domingo, 16 de outubro de 2011

«O homem é um destroço, um ser para sempre perdido nos abismos e nas ressonâncias de várias tempestades, interiores ou não, habitando numa invisível calma que nos embala, suspeita: o hábito, esse acampamento de ilusões. »

no Prefácio


Eugenio Montale. Poesia. Selecção, tradução, prefácio e notas de José Manuel de Vasconcelos. Assírio&Alvim, Lisboa, 2004., p.13

incompletude

«(...), e o poema é sempre um instrumento de aproximação aos mistérios do homem, à espessura das coisas do mundo,»


no Prefácio


Eugenio Montale. Poesia. Selecção, tradução, prefácio e notas de José Manuel de Vasconcelos. Assírio&Alvim, Lisboa, 2004., p.12/3

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

«(...) Agasalhas-te na tua ignorância como um cão fatigado que dorme na lama.
    -Estrangeiro, é igualmente vão injuriar os cães e os filósofos. Desconhecemos o que são os cães e o que somos nós. Nada sabemos.»
   - Ó velho! pertences então à seita ridícula dos céticos? És, pois um desses miseráveis loucos que negam o movimento e os repouso, e de nenhum modo sabem distinguir entre a luz do sol e as sombras da noite?»



Anatole France. Thaïs. Tradução de Sodre Viana. Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 2ª ed., p. 23/4

Thaïs

«Não é ela, Senhor, o sopro da tua boca?»

(...)

«Todavia. quanto mais culpada, mais devo lamentá-la. Choro ao pensar que os demónios a atormentarão na eternidade.»


Anatole France. Thaïs. Tradução de Sodre Viana. Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 2ª ed., p. 13
«''Meu Deus, tomo-te por testemunha de que avalio o negrume do meu pecado''.»


Anatole France. Thaïs. Tradução de Sodre Viana. Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 2ª ed., p. 12

''não se cansava de verter lágrimas''

Baudelaire, 1855

jejum

«Assim se cumpria a palavra dos profetas, que haviam dito: ''O deserto se cobrirá de flores''.»



Anatole France. Thaïs. Tradução de Sodre Viana. Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 2ª ed., p. 6

''dormiam no chão bruto depois de ásperas vigílias''

anacoreta


nome masculino
homem que vivia retirado nos desertos ou montes por desejo de perfeição

(Do grego anakhoretés, «que vive retirado», pelo latim tardio anachorēta-, «anacoreta; solitário»)

terça-feira, 11 de outubro de 2011


«Há mulheres que inspiram o desejo de vencer ou de as gozar, mas esta provoca o desejo de se morrer lentamente sob o seu olhar.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 111
«Compará-la-ia a um sol negro, se pudéssemos conceber um astro negro derramando luz e felicidade.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 110

XXXIII EMBRIAGA-TE


      «Devemos andar sempre bêbedos. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
        Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
        E se alguma vez, nos degraus dum palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida. pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo, o que se passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhe que horas são: « São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 105
''As dores mais terríveis são silenciosas.''



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 96

As ilusões


«As ilusões - dizia o meu amigo - são talvez tão inumeráveis como as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desparece, quer dizer, quando nós vemos o ser ou o facto tal como ele existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, complicado em metade pelas saudades do fantasma desaparecido, em metade pela surpresa agradável ante o novo, ante o facto real.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 92
«Sim, tem razão; não há prazer mais doce do que o de surpreender um homem dando-lhe mais do que ele espera.»


Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 86

domingo, 9 de outubro de 2011

«Voltei os olhos para os teus, minha bem-amada, para neles ler o meu pensamento; e mergulhei nos teus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos teus olhos verdes, habitados pelo capricho e inspirados pela Lua, quando tu disseste: «Essa gente é-me insuportável com os seus olhos abertos como portas de cocheiras! Não podias pedir ao chefe dos criados para os afastar daqui?»
   Como é difícil o entendimento mútuo, meu querido anjo, e como o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!»


Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 78

«Os cançonetistas dizem que o prazer torna a alma boa e abranda o coração.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 77

''no luto profundo da Noite''

«O crepúsculo excita os loucos. - Lembro-me que tive dois amigos a quem o crepúsculo punha muito doentes.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 66

