João Miguel Fernandes Jorge. O Roubador de Água. Assírio & Alvim, Lisboa. 1981., p. 89
domingo, 27 de dezembro de 2015
"Um dia hei-de surgir, num sonho teu, e perder eu a vida para ver-te."
António Franco Alexandre
segunda-feira, 22 de junho de 2015
OUVIR A VONTADE
"eu queria ser o mais simplesdos cantores, aquele que uma trompa acompanha em deslocação à província, ter a teimada obstinação do grilo e o grito da água, surpresa no alto dos penhascos, e há pássaros que mergulham e me rasgam para pousar no silêncio inteiro da queda. tudo tentei: lugar de nascimento, morada, cartão de identidade fixa, férias no cabo do mundo, de livro na mão, declamado a exacta simetria dos espaços; a repetição até à agonia, do símil completo e da elipse redonda; tudo analisável, grosseiro, como compete à purificação da língua, lavada escorrida para uso nas escolas, as da vida e as que não morrem. saio para a rua e todos os homens trazem braçadeiras brancas, os pequenos polícias atiram sesgado, estamos infelizes e mortais, como é costume. depois disto ninguém vai acreditar quando disser que veneno maior é o dedal da chuva, que nele ouvi a luz que nos despede, que nele ouvi a fome, a sede e o frio."
-"As Moradas 1& 2" António Franco Alexandre
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
1
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios, prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que movimentam no espaço, e aos bandos os pássaros decifram sobre o musgo e a hera, é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento, translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias, que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.
2
movem nos muros, a vagina mineral das mães adormecidas, entre os apitos trémulos do aço e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo, algum visível afastamento das madeiras, algum pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.
3
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes entendem, decifram sob o grés as patadas da terra, espalham na violência um musgo que prenuncia a transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo, algum afastamento da violência; o grés, os olhos, e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde se perde pé muito de repente e se afundam as asas como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.
4
separam, mas esse é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes. nasceram de um modo diferente de pousar os ossos contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso, como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia [desejámos.
5
outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido invisíveis capturam, as que vêm de dentro de um muro, e sobre um muro movem ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem, uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.
6
vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo [amordaçado, ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas, prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.
7
o que movem no ar movem no sangue, um grés animal, a madeira das mães anoitecidas. amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando algum afastamento decisivo. o que afastam capturam. é um novo muro, então, à sombra das cidades, deitado sobre a boca.
António Franco Alexandre
segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
«às vezes, numa raiva de apetite,
lanço os meus fios de caça, e apanho
algum bicho menor, algum mosquito,»
António Franco Alexandre.Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 13
«E quem me diz que, belo então que fosse,
conservaria ainda o privilégio
de me sentar no teu joelho, e ver
os exactos mistérios do teu sexo?»
António Franco Alexandre.Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 11
« (...) as palavras com que nos faz partilhar o seu enfrentamento de mundo, a densidade emocional com que nos lembra a exaltante mágoa do encontro dos corpos, a encantação de que nos faz testemunhas e participantes, fazem da sua obra poética um dos exemplares trágicos do esquecimento a que a nossa recente poesia se encontra votada.»
Joaquim Manuel Magalhães.António Franco Alexandre. Os Dois Crepúsculos. Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981., p.251
«aproximo-me de falar, mas ambiciono/ guardar silêncio.»
«Eu, como qualquer outro poeta imagino, vivo materialmente o que escrevo. Quer dizer, não há nenhuma emoção ou pensamento nos meus poemas que eu não tenha realmente sentido ou pensado.» (António Franco Alexandre, 2002: 24)
domingo, 9 de agosto de 2009
recebe-me, coração espesso de sangue,
papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)
até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,
meu filho. Recebe-me
folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)
tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,
terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam
nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,
inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)
nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar
águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos
não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada
não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o
sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)
(...)
António Franco Alexandre in Poemas Assírio & Alvim, 1996