recebe-me, coração espesso de sangue,
papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)
até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,
meu filho. Recebe-me
folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)
tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,
terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam
nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,
inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)
nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar
águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos
não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada
não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o
sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)
(...)
António Franco Alexandre
in Poemas
Assírio & Alvim, 1996
domingo, 9 de agosto de 2009
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