Carrying a woman

XXI AS TENTAÇÕES OU EROS, PLUTO E A GLÓRIA

   «Dois soberbos Satãs e uma Diabinha, não menos extraordinária, subiram a noite passada a escada misteriosa por onde o Inferno dá assalto à fraqueza do homem que dorme, e comunica em segredo com ele. E vieram-se colocar gloriosamente diante de mim, de pé como sobre um estrado. Um esplendor sulfuroso emanava dessas três personagens, que assim tomavam relevo no fundo opaco da noite. Tinham um ar tão arrogante e tão cheio de importância, que eu a princípio tomei-os a todos por verdadeiros Deuses.
    O rosto do primeiro Satã era dum sexo ambíguo, e tinha também, nas linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos. Os olhos lânguidos, duma cor tenebrosa e indecisa, faziam lembrar violetas ainda cobertas de pesadas lágrimas da tempestade, e os lábios entreabertos, turíbulos acesos donde se exalava o bom odor duma perfumaria; e cada vez que ele suspirava, insectos almiscarados iluminavam-se, volitando, no ardor do seu bafo.
    Em volta da sua túnica de púrpura estava enrolada, à maneira de cinto, uma serpente cintilante que de cabeça erguida, languidamente voltava para ele os olhos em brasa. Duma tal cintura viva pendiam, alternando com garrafinhas cheias de sinistros licores, facas reluzentes e instrumentos de cirurgia. Na mão direita segurava outra garrafinnha cujo conteúdo era dum vermelho luminoso, e que tinha como etiqueta estas palavras bizarras: «Bebei, isto é o meu sangue, um perfeito cordial»; na esquerda, um violino que lhe servia sem dúvida para cantar os seus prazeres e as suas amarguras, e para espalhar o contágio da sua loucura nas noites de sabbat.
    Nos chifres delicados estavam alguns anéis de uma cadeia de ouro partida, e quando o incómodo que daí lhe vinha o obrigava a baixar os olhos para o chão, contemplava com vaidade as unhas dos pés brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.
    Ele olhou-me com os seus olhos inconsolavelmente magoados, donde escorria uma insidiosa embriaguez, e disse-me com voz cantante: «Se tu quiseres, se tu quiseres, tonar-te-ei o senhor das almas, e serás dominador da matéria viva, mais ainda que o escultor o pode ser de argila; e conhecerás o prazer, sem cessar renovado de sair de ti próprio para esqueceres em outrem, e de atrair as outras almas até as confundires com a tua.»
    E eu respondi-lhe: «Muito Obrigado! eu nada tenho que fazer dessa pacotilha de seres que, sem dúvida, não valem mais que o meu pobre eu. Ainda que eu tenha alguma vergonha de me lembrar, nada quero esquecer; e mesmo que eu não te conhecesse, meu velho monstro, a tua misteriosa cutelaria, as tuas garrafinhas equívocas, as cadeias em que os teus pés estão enredados, são símbolos que explicam assaz claramente os inconvenientes da tua amizade. Guarda os teus presentes.»
     O segundo Satã não tinha nem aquele ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem aquelas lindas maneiras insinuantes, nem aquela beleza delicada e perfumada. Era um homem vasto, com uma grande cara sem olhos, cujo pesado bandulho sobrepujava as coxas e cuja pele inteira estava dourada e ilustrada, como uma tatuagem, como uma multidão de figurinhas móveis representando as numerosas formas da miséria universal. Havia homenzinhos esguios que voluntariamente se suspendiam a um prego; havia gnomozinhos disformes, magros, cujos olhos suplicantes mais ainda pediam esmola do que as suas trémulas mãos; e depois, velhas mães trazendo abortos presos aos seios esgotados. E ainda muitas outras.
     O enorme Satã golpeava com o punho o seu imenso ventre, donde saía um ruído prolongado e metálico, terminando num vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E ele ria, mostrando sem pudor os dentes estragados, com um enorme riso imbecil, como certos homens de todas as nações quando jantaram bem de mais.
      E este disse-me: « Eu posso dar-lhe aquilo que tudo obtém, que tudo vale, que tudo substitui!» E ele bebeu no ventre monstruoso, cujo eco sonoro fez o comentário da sua grosseira palavra.
      Voltei-me com asco, e respondi: «Eu não tenho necessidade, para o meu gozo, da miséria de ninguém; eu não quero uma riqueza contristada, como um papel de forrar, por todas as desditas representadas na tua pele.»
      Quanto à Diabinha, mentiria se não dissesse que, à primeira vista, lhe encontrei um estranho encanto. Para definir este encanto, a coisa alguma poderia compará-lo melhor do que ao encanto das mulheres muito belas já maduras, que no entanto não envelhecem mais, e cuja beleza conserva a magia penetrante das ruínas. Tinha um ar ao mesmo tempo imperioso e desengraçado, e os seus olhos, embora cansados, eram de energia fascinante. O que me impressionou mais foi o mistério da sua voz, em que encontrei a lembrança dos contralti mais deliciosos, e, também, um pouco o enrouquecimento das gargantas incessantemente lavadas pela aguardente.
       «Queres conhecer o meu poder?» - disse a falsa deusa com a sua voz encantadora e paradoxal. «Escuta.»
       E ela então emboca uma gigantesca trombeta, enfeitada, coma uma flauta de cana, com os títulos de todos os jornais do universo, e através dessa trombeta gritou o meu nome, que rolou assim através do espaço com o estrondo de cem mil trovões, e que voltou até mim repercutido pelo eco do mais longínquo planeta.
       «Diabo!», disse eu, quase subjugado, «eis o que é preciso!» Mas examinando com mais atenção a sedutora virago, pareceu-me que a reconhecia vagamente por a ter visto beber com alguns mariolas do meu conhecimento; e o som rouco de cobre trouxe aos meus ouvidos não sei que recordação duma trombeta prostituída.
      E assim respondi, com todo o meu desdém: «Vai-te embora! Eu não fui feito para despojar a amante de certa gente que não quero nomear.»
      Sem dúvida que, sendo portador de tão corajosa abnegação, eu tinha o direito de sentir-me orgulhoso. Mas desgraçadamente eu acordei, e toda a minha energia me abandonou. « Na verdade - disse comigo - foi preciso que eu estivesse a dormir bem pesadamente para mostrar tais escrúpulos. Ah! se eles pudesssem voltar enquanto estou acordado, não me faria tão esquisito!»
         E invoquei-os em voz alta, suplicando-lhes que me perdoassem, e oferecendo-me para ser desonrado tantas vezes quantas fossem precisas para lhes merecer os seus favores; mas eu tinha-os certamente ofendido muito, pois nunca mais voltaram.»




Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p. 60-64

XVII UM HEMISFÉRIO NUMA CABELEIRA

    «Deixa-me respirar por muito, muito tempo, o odor dos teus cabelos, mergulhar neles todo o meu rosto, como um homem sequioso na água duma nascente, e agitá-los com a mão como um lenço perfumado, para sacudir as recordações no ar.
     Se tu pudesses saber tudo o que eu vejo! tudo o que eu sinto! tudo o que eu ouço nos teus cabelos! Minha alma viaja sobre o perfume como a alma dos outros homens viaja sobre a música.
     Os teus cabelos contêm um sonho inteiro, cheio de velas e de mastros; contêm grandes mares cujas monções me levam para climas adoráveis, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera tem o perfume dos frutos, das folhas e da pele humana.
     No oceano da tua cabeleira, entrevejo um porto a formigar de canções dolentes, de homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas recortando as arquitecturas finas e complicadas sob um céu imenso onde se pavoneia um calor eterno.
      Nas carícias da tua cabeleira, encontro os langores das longas horas passadas sobre um divã no camarote dum belo navio, embaladas pelo arfar imperceptível do porto, por entre os vasos de flores e as bilhas que refrescam a água.
      No lume ardente da tua cabeleira, respiro o odor do tabaco misturado com ópio e açúcar; na noite da tua cabeleira, vejo resplandecer o infinito do azul tropical; nas praias acetinadas da tua cabeleira, embebedo-me com os odores combinados de alcatrão, de musgo e de óleo de coco.
    Deixa-me morder longamente as tuas tranças pesadas e negras.
     Quando mordisco os teus cabelos elásticos e rebeldes, parece-me que devoro recordações.»




Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p.49/50

sábado, 8 de outubro de 2011

Ballet production of Don Quixote at New York State Theater.

Não lhe parece, minha senhora?

