu com a "alma de uma labareda", que em Artaud é "un sprit de flamme".»




Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.117/8

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?


Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.



Paris 1913 – Maio 4


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão. Lisboa, 1914., p. 8

domingo, 23 de maio de 2010

Portrait of Robert Capa taken in Indochina, 1954


Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família)

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro-
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada ma fala, nada!
Tenho a alma amortalhada.
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte-
Minha dispers ão total-
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Alcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida.
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
... ... ... ... ... ... ... ... ...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão.Lisboa, 1914., p.10
«(...) Ricoeur (1983) denomina "metáfora morta", ou seja, uma metáfora que, pelo uso, se tornou trivial deixando de ser sentida como figura e cujo significado se encontra já dicionarizado.»



John Morris Parker & Rosa Lídia Coimbra. A metáfora e a linguística textual
Universidade de Aveiro.,p.6.

sábado, 22 de maio de 2010

O Fazedor

Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curiosos, casual, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe a linha das mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o poder estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então até à sua memória, que lhe pareceu interminável e conseguiu arrancar àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo de chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho.
A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando as feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que ele procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar.
Outra lembrança, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperara por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através de galerias que eram como redes de pedra e através dos despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra.




Jorge Luis Borges. Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp 69-73.
(...) «Fazem consistir a sua felicidade nas delícias de cada dia e são homens imundos e corrompidos que sentem prazer em enganar, enquanto se banqueteiam convosco. Os seus olhos estão cheios de adultério e são insaciáveis de pecado. Seduzem as almas inconstantes; o seu coração está acostumado à cobiça; são filhos da maldição.»



(1.ª Carta de São Pedro: 1598)
«Porque toda a carne é
como a erva e toda a sua glória como a
flor da erva. Seca-se a erva e cai a flor,
mas a palavra do Senhor permanece
eternamente. Ora esta é a palavra que
vos foi anunciada.»


(1.ª Carta de São Pedro: 1593)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

quinta-feira, 20 de maio de 2010

«Nous sommes là de retour au plus près de l’ombilic du rêve, en ce lieu où le désir de mort et le désir tout court appellent et disent l’analyse qu’ils interdisent, la disent en ne disant rien, répondent sans répondre, sans dire oui ni non, sans accepter ni s’opposer, en parlant cependant mais sans rien dire, ni le oui ni le non, comme Bartleby The Scrivener. À toute demande, question, pression, requête, ordre, il répond sans répondre, ni passif ni actif: ‘I would prefer not to’, je préférerais ne pas... Ceux qui ont lu ce petit livre immense de Melville savent que Bartleby est aussi une figure de la mort, certes, mais aussi que, sans rien dire, il fait parler, et d’abord le narrateur qui se trouve être aussi un homme de loi responsable et un analyste infatigable. En vérité incurable. Bartleby fait parler l’analyste comme narrateur et homme de loi. Bartleby, c’est aussi le secret de la littérature.»



Jacques Derrida. Résistances—de la psychanalyse. Paris: Galilée, 1996., pp. 36

sobre a poesia franco alexandrina (crítica literária)

« (...) as palavras com que nos faz partilhar o seu enfrentamento de mundo, a densidade emocional com que nos lembra a exaltante mágoa do encontro dos corpos, a encantação de que nos faz testemunhas e participantes, fazem da sua obra poética um dos exemplares trágicos do esquecimento a que a nossa recente poesia se encontra votada.»


Joaquim Manuel Magalhães. António Franco Alexandre. Os Dois Crepúsculos. Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981., p.251
«aproximo-me de falar, mas ambiciono/
guardar silêncio.»


António Franco Alexandre. Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Si je suis poète ou acteur ce n'est pas
pour écrire ou déclamer des poésies,
mais pour les vivre.


Antonin Artaud. Oeuvres complètes IX: Les Tarahumaras. Paris: Gallimard, 1979, p. 154
« (...) em 1932 Michaux escreve a seu editor dizendo que não compreendia mais francês. Quase 20 anos depois, em 1950, o poeta escreve novamente: "Le français m'est devenu à moitié étranger, culotté, outrecuidant presque. Je ne suis plus à sa hauteur." (ROGER, 1998: 76)
Como sublinha Jérôme Roger, é contra o dogma da clareza da língua francesa, de sua sintaxe incorruptível, de sua lógica perfeita que Michaux pretende fazer dela um outro uso, instaurando um novo modo de estar na língua. O autor experimenta então uma sintaxe esgarçada, dilatada, e chega a criar um léxico próprio, tornando-se uma espécie de estrangeiro em sua própria língua. Pois não é exatamente isso que propõe Gilles Deleuze e Claire Parnet numa passagem muito comentada do livro Dialogues? "Nous devons être bilingues même en une seule langue, nous devons avoir une langue mineure à l'intérieur de notre langue, nous devons faire de notre propre langue un usage mineur." (Deleuze, 1977: 11)

Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp. 100

Tradução

«O tradutor, como aponta Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao livro de Susana Lages, é justamente um mestre das passagens e dos intervalos, aquele que proporciona uma travessia entre as línguas, mas uma travessia que não exclui o carácter de impasse inerente a tal actividade. O tradutor é, então, um novo Ulisses, pois não pode entregar-se totalmente ao texto estrangeiro com o risco de tornar-se mudo, de sucumbir ao canto das sereias. Ele precisará manter-se nesse lugar tenso, em que ouve o canto, o chamado do exterior, mas continua agarrado ao mastro, à sua língua natal.
Assim, a tradução terá sempre que lidar com um carácter intervalar, representado por uma pura diferença, pressupondo, portanto, uma duplicidade e o enfrentamento de uma realidade que é absolutamente estranha, estrangeira, impossível de ser recuperada. Ao realizar a sua obra, enquanto tenta ultrapassar esse intervalo, o tradutor escava o abismo que separa, ao mesmo tempo em que aproxima, o original da tradução, e se, por um lado, algo da língua original se perde, por outro, a língua do tradutor também sofrerá modificações, como assinalamos anteriormente no caso da tradução do poema dos caxinauás. »



Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.99-100

Universal Mind





I was doing time in the universal mind,/I was feeling fine./I Was turning keys. I Was setting people free, /I Was doing all right.

Then you came along / With a suitcase and a song,/ turned my head along./Now I'm so alone / just looking for a home / in very place I see. / I'm the freedom man. I'm the freedom man./ I'm the freedom man, that's how lucky I am.



Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., p. 85

A Celebração do Lagarto

Leões na rua, vadios
Cães babando raiva e cio
Fera enjaulada dentro da cidade
O corpo da mãe
A apodrecer no asfalto do Verão.
Ele fugiu da cidade.

Desceu para Sul e passou a fronteira
Deixou o caos e a desordem
Tudo para trás das costas.

Acordou um dia numa pensão verde
Com um estranho ser rosnando ao seu lado.
O suor encharcava-lhe a pele luzidia.

Já está toda a gente?
Vamos dar início ao cerimonial.


Desperta!
Não te lembras de onde foi?
O tal sonho terminou?

A serpente era de ouro baço
Vítrea & enroscada.
Receávamos tocar-lhe.
Os lençóis eram prisões mortalmente abafadas
& ela sempre à minha beira.
Velha não era...jovem
De cabelo ruivo escuro
A pele branca e macia.
Corre prà casa de banho e vê-te
ao espelho!

Aí vem ela a entrar
Cada gesto dela é um século lento que eu não sei viver.
Deixo-me cair e encosto a cara
Ao cimento gelado.
Sinto a fria doçura do sangue a espicaçar-me,
O brando assobio das serpentes da chuva...

Brinquei em tempos a um jogo
Gostava de regressar rastejando mentalmente
Deves saber de que jogo se trata
É o jogo chamado «fazer de maluco»

Devias tentar brincar a esse jogo
Fechas os olhos esqueces o nome
Esqueces o mundo, esqueces toda a gente
E ambos erguemos uma torre diferente.

(...)


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp. 89-91

4 de Setembro de 1940

No pinheiro são abolidos s suas expansões sucessivas (no pinheiro dos bosques, especialmente) que felizmente corrige, libertando-se da maldição habitualmente sofrida pelos vegetais: ter que viver eternamente com o peso de todos os gestos desde a infância. A essa árvore mais do que a qualquer outra é permitido separar-se dos seus antigos desenvolvimentos. É-lhe permitido esquecer. É verdade que os desenvolvimentos seguintes se assemelham muito aos antigos, caducos. Mas não importa. O prazer está em abolir e recomeçar. E depois é sempre mais acima que isso se passa. Parece que se ganhou qualquer coisa.


