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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Lugares de Memória

Virás dentro do giz, adormecida em nuvens,
                  com esse fio de prata nos cabelos.


António Franco Alexandre


Outros virão mais capazes de gostar.

Morre-se sempre pelo lado do inverno
adormecido em nuvens
vindo dentro de uma árvore
metade das raízes,
a metade dos céus.

Este receio carregado de infância.

Alma pequena,
adormecida,
com esse fio de prata.

O vento as nuvens corpo estendido vencido
pela luz
não tenho mais a pedir
ervas aves e luz.

Vindo de tão perto.


João Miguel Fernandes JorgeO Roubador de Água. Assírio & Alvim, Lisboa. 1981., p. 89

domingo, 27 de dezembro de 2015

"Um dia hei-de surgir, num sonho teu,
e perder eu a vida para ver-te."

António Franco Alexandre

segunda-feira, 22 de junho de 2015

OUVIR A VONTADE
"eu queria ser o mais simplesdos cantores, aquele que uma trompa
acompanha em deslocação à província,
ter a teimada obstinação do grilo
e o grito da água, surpresa no alto dos penhascos,
e há pássaros que mergulham e me rasgam
para pousar no silêncio inteiro da queda.
tudo tentei: lugar de nascimento, morada, cartão
de identidade fixa,
férias no cabo do mundo, de livro na mão, declamado
a exacta simetria dos espaços;
a repetição até à agonia, do símil completo
e da elipse redonda;
tudo analisável, grosseiro, como compete
à purificação da língua, lavada escorrida
para uso nas escolas, as da vida e as
que não morrem.
saio para a rua e todos os homens trazem
braçadeiras brancas,
os pequenos polícias atiram sesgado,
estamos infelizes e mortais, como é costume.
depois disto ninguém vai acreditar quando disser
que veneno maior é o dedal da chuva,
que nele ouvi a luz que nos despede,
que nele ouvi a fome, a sede e o frio."

-"As Moradas 1& 2"
 António Franco Alexandre

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

1
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.
2
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.
3
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.
4
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
[desejámos.
5
outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
invisíveis capturam, as que vêm
de dentro de um muro, e sobre um muro movem
ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.
6
vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
[amordaçado,
ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.
7
o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
a madeira das mães anoitecidas.
amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
algum afastamento decisivo.
o que afastam capturam. é um novo muro, então,
à sombra das cidades, deitado sobre a boca.


 António Franco Alexandre

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013


«às vezes, numa raiva de apetite,
lanço os meus fios de caça, e apanho
algum bicho menor, algum mosquito,»




António Franco Alexandre. Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 13
«E quem me diz que, belo então que fosse,
conservaria ainda o privilégio
de me sentar no teu joelho, e ver
os exactos mistérios do teu sexo?»



António Franco Alexandre. Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 11

quinta-feira, 20 de maio de 2010

sobre a poesia franco alexandrina (crítica literária)

« (...) as palavras com que nos faz partilhar o seu enfrentamento de mundo, a densidade emocional com que nos lembra a exaltante mágoa do encontro dos corpos, a encantação de que nos faz testemunhas e participantes, fazem da sua obra poética um dos exemplares trágicos do esquecimento a que a nossa recente poesia se encontra votada.»


Joaquim Manuel Magalhães. António Franco Alexandre. Os Dois Crepúsculos. Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981., p.251
«aproximo-me de falar, mas ambiciono/
guardar silêncio.»


António Franco Alexandre. Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

domingo, 16 de maio de 2010

«Eu, como qualquer outro poeta imagino, vivo materialmente o que escrevo. Quer dizer, não há nenhuma emoção ou pensamento nos meus poemas que eu não tenha realmente sentido ou pensado.» (António Franco Alexandre, 2002: 24)

domingo, 9 de agosto de 2009

recebe-me, coração espesso de sangue,

papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)

até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,

meu filho. Recebe-me

folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)

tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,

terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam

nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,

inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)

nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar

águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos

não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada

não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o

sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)

(...)

António Franco Alexandre
in Poemas
Assírio & Alvim, 1996
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