«Não lhe parece, minha senhora, que lhe deixo aqui um madrigal inteiramente digno de apreço, e tão pomposo como vós mesmas? E, em boa verdade, tive tanto prazer em abordar esta pretenciosa galantaria, que nada vos peço em troca.»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p.48
«Estava a partir sossegadamente o meu pão, quando um ruído muito leve me fez levantar os olhos. Diante de mim estava um pequeno ente andrajoso, negro, esgadelhado, cujos olhos cavos, bravios e como suplicantes, devoravam o meu pedaço de pão. E ouvi-o suspirar, numa voz baixa e rouca, a palavra: bolo! Não pude deixar de rir  ouvindo a designação com que ele queria honrar o meu pão quase branco, e parti para ele um bom pedaço que lhe estendi. Lentamente, foi-se aproximando, sem tirar os olhos do objecto da sua cobiça: depois, agarrando o pedaço de pão, recuou bruscamente, como se temesse que a minha oferta não fosse sincera ou que dela já me tivesse arrependido.»





Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p.45

oblívio

nome masculino
 
olvido, esquecimento

(Do latim oblivĭu-, «esquecimento»)

« 11 - Não alinhes pelas opiniões que o insolente julga verdadeiras ou pretende que julgues verdadeiras, mas examina-as em si mesmas, pelo que elas são realmente.»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 38

«Põe os olhos na rapidez do esquecimento em que tudo cai e no abismo do tempo infinito, para diante e para trás; vê quanto é vão todo o ruído que se faz, a versatilidade e a irreflexão dos que têm ar de aplaudir, os limites estreitos em que tudo se circunscreve;»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 36

''máximas concisas e essenciais''

«Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de arruídos, que na alma, sobretudo quando se tem dentro dela aqueles bens sobre que basta inclinar-se para que logo se recobre toda a liberdade de espírito, e, por liberdade de espírito, outra coisa não quero dizer que o estado de uma alma bem ordenada.»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 35

«Pertencem  ao corpo as sensações; à alma os instintos; à inteligência os princípios.»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 34
« 8  - Na inteligência do homem  que se mortificou e purificou a fundo não se encontrará nenhuma infecção ou mancha, nenhuma ferida mal curada sob a cicatriz. A vida deste homem quando o destino a ceifa não nos surge inacabada como o papel do actor teatral que se afastasse das tábuas a meio da peça sem chegar ao desfecho.»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 31

sangue impuro

''beleza amadurecida''

«(...) as azeitonas maduras esquecidas na oliveira quando estão justamente a uma linha de podridão é que se aureolam de uma beleza particularíssima. O mesma se diga das espigas inclinadas para a terra, das rugas que sulcam a testaruda fronte do leão, da escuma que escorre das presas do javali e de coisas pelo teor; se as considerarmos em si estão longe de ser belas.»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 27

DESEJO DE MORRER

«Hermes veio...

Eu disse-lhe: «Senhor...
não, pela Deusa Feliz,
nunca prezei grandezas:

  o meu desejo
  é morrer. Ver
no orvalho as flores
de luto no lodo longo do Aqueronte!»



Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 103

OLVIDO

«Morte, inércia de sono
    para ti, silêncio
de qualquer memória
para sempre: não mais, não,
alcançarás as rosas de Piéria.
   Escura e desatinada,
vaguearás pelo Hades
não mais vista de ninguém,
   sempre às cegas, sempre
     por entre sombras
 de corpos, obscuras
     aparências só.»


Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 101

MAÇÃ MENINA

«No alto do ramo,
alta no ramo mais alto,
  uma tão rosa maçã:
esqueceram-na os apanhadores
de fruta. Esqueceram-na?
  Não! Mãos não tiveram
     para a colher.»



Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 99

PARA ALÉM DO MAR

«...em Sardis agora vive,
mas a alma encontra-se entre nós.
................................................
   Eras para ela tal uma Deusa,
o teu canto acalmava os seus caprichos.

  Agora, na Lídia, deslumbra entre
      as mulheres. Assim a lua,
       posto o sol, rósea
empalidece as estrelas, inunda, em subido fulgor,
     as águas do mar salgado
     e a planície toda em flor:

um manto luzente de orvalho, viçoso
de rosas, tenras madressilvas e trevos
            perfumados.

    Entre um passo e outro passo,
   Áttis suaviza-lhe a memória:
   liquefaz-lhe o anseio na leve
  urdida do coração. - Embora
       a angústia
com angústia lhe pese.»




Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 91

ALÍVIO


«Enfim, cara, vieste - e bem. Com
 ânsia te esperava - e muito. Que
  saibas: em minha alma ascendeste
       um fogo que a devora.»


Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 75

DICA

«Coroa-te, Dica, com tuas gráceis mãos!
       Enfeita os aneis do teu cabelo
com funcho, anis, pétalas e corolas.

   Vê que os olhos das Graças
sempre em grinaldas se entrançaram
        de flores muitas

     - e sempre, Dica, se desviam
      de quem não se coroa
             de flores!

Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 73

AS POMBAS


   «E o seu coração
       ascende frio,
    e as asas abrandam...»


Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 63

ADÓNIS

« - O doce Adónis morreu, Afrodite: que fazer?
        -Flagelai, moças, os vossos seios,
      rasgai, amigas, as vossas vestes.»



Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 53

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

ESQUECIMENTO

«De mim te sei esquecida, e não mais
tu me amas: a um outro sim - e mais.»


Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 47

VERGONHA

« - Uma coisa te quero dizer,
mas a vergonha mo impede...

-Se em ti habitasse o desejo
    por coisas nobres e belas,
e a tua língua se não embrulhasse no mal,
  já a vergonha não cobriria teus olhos
e límpido falarias sobre os teus sentimentos.»




Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 41

VIRGINDADE

« - Virgindade, virgindade! Fugiste de mim para onde?
      - Não mais te verei a ti, a ti não mais voltarei.»



Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 39

O BELO E O BOM

     «Quem é belo
     é belo aos olhos
    - e basta.

     Mas quem é bom
    é subitamente belo.»




Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991., p. 27

MAIS VERDE QUE UMA ERVA



(...)

«O suor me toma, um tremor
me prende. Mais verde sou
do que uma erva - e de mim
não me parece a morte longe...

.................................................