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 49

3 de Setembro de 1940

Se os indivíduos da orla (orla ou extremidade: termos a verificar no dicionário) ocultam bastante bem o interior dos olhares do exterior, ocultam muito mal o exterior dos olhares do interior. Funcionam como vitrais, ou melhor (porque não são translúcidos) como um vitral de tecido, ou de pedra, ou de madeira esculpida. Quando o bosque é suficientemente vasto ou espesso, do seu interior não se apercebe a faixa lateral de céu, é preciso avançar em direcção à orla, até ao ponto em que a absoluta espessura do bosque se desvanece. Seria sublime consegui-lo dentro de uma catedral: uma floresta de colunas de tal maneira que se chegaria progressivamente à obscuridade total (cripta).
E no entanto é mesmo mais ou menos isso que acontece no bosque, apesar de não haver afinal nenhum muro, de tal forma que o monumento respira por todos os poros em plena natureza, melhor que um pulmão, como brônquios.
Poderia dizer-se mesmo que esse deveria ser o critério de qualquer acabamento, a condição desse tipo de arquitectura: o ponto onde a obscuridade total se realizaria, tendo em conta por exemplo que entre cada coluna deve ser deixado um espaço de tanto, que permita facilmente um passeio a , etc., etc.




Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., pp.46/7

terça-feira, 18 de maio de 2010

Tudo o que disso se recolher servirá de alimentação. Quer dizer:
podemos devorar a nossa biografia, podemos ser antropófagos,
canibais do coração pessoal. Aquilo que se escreva conservará
cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o
nosso rosto filmado no abismo do mundo.

Herberto Helder

As musas cegas

(...)

Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.


Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.76.
«É preciso criar palavras, sons, palavras / vivas, obscuras, terríveis. / É preciso criar os mortos pela força / magnética das palavras.»


Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004.
«E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles,como jactos / para fora da terra.»


Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004., p. 48

Morte no brilho


« (...)antologia de poesia portuguesa organizada por Herberto Helder, a saber: Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. A presença das "vozes comunicantes" reveladas nesse livro atesta que um poeta nunca está sozinho, por mais que a sua obra pareça destacar-se do cenário em que se insere, ou seja, por mais que ela nos dê a impressão de ser totalmente inovadora quando comparada à tradição. Entretanto, esse "solipsismo extremado" – para evocar um termo de Harold Bloom – que alguns poetas parecem apresentar, e até mesmo desejar, é ilusório, uma vez que todo poeta está sempre submetido a uma relação dialéctica com outros poetas, seja ela de afirmação ou negação, de repetição ou adulteração.»

Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., p. 16
.................E sobre a solidão das casas,
entre o sono e o vinho derramado,
curvam-se os cascos do demónio -
ágeis, frágeis.
E o sonâmbulo desejo do nosso coração
tudo absorve ao alto, como uma tenebrosa
vertigem.


(pequeno excerto retirado do poema IV de 'Fonte')


Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.64.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Perfumados prados do meu peito

Perfumados prados do meu peito,
Colho as vossas folhas, escrevo, para melhor as estudar depois,
Folhas dos túmulos, folhas do corpo crescendo sobre mim, so-
bre a morte,
Raízes vivas, altas folhas, oh o inverno não vos enregelará, delicadas
folhas.
De novo floresceis todos os anos, de novo saindo do vosso
retiro;
Eu não sei se muitos ao passar vos hão-de descobrir ou aspirar
tão suave aroma, mas sei que alguns o farão;
Oh delicadas folhas! Flores do meu sangue! Falai à vossa maneira
do coração que por baixo tendes,
Eu não sei qual o vosso subterrâneo sentido, não sois felicidade,
Sois muitas vezes tão cruéis que não vos posso suportar, queimais-
me e feris-me,
E, todavia, que bela sois aos meus olhos, raízes levemente colo-
ridas, fazendo-me pensar na morte,
A julgar por vós a morte é bela, (enfim, que haverá de mais belo
senão a morte e o amor?),
Oh creio que não é em louvor da vida que aqui canto o meu
canto de amantes, creio que é em louvor da morte,
Pois, como é sereno, como floresce solenemente ao elevar-se à
atmosfera dos amantes!
Vida ou morte, tanto me faz, a minha alma recusa-se a escolher,
(Talvez a alma sublime dos amantes prefira a morte,)
Na verdade, ó morte, penso que estas folhas significam o mesmo
que tu,
Crescei, doces folhas, para que vos possa ver! Crescei sobre o
meu peito!
Abandonai o coração que aí se oculta!
Não vos enredeis, tímidas folhas, em vossas rosadas raízes!
Não vos quedeis aí, envergonhadas, ervas do meu peito!
Vinde, estou decidido a desnudar este amplo peito, tanto tempo
o reprimi e sufoquei;
Emblemáticas e caprichosas folhas, deixo-vos, pois já não me
sois úteis,
Sem rodeios direi o que tenho a dizer,
Só a mim e aos companheiros hei-de cantar, jamais atenderei
outra voz que não a sua,
Despertarei ecos imortais em todos os estados do meu país,
Aos amantes darei um exemplo que seja para sempre forma e
vontade em todos os estados do meu país,
Pronunciarei as palavras que exaltem a morte,
Dá-me então a tua música, ó morte, para estarmos em harmonia,
Dá-te a mim porque agora sei que acima de tudo me pertences e
que tu e o amor estão inseparavelmente unidos,
Não permitirei que me enganes mais com isso a que chamava
vida,
Porque enfim compreendo que és os conteúdos essenciais,
Que, por qualquer razão, te escondes nestas mutáveis formas de
vida, e que elas existem sobretudo para ti,
Que, para além delas, surges e permaneces, tu, realidade real,
Que, sob a máscara das coisas materiais, aguardas pacientemente,
não importa quanto tempo,
Que, talvez um dia, tudo dominarás,
Que talvez dissipes todo este imenso desfile de aparências,
Que talvez seja para ti que tudo existe mas não perdura,
Mas tu perdurarás.