Safo. Líricas em Fragmentos. Tradução e apresentação de Pedro Alvim. Edição Bilingue. Vega, 1ª edição, 1991

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

«Em resumo, tudo o que ao corpo se refere assemelha-se a um rio; o que tange à alma, um sonho vaporoso; a vida, uma guerra, um exílio em terra estranha; a fama que é póstuma o mesmo é que esquecimento. Quem nos poderá guiar no meio disto tudo? Uma só coisa, penso eu: a filosofia.»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 24
«Ora a morte, e a vida, a glória e a obscuridade, a dor e o prazer, a riqueza e a pobreza, tudo isso cabe em igual medida aos homens de bem e aos depravados; não brilha nisso nem beleza nem fealdade; quer dizer que não são nem bens nem males.»



Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 22

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

prorrogar


verbo transitivo
prolongar (o tempo) para além do prazo estabelecido; protelar; dilatar

(Do latim prorogāre, «idem»)
«a coragem em todas as circunstâncias, especialmente durante as enfermidades;»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 12

solecismo

nome masculino
 
1.GRAMÁTICA qualquer erro ou falta contra as regras da sintaxe
2. incorreção de linguagem

(Do grego soloikismós, pelo latim soloecismu-, «idem»)

deu-me a lição de benevolência

« a tolerância para com os tolos e o não fazer caso dos que largam sentença sem pinga de reflexão; a arte de se adaptar a gente de todo o feitio;»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 11

«Ei-la, lá estava ela, lá estava ela, a Lua...Havia a Lua!, a Lua!
  E Ciàula pôs-se a chorar, sem dar por isso, sem querer, pelo grande conforto, pela grande doçura que sentia ao descobri-la, enquanto ela subia no céu com o seu amplo véu de luz, ignorando os montes, as planícies, os vales que iluminava, ignorando-o a ele, que no entanto por causa dela não sentia já medo, nem se sentia cansado, na noite agora cheia do seu espanto.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 210

De Apolónio aprendi a ...

« manter a calma sob o rijo aguilhão das dores, como a perda de um filho ou as longas doenças.»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971., p. 10
« 7 - De Rústico, o ter concebido a ideia de que o meu carácter precisava de rectidão, disciplina e vigilância a todas as horas; aprendi com ele a não me enliçar na paixão da sofística; a pôr-me a mil léguas de escrever tratados cheios de muita teoria ou a escrevinhar compêndios oratórios que visam persuadir os tolos;»


Marco Aurélio. Pensamentos. Versão Portuguesa de João Maia. Editorial Verbo, Lisboa, 1971

«Coisa estranha; Ciàula não tinha medo da treva lodosa das galerias profundas, onde a cada volta estava a morte emboscada; nem tinha medo das sombras monstruosas que as lanternas provocavam em solavancos ao longe das galerias, nem do súbito chispar de m reflexo avermelhado aqui e além numa poça, dentro de um lençol de água sulfúrea: sabia sempre onde estava; tocava com a mão à procura de apoio as entranhas da montanha: e dentro dela estava cego e seguro como dentro do ventre materno.
   Tinha medo, porém, do escuro vazio da noite.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 207
«Como é belo ver de longe, no meio das trevas da noite, aqui e além, uma aldeia iluminada!»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 198

Tinha já quarenta e sete anos

«Tinha já quarenta e sete anos, e o espírito tornara-se-lhe profundamente melancólico por causa de toda aquela guerra de ódios e invejas.
   Como um animal ferido numa caçada feroz e abrigado num covil desconhecido, assim ele lançava olhares para todos os lados, desconfiado e espantadiço.»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 168
«Os que choravam continuam a chorar.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 491

«(...)     - nó das solidões
do eu que se sente morrer
e não quer aparecer nu perante Deus:


assumo tudo, para poder compreender,
de dentro, o fruto dessa ambiguidade:
um homem adorável, de quem, neste Abril


incalculado, mil jovens descidos do Além,
esperam confiantes um sinal que tenha
a força da fé sem piedade,


para lhes consagrar a raiva humilde.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 485-487
« oh paz que permite a dor selvagem -
oh marca da infância! Oh destino de ouro
construído sobre o eros e a morte, como

uma distracção - e os seus mil e um pretextos
o riso, a filosofia! Ter ilusões ( o amor)
(...)»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 457

pardieiro

nome masculino
 
1. casa arruinada; edifício velho
2. casa pobre e tosca

''excesso de Servilismo''

arenga

nome feminino
 
1. alocução pública
2. discurso longo e fastidioso; palavrório
3. altercação, discussão

enlevar-se

«(...) Foi mais uma amizade,
daquelas que duram uma noite
e atormentam depois toda uma vida.»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 433

FRAGMENTO DE CARTA PARA O JOVEM CODIGNOLA

Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrarmo-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.





Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 427-1429

terça-feira, 4 de outubro de 2011

retardatário


« cada homem tem uma só época
na vida, e vai-se esboroando com os seus problemas.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 421

sem relho nem trabelho

sem fundamento nem razão

« - O senhor não tenha medo. Eu vou à frente; venha atrás de mim, devagarinho, com muito cuidado.
    Por sorte a escuridão era completa! Olhos que não vêem, coração que não sente.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 154
«Mutilar a montanha; abater as árvores para construir casas. Mais casas, ali, naquela vila alpestre. Privações, fadigas, trabalhos de todo o género, para quê?, para ter uma chaminé e dessa chaminé fazer sair um pouco de fumo, logo disperso no vazio do espaço?»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 128

Nuvens e vento.


«Não ter mais consciência de existir, igual a uma pedra, a uma planta; não recordar sequer o próprio nome; viver por viver, sem saber que se vive, como os animais, como as plantas; sem afectos, nem desejos, nem recordações, nem pensamentos; sem nada que desse sentido e valor à própria vida. Deitado ali na erva, com as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, olhar no céu azul as brancas nuvens deslumbrantes, inchadas de sol; ouvir o vento que gerara nos castanheiros do bosque como que um fragor de mar, e na voz daquele vento e naquele fragor sentir, vinda de uma infinita distância, a vaidade de todas as coisas e o tédio angustioso da vida.
  Nuvens e vento.»


Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 127
«Todavia, é verdade que o corpo, quando o espírito se fixa numa dor profunda ou numa tenaz obstinação, deixa muitas vezes ficar assim o espírito fixado e, muito caladinho, sem lhe dizer nada, pôs-se a viver por sua conta, a gozar o bom ar e a comida sã.
   Assim aconteceu a Tommasino, que em breve se encontrou, quase por escárnio, enquanto o espírito mergulhava cada vez mais na melancolia e se subtilizava em desesperadas meditações, com um corpo bem nutrido e florescente, de abade.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 127
«Agora estava só, sem sequer uma criada em casa; só e devorado por uma ansiedade contínua, que lhe fazia cometer todas aquelas loucuras.
   Sabia-o, sim: tinha consciência das suas loucuras; cometia-as de propósito, para irritar as pessoas que, antes, quando era rico, tanto o tinham obsequiado e agora lhe voltavam as costas e riam dele. Todos, todos riam dele e dele fugiam; não havia um único homem que lhe quisesse prestar auxílio, que lhe dissesse: - Compadre, que anda a fazer?, venha cá: sabe trabalhar, sempre trabalhou honestamente; não faça mais loucuras; vamos lançar-nos os dois num bom empreendimento! - Nem um só.
    E a angústia, a roedura interior, naquele abandono, naquela solidão amarga e nua, cresciam e exasperavam-no cada vez mais.»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 115

Fogo à palha

« Não tendo mais ninguém a quem dar ordens, Simone Lampo adquirira o hábito de dar ordens a si próprio. E dava ordens de chicote na mão:
   -Simone, para aqui! Simone, para ali!
  Impunha-se de propósito, por despeito do seu estado, as tarefas mais ingratas. Fingia por vezes revoltar-se para se obrigar a obedecer, representando ao mesmo tempo os dois papéis da comédia. Dizia, por exemplo, enfurecido:
   - Não quero fazer isso!
   -Simone, dou-te uma carga de pau. Já te disse, recolhe aquele estrume! Ah, não?
   Pum! Aplicava em si mesmo uma valentíssima bofetada. E recolhia o estrume.»


Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 113

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

«Agora ser-te-á feita justiça.» E, então, começa o julgamento.



Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 176

«SEGUNDO a minha natureza, eu só posso cumprir uma ordem que ninguém me tenha dado. Nesta contradição, e apenas em contradição, é que eu posso viver. Mas qualquer uma, pois vivendo morre-se e morrendo vive-se.»



Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 165

domingo, 2 de outubro de 2011

« - Ah, tu és um rapazinho pequeno! - disse o estranho -, e porque é que abres tanto a boca quando falas?»




Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 123

«começarei lentamente a decompor-me,
      à luz pungente desse mar,
     poeta e cidadão esquecido.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 413

« e nos olhos mornos o desejo de morrer.»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 407

«Uma vitória fascista!
Escreva, escreva: eles (eles!) têm que saber que eu sei:


com a consciência de um pássaro ferido
que morre mansamente e não perdoa.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 405

corpo insepulto

Mary and Pablo, New York, 1951

fúria uterina

«que há muitas horas anda pelas ruas
com barba de doente
sobre as rugas da pobre juventude:»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 365
(...)

«perdido depois da morte, depois da morte -
é a geada das regiões do Pó,
que tu conheces, mas preferes ignorar.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 363
« - olheiras dos tempos das prímulas,»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 363

cabelos grisalhos

segunda-feira, 26 de setembro de 2011


«De um modo geral, descobri que numa desgraça, é uma grande prova de força uma pessoa ter que suportar continuamente a solidão. A solidão é mais forte que tudo e conduz-nos outra vez às pessoas. »



Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 40
«Ele olha lentamente para nós, desvia o olhar e olha para outro sítio, mas mantém-se sempre atento.»



Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 25
  «Enquanto ainda estamos a entrar no buraco negro da estação de Brescia, onde as pessoas gritam como se o chão queimasse, exortamo-nos uns aos outros seriamente a permanecer unidos, aconteça o que acontecer. Não começámos nós a viagem, com uma espécie de hostilidade?»


Franz Kafka. Os Aeroplanos Em Brescia E Outros Textos. Trad. Ana Maria Freire Damião. Edições «Livros do Brasil», Lisboa, 1988., p. 14/15

domingo, 25 de setembro de 2011

«E aquele sussurro contínuo do sonho ficara-lhe nos ouvidos...Ah, a febre! Tinha febre e tremia de frio.»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 69

Zemaitija - 1984

«Eis senão quando, um dia, não teve forças para sair do casebre abandonado em que instalara o seu abrigo.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 68

intempérie

«Ah, olha, olha a terra dava trigo!, era seu! E olhou à volta como que a defendê-lo: era seu!»

«Chegaram as primeiras águas, e o Giudé, ouvindo do seu abrigo nocturno marulhar a chuva, pensou que também naquele momento chovia sobre aquele seu pedaço de terra...Depois, com uma alegria que lhe punha lágrimas nos olhos, viu o grão germinar e surgir da terra húmida, tímidas, as primeiras espigas.Ah, olha, olha a terra dava trigo!, era seu! E olhou à volta como que a defendê-lo: era seu!»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 68

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

«Tu que, brutal, regressas,
não rejuvenescida, mas mesmo renascida,
fúria da natureza, dulcíssima,
matas-me, homem já morto
por uma série de dias miseráveis,
debruças-te para os meus abismos reabertos,
dás um perfume virgem ao meu eclipse,
antiga sensualidade, estilhaçada, piedade
apavorada, desejo de morte...
Perdi as forças:
já não sei o que é ser racional;
a minha vida decadente atola-se
na tua religiosa decadência,
desesperada por ver apenas
crueldade neste mundo, e raiva na minha alma.»





Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 255
«Tudo o que em ti vive - e por ti em mim treme -
continua a ser gemido sufocado
de quem não se conhece, de quem não se diz.
Mas será possível amar
sem saber o que isso significa?»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 251

«Não sei o que será
esta não-razão, esta pouca-razão:  »



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 249

Zitkala-Sa

Abulia

nome feminino
 
PATOLOGIA alteração anormal da vontade caracterizada pela incapacidade de tomar decisões e de agir;

abulia generalizada - abulia que incide sobre todas as acções e todos os pensamentos;
abulia localizada - abulia que incide sobre um movimento de um membro;
abulia sistematizada - abulia que incide sobre um acto particular ou um sistema de actos
 
 
(Do grego aboulía, «irresolução; falta de vontade»)

cindir

cortar; separar; dividir

«Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 239

terça-feira, 20 de setembro de 2011

«A casa está cheia dos seus frágeis
membros de menina, e do seu cansaço:
mesmo à noite, quando tudo dorme, lágrimas

amargas tudo cobrem; e, ao voltar para casa,
uma piedade antiga e tremenda aperta-me
tanto o coração que me apetece gritar, ou matar-me.»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 229
«o fascínio da morte - nada há,
neste mundo humano, que eu possa amar.
Tudo me faz sofrer: esta gente

servil que obedece a cada chamada
que aos seus senhores apraz fazer,
adoptando, sem suspeita, os mais infames

hábitos das vítimas predestinadas;
o cinzento das roupas pelas ruas cinzentas;
os gestos cinzentos em que parece gravada

a cumplicidade com o mal que a invade;
a sua agitação em redor de um bem-estar
ilusório, como um rebanho em redor de uma seara:

a sua regularidade de maré que alterna
multidões e desertos pelas ruas,
em fluxos e refluxos obcecados»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 221-223

medir tudo pela mesma bitola

KISS, 1963

E nós?