Walt Whitman.
Cálamo. Edição bilingue. Versão de José Agostinho Baptista. Lisboa, Assíro&Alvim, 1999., pp. 19-23.
A propósito de um início de leitura (viagem), pelo livro Cálamo de Walt Whitman, encontra-se às tantas, uma opinião crítica (algumas, que se diziam na altura) que me deixou estupefacta, a olhar e a reler a 'bosta', com alguma incredulidade:

«O autor devia ser corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas. Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio» (Intelligencer, Boston, 1855)

domingo, 16 de maio de 2010

Aquele que não ama permanece na morte.


(1ª Carta de São João:1603)
«Nas cordas do peito sopra uma profunda nostalgia. Em gotas de orvalho me quero deixar afundar e misturar-me com a cinza. Longes da memória, anelos da juventude, sonhos da infância e os breves regozijos e esperanças vãs de toda uma vida tão longa vêem, com as suas vestes cinzentas como a névoa da tarde após o sol posto. A luz descerrou noutros espaços os seus álacres panais. Pois não havia ela de regressar para junto dos seus filhos, que a esperavam há muito com a fé da inocência?
O que é que, de repente, pleno de pressentimentos, brota de sob o coração e sorve a doce aragem de melancolia? Também em nós te comprazes, obscura Noite. O que é que tu guardas debaixo do teu manto, que me toca a alma com uma força invisível? Um bálsamo precioso goteja da tua mão, de um molho de papoilas. Elevas as pesadas asas do nosso ânimo. Sentimo-nos obscuramente, inexprimivelmente comovidos. Vejo, numa crispação de alegria, um rosto grave, que para mim se inclina suave e pensativo, e até mim traz, por entre infinitas madeixas ondeadas, a tão doce juventude materna.»

Novalis. Os hinos à noite. Prefácio e Trad. Fiama Hasse Pais Brandão. 2ªed. Lisboa, Assírio&Alvim, 1998., p 19

A rã da paz

Há sangue pelas ruas, chega-me aos tornozelos.
Há sangue nas ruas, chega-me ao joelho.
Sangue nas ruas de Chicago cidade,
maré de sangue na minha peugada.

Ela apareceu ao romper do dia,
apareceu e partiu com o sol nos cabelos.

Corre o sangue nas ruas, enxurrada de dor.
Sangue nas ruas, a dar-me pelas pernas.
Rio a passar entre as pernas da cidade,
choram as mulheres rubros rios de lágrimas.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., p. 71



foda-se, há dias em que as nossas almas, se prostam diante os desígnios: talvez a auto-percepção do 'caminho individual' nasça dentro de um útero forrado de labirínticas iluminações - o inferno é um lago luminoso.

«Tornar-te-ás só quem tu sempre foste
O que te os Deuses dão, dão no começo »


Ricardo Reis. Poesia. Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa, Assírio&Alvim, 2000., p.79

Fábula(s)

«(...) enquanto na fábula tradicional há um processo de humanização dos animais, na fábula contemporânea acontece o contrário: os homens são animalizados.»


Enrique Turpin Avilés. «El género de la fábula en los noventa: inflexiones y propuestas», 2001.
«Eu, como qualquer outro poeta imagino, vivo materialmente o que escrevo. Quer dizer, não há nenhuma emoção ou pensamento nos meus poemas que eu não tenha realmente sentido ou pensado.» (António Franco Alexandre, 2002: 24)
«Toda a poesia é luminosa, até/ a mais obscura.»


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Fim

É o fim, amigo querido,
é o fim, amigo único, o fim
dos planos que forjámos, o fim
de tudo o que era firme, o fim
sem apelo ou surpresa, o fim.
Nem mais te olharei nos olhos.
Vê se imaginas o que vai ser de nós,
limitados e libertos,
desesperadamente necessitados da mão dum estranho
num mundo desesperado?