«E nós? Ah, eu sei que em cada erro há um fermento
de verdade: o olhar mais turvo e mais escravo
pode tornar-se livre e límpido, para acolher


a vida em redor, maravilhosa porque existe
não só para os instintos, mas também
para o pensamento, que assiste - vencido,»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 199

«                           ...São os filhos
da fome, os filhos da revolta,»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 199
«                 Porque havia esta
cansada recaída, esta escuridão.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 169


«                                  E eu,
na plateia de hoje, tenho uma serpente
a contorcer-se nas entranhas: e mil lágrimas
despontam em cada ponto do meu corpo,
dos olhos às pontas dos dedos,
da raiz dos cabelos até ao peito:
um choro desmedido, porque jorra
antes de ser compreendido, como se antecipasse
a dor.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 167

«As paredes do julgamento»

friúra

«À minha volta,
nas origens, só havia a Língua das Fraudes
instituídas, das ilusões devidas,
que as primeiras angústias
de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia.»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 161
«há uma astúcia demasiado ancestral naquelas veias...»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p. 153

revelar(-se)

« E sinto náusea, horror, ódio por este homem que não sou eu, que nunca fui eu; por esta forma morta, de que sou prisioneiro e de que não posso libertar-me. Forma carregada de deveres que não sinto meus, oprimida por cuidados que não me importam nada, alvo de uma consideração com que nada tenho a ver; forma que é estes deveres, estes cuidados, esta consideração, fora de mim, acima de mim; coisas vazias, coisas mortas que pesam em cima de mim, me sufocam, me esmagam, e não me deixam respirar.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 56

Só podemos portanto ver e conhecer o que de nós está morto.

«Só se conhece quem consegue ver a forma que deu a si próprio, ou que os outros lhe deram, ou a sorte, ou as circunstâncias, ou as condições em que nasceu. Mas quando a podemos ver é sinal de que a nossa vida não está já dentro dessa forma; porque, se estivesse, não a veríamos; vivê-la-íamos sem a ver e morreríamos todos os dias dentro dela, que é já por si uma morte, sem a conhecer. Só podemos portanto ver e conhecer o que de nós está morto. Conhecer-se é morrer.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 55
«Quem vive, se vive, não se vê; vive...Se alguém vê a sua própria vida é sinal de que já não a vive; suporta-a, arrasta-a. Arrasta-a como uma coisa morta. Porque toda a forma é uma morte.»



Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 55

      «Os olhos fecharam-se-me a pouco e pouco, sem eu dar por isso, e continuei talvez no sono o sonho daquela vida que não nascera. Digo talvez, porque, quando despertei, todo dorido e com a boca amarga, ácida e árida, já próximo da chegada, achei-me de repente numa disposição completamente diferente, com uma sensação atrozmente nauseante da vida, numa tétrica e plúmbea estupefacção, na qual os aspectos das coisas habituais me apareceram como que vazios de todo o sentido, e no entanto de uma gravidade cruel, insuportável.»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 53

Sabbath Eve in a Coal Celler, Ludlow Street

«(...) a recordação indistinta, não de actos, não de aspectos, mas quase de desejos dissipados antes de nascidos; juntamente com uma dor de não ser, angustiosa, vã, e no entanto cruel, aquela que sentem talvez as flores que não puderam desabrochar;»





Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 53
«Uma das minhas obrigações mais pesadas é não advertir o cansaço que me oprime, o peso enorme de todos os deveres que me são e me foram impostos, não ceder minimamente à necessidade de um pouco de distracção que a minha mente afadigada de tempos a tempos reclama. A única que posso conceder-me, quando me sinto excessivamente vencido pelo cansaço causado por um trabalho a que me entrego há muito tempo, é entregar-me a um novo trabalho.»




Luigi Pirandello. Contos Escolhidos. Prefácio do Prof. Ricardo Averini. Selecção e tradução de Carmen Gonzalez. Editorial Verbo, Lisboa, 1972.,p. 52

ensimesmado

absorto nos próprios pensamentos
«Há qualquer coisa que une quem conhece a angústia
a quem não a conhece: o homem tem desejos humildes.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., pgs 143

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

«quem nunca nasceu não morre nunca.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., pgs 139
«Sinais impuros de que por aqui passaram
velhos bêbados de Ponte, antigas
prostitutas, bandos de malandrins
despudorados: rastos humanos,
impuros que, humanamente infectos,
vêm falar-nos, violentos e pacíficos,
desses homens, dos seus baixos prazeres
inocentes, dos seus míseros desígnios.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., pgs 135-137

''rebordo de pedra esboroada''

Ser em cada culpa a inocência de tudo

domingo, 11 de setembro de 2011

In cella d’isolamento. 1972

Terra Di Lavoro

Já está próxima a Terra Di Lavoro,
algumas manadas de búfalas, alguns
amontoados de casas entre tomateiros,

heras e míseras estacas.
De vez em quando, um riacho, rasando
o solo, surge entre os ramos

dos ulmeiros carregados de vides, negro
como um esgoto. Dentro deste comboio
que segue a sua marcha, meio vazio, o gelo

outonal cobre a madeira triste,
as roupas molhadas: se lá fora
é o paraíso, aqui é o reino

dos mortos, passados de dor
em dor - sem suspeitarem de nada.
Aqui estão eles, nos bancos, nos corredores,

de queixo enterrado no peito,
costas apoiadas ao espaldar,
abocanhando um pedaço de pão

com unto, mastigando mal,
míseros e escuros como cães
devorando um naco roubado: e

se os olhares nos olhos, se lhes olhares
para as mãos, sobe-lhes à face um piedoso rubor,
em que inimiga se lhes descobre a alma.

Mas mesmo quem não come ou as suas histórias
não conta ao vizinho atento,
se o olhares, olha-te com o coração

nos olhos, aterrado, como se dissesse
que nada fez de mal,
que é inocente.

Uma mulher, de Fondi ou de Aversa, embala
uma criança adormecida num saco
de pele de cordeiro, e entretém-na

- se ela acorda do seu sono
dizendo palavras novas como o mundo -
com palavras tão cansadas como o mundo.

Se olhares para ela, não se mexe,
como animal que finge que está morto;
encolhe-se nas suas pobres

roupas e, olhando para o vazio, escuta
a voz que a cada instante lhe recorda
a pobreza como se fosse culpa sua.

Depois, recomeçando a embalar, cega, surda,
sem sequer reparar, suspira.
Junto da janela, está um jovem

de um rosto escuro como turfa,
envolto num mudo cheiro a redil,
hostil, como se não ousasse abrir

a porta, incomodar o vizinho.
Olha fixamente para a montanha, para o céu,
de mãos nos bolsos, bóina de malandro

sobre os olhos: não vê o forasteiro,
não vê nada, de gola levantada
pelo frio, ou por suspeito mistério

de delinquente, de cão abandonado.
A humidade reaviva os velhos
cheiros da madeira, untada e fumada,

misturando-os aos novos, de bordéis
cheios de fresca forragem humana.
E dos campos, agora roxos,

vem uma luz que revela almas,
não corpos, ao olhar que mais cru
do que a luz lhes descobre a fome,

a servidão, a solidão.
Almas que enchem o mundo,
como imagens fiéis e nuas,

da sua história, embora enraizadas
numa história que já não nos pertence.
Com uma vida de outros séculos, estão

vivos neste: e mostram-se no mundo
a quem do mundo tem conhecimento, rebanho
de quem nada mais conhece que miséria.

O ódio servil e a servil alegria foram
desde sempre a sua única lei:
mas nos seus olhos já podia ler-se

um sinal de diferente fome - escura
como a do pão e, como ela,
necessária. Uma sombra pura

que já começava a ter nome
de esperança: e o Sul,
como que reconquistado para o homem,

via a luz tímida do resgate
sobre os seus rebanhos resignados
de vivos. Mas para estas almas marcadas

pelo crepúsculo, para este arraial
de passageiros tímidos,
qualquer luz interior, qualquer acto

de consciência, parecem de repente coisa de ontem.
Hoje, para esta mulher que embala
o filho, para estes camponeses

negros que nada sabem, o inimigo
é quem morre para que se salve
noutras mães, noutros filhos,

a sua liberdade. É o seu inimigo
quem morre para que arda em outros servosm
outros camponeses, a sua sede,

ainda que bastarda, de justiça.
É seu inimigo quem rasga a bandeira
já vermelha de assassínios

e é seu unimigo quem, fiel,
a defende dos brancos assassinos.
É seu inimigo o patrão que espera

a sua rendição, e o camarada que deseja
que lutem numa fé que é já negação
da fé. É seu inimigo quem dá

graças a Deus pela reacção
do velho povo, e é seu inimigo
quem perdoa o sangue em nome

do novo povo. Assim, num dia de sangue,
se devolve o mundo
a um tempo que parecia já passado:

a luz que desaba sobre estas almas
é ainda a luz do velho sul,
a alma desta terra é a lama antiga.

Se medes no teu íntimo a desilusão no mundo,
sentes que ela não conduz
a uma nova aridez, mas a uma velha paixão.

E perdes-te nesta luz que, de repente,
roça, com a chuva, por torrões
de salva vermelha, casas imundas.

Perdes-te no velho paraíso
que aqui fora, nos relevos de lava,
dá rosto celeste, embora humano,

ao horizonte em que Nápoles
se esfuma na baba cinzenta,
aos temporais do sul que o sereno invadem,

um sobre os montes do Lácio, já remotos,
outro sobre esta terra entregue
às hortas sujas, aos pântanos,

às aldeias do tamanho de cidades.
A chuva e o sol misturam-se
numa alegria que talvez esteja guardada

-como lasca da outra história,
que já não nos pertence - no fundo do coração
destes pobres viajantes:

vivos, apenas vivos, no calor
que torna a vida maior que a história.
Tu pedes-me no paraíso interior

e mesmo a tua piedade é sua inimiga.




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., pgs 119 - 129

tugúrio

habitação rústica e pobre
«A hora é confusa, e nós como perdidos
a vivemos...», murmuravas-me, amargo,
desiludido com tudo o que tens tido



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 103
«Mas porquê obrigar-me a odiar, eu
que, quase grato ao mundo pela minha dor,

por ser diferente - e por isso odiado -
só sei amar, fiel e amargurado?»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 95/7
O ESCRAVO

Esforçamo-nos por apodrecer de pé. E isso nem sempre é fácil, acreditai. A vida muitas vezes tenta levar a melhor...Mas nós resistimos. E vamos diminuindo um pouco mais em cada...

ROGER

Dia?



Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 258
ROGER, para o Escravo

E a ti, quem é que te canta?

O ESCRAVO

Ninguém. Limito-me a morrer.

ROGER

Mas sem mim, sem o meu suor, sem as minhas lágrimas, sem o meu sangue, o que serias tu?

O ESCRAVO

Nada.




Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 257/8

sábado, 10 de setembro de 2011


«Entro e volto a fechar-me, mudo e morto como
um enforcado só com o seu corpo e o seu nome.»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 93

«era sangue a correr do peito ferido
de um animal ignaro, tirado do covil, perseguido...»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 91

«De repente, reparei: a luz da manhã foi a luz do entardecer.»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 89
«promete ao mundo -
reparas que estás a sonhar.»


Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 79
O ENVIADO

  Tudo o que de belo existe no mundo deve-se às máscaras.



Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 194
ROGER, com violência

Não te fui roubar para te transformares num licórnio ou numa águia de duas cabeças.


CHANTAL

Não gostas de licórnios?

ROGER

Nunca soube fazer amor com eles. (Acaricia-a.) Nem contigo, aliás.

CHANTAL

Queres tu dizer que não sei amar. Que te desaponto. Mas eu gosto de ti, Roger. E tu alugaste-me a troco de cem vivandeiras.