Perdidos num romano deserto de mágoas,
com todas as crianças atacadas pela loucura,
todas as crianças atacadas pela loucura,
à espera da chuva de Verão.

É perigoso passar ao pé da cidade,
segue a direito pela estrada real.
Cenas mágicas dentro da mina de ouro;
segue pela estrada do oeste, amor.

Vai, vai a cavalo na serpente
até ao lago de antigamente.
A serpente mede sete longas milhas:
põe-te a cavalo na serpente, que é velha
e tem a pele frígida.
O Oeste é óptimo, óptimo é o Oeste,
vem até cá, nós faremos o resto.
O autocarro azul chama por nós,
o autocarro azul chama por nós.
Aonde nos leva, senhor condutor?

O assassino acordou antes da aurora,
calçou as botas,
retirou uma cara da galeria antiga,
e seguiu pelo átrio adiante.
Foi até ao quarto onde a irmã vivia,
foi seguidamente visitar o irmão,
e dali seguiu pelo átrio fora.
E chegou a uma porta
e olhou lá para dentro.
-Pai!
-Sim, meu filho?
- Eu quero matar-te.
Mãe eu quero que...


Entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
opera-me nas traseiras do autocarro azul...


É o fim, amigo querido,
é o fim, amigo único, o fim.
Custa-me deixar-te, mas
nunca irás pra onde eu for.
O fim da risada e das doces mentiras,
o fim das noites em que fizemos por morrer,
é o fim.



Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.23/5

Aceita O Que Vier

Tempo pra viver, tempo pra mentir,
tempo pra rir, tempo pra morrer.

Toma cuidado querida, aceita o que vier.
Não te precipites se queres que o amor dure.
Tens-te precipitado demais.

Tempo pra andar, tempo pra comer
tempo pra vibrares os dardos ao sol.

Vai devagar, verás que te sabe cada vez melhor,
aceita o que vier, tira a especialidade do prazer.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.22

As Pessoas São Estranhas

As pessoas são estranhas quando nós o somos,
feias são as caras quando nos vemos só.
Toda a mulher que nos rejeita nos parece perversa,
as ruas são torturosas quando estamos em baixo.
Quando nos sentimos estranhos, surgem-nos caras através da chuva,
quando nos sentimos estranhos, ninguém se lembra do nosso nome,
quando nos sentimos estranhos, quando nos sentimos estranhos,
quando nos sentimos estranhos.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.33

quarta-feira, 12 de maio de 2010




O mar é uma das referências mais constantes do universo lírico de Luís Miguel Nava. O mar e todos os elementos que naturalmente lhe estão associados: ondas, rebentação, falésias, etc.

À volta do campo semântico gerado pelo mar, gravitam dois temas essenciais: a infância e o amor. Logo no poema inaugural de Películas se pode ler “… isto explode e entra/nesta página o mar da minha infância, meigo/no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender um texto na memória”.Numa poesia tão ostensivamente corporal, o mar também entra no corpo e mistura-se com ele. O mar ora é objecto motor que arrasta consigo, deflagrando, os lugares e as presenças mais impressivas da infância, ora é objecto movido. Em qualquer dos casos, é o mar uma força inexpugnável: “…às vezes extravio-me, ao enfiar pela memória/as ondas saem-me ao caminho”, ou “..o mar de que deflagram/as ondas por acção da memória”. A estreita relação existente entre o mar e as recordações parece ser bem clara, pois “..disponho alguns retratos junto ao mar, o mar/rebenta-lhes em cima e atravessa-os, fica dentro/deles”. É ainda a energia do mar que traz consigo a figura da mãe, e também, embora com muito menos força, a figura do pai, duas das presenças mais relacionadas com a infância.

Como representação da pele, o mar conduz-nos ao domínio dos afectos.


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas, p. 129

terça-feira, 11 de maio de 2010

…Mergulho às vezes as mãos na minha esperança, mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem em raízes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade - penso, olhando o redemoinho - assim correm os afectos, que, depois de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar, se escoam sem regresso em direcção ao caos.


Luís Miguel Nava. O Céu Sob as Entranhas. Porto, Limiar,1989, p.53.

«Não foi sem dificuldades que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converterse nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá- Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objectos cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente se divide entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer que ele esteja já dentro de ti - e algo de mim com ele. Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos.»


Luís Miguel Nava. Vulcão. Lisboa, Quetzal, 1994, p.63.
Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.



Luís Miguel Nava. Poemas.Porto, Limiar, 1987, p.79.
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