ROGER

Perdoa-me, Chantal. Fui obrigado a isso. Também eu te amo. Amo-te e não to sei dizer, e não sei cantar. E o último recurso é ainda cantar.



Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 163/4
O CHEFE DA POLÍCIA

E hoje, lamentas esses momentos?



IRMA, com ternura

Daria o meu reino pelo regresso de um deles! E tu bem sabes qual é. Preciso duma palavra de verdade, uma que seja, como quando à noite a gente observa as rugas que tem na cara, ou limpa a boca...


O CHEFE DA POLÍCIA

É tarde demais. (Pausa.) E além disso, não podíamos continuar toda a vida abraçados um ao outro. Enfim, não sabes em que é que eu pensava, secretamente, quando estava nos teus braços.


IRMA

Sei é que te amava...





Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 148

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

«Pode a vida ser boa,
quando se acorda para a fome? Que sentido tem Ser?»


John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 77

Alchimie musicale, 1932


«Esta gente teve uma guerra,
e a paz aqui compartilha do tédio do mar.»


John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 75

«as árvores são de dia nossas mães,
mas de noite lamentam-nos a inquietação.»


John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 65

« o inferno húmido»


«desatar o pequeno nó bravio de um coração»


John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 60

''uma brasa embebida de cinzas''

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

«Daqui a pouco, quando as trombetas soarem, desceremos os dois - eu montado em ti - para a glória e para a morte, sim, porque eu vou morrer. Trata-se, na verdade, duma autêntica descida ao túmulo.»



Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 73
A RAPARIGA

O pé esquerdo continua inchado!

O GENERAL

Claro. É o pé da partida. É o pé que bate e que aperreia. Como esse teu cascozinho, quando fazes as vénias.

A RAPARIGA

Quando faço o quê? Vamos, desabotoe-se.

O GENERAL

És um cavalo ou uma ignorante? Se és um cavalo, então sabes fazer as vénias. Ajuda-me. Puxa devagar. Vá, devagarinho, não és nenhum cavalo de lavoura.

A RAPARIGA

Faço o que devo fazer.

O GENERAL

Já estás a revoltar-te? Espera que eu esteja pronto. Quanto te meter o freio nos dentes...

A RAPARIGA

Oh, não! Isso não.

O GENERAL

Era o que faltava! Um general a ser chamado à ordem pelo seu próprio cavalo! Sim senhor. Terás o freio, as rédeas, os arreios, a cilha e só então, de botas, chibatada e chapéu, te saltarei em cima!

A RAPARIGA

É horrível, o freio. Fico com as gengivas a sangrar e os lábios todos gretados. E depois, babo sangue.


O GENERAL

Ah! a espuma cor de rosa e o crepitar do fogo! Que cavalgadas! Entre campos de centeio, no meio da luzerna, atravessando prados, caminhos poeirentos, por montes e vales, deitados ou de pé, da aurora ao sol- pôr, do sol-pôr...





Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 66-68

Back of Alicia, Camp Holz, Phoenicia, 1998

O JUIZ

Seria uma coisa horrível. Mas não, você não ousaria um tal volte-face! Não posso acreditar! Ouve bem o que eu te digo: continua a dissimular, a fingir, o mais que puderes e os meus nervos suportarem. Continua a negar, a negar sempre, para me obrigares a sofrer, a bater com os pés no chão, a escumar de raiva, a suar, a ganir de impaciência, a rastejar...Queres que rasteje?

O CARRASCO, para o Juiz

Rasteje!


O JUIZ

Como me sinto orgulhoso!


O CARRASCO, ameaçador

Rasteje!


      O Juiz, que estava de joelhos, deita-se de barriga
      para baixo e rasteja lentamente em direcção à Ladra.
      À medida que vai avançando a Ladra recua.

Isso. Continue.


O JUIZ, para a Ladra

Que me obrigues a rastejar depois de eu ser juiz, está bem, minha marota! Mas se te recusasses definitivamente ao teu papel, isso seria um crime, minha cabra!...

A LADRA, altiva

Chame-me minha senhora e seja mais educado!

O JUIZ

E terei o que pretendo?

A Ladra, galante

Roubar, não é fácil, sabe!...

O JUIZ

Mas eu pago! Pago o que for preciso, minha senhora. Se deixasse de poder separar o Bem do Mal, para que serviria eu, diga-me, para que serviria?

A LADRA

Isso pergunto eu a mim própria.




Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 52-54

O JUIZ

Como tu és belo! E quando vês uma nova vítima ainda ficas melhor. (Abre a boca do Carrasco.) Mostra-me essas presas! Terríveis. Brancas.


Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 47

Por isso me sinto morto.

A LADRA

Roubei pão, porque tinha fome.

O JUIZ, erguendo-se e largando o livro

Sublime! Função sublime! Tudo isso vai ser julgado por mim. Oh, minha querida filha, só tu me consegues reconciliar com o mundo. Juiz! Vou ser juiz de todos os teus actos! De mim vai depender a medida, o equilíbrio. O mundo é uma maçã para eu cortar ao meio: os bons, os maus. E tu, meu Deus, tu aceitas ser a parte má! (Para o público.) Debaixo dos vossos olhos: nada nas mãos, nada nos bolsos, explicar o podre e deitá-lo fora. Mas que ocupação dolorosa! Se todos os julgamentos fossem feitos a sério, custar-me-iam a vida! Por isso me sinto morto. Habito esta região da liberdade exacta. Rei dos Infernos, todos os que eu julgo, estão como eu: mortos. Esta está como eu: morta.
Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 46
O CARRASCO

(...) Posso fumar?



O JUIZ, num tom natural

Fuma, fuma. O cheiro do tabaco dá-me inspiração.
 
 
 
 
Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p. 42

terça-feira, 6 de setembro de 2011

«Porquê, ao ver aquela desbotada cor de sangue,

a minha consciência tão cegamente resiste
e se esconde, como obcecada
por um remorso que, no fundo, a entristece?»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 65
«Uma alma, em mim, não apenas minha,
uma alma pequena naquele imenso mundo,
crescia, revigorada pela alegria

de quem amava, não sendo embora amado.»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 57
«Longos passeios numa névoa quente,»



Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 55
«Irás pedir-me, tu, morto austero,
para renunciar a esta desesperada
paixão de estar no mundo?»




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., p 41
IRMA, cuidadosa



«Há sangue por toda a parte...

(...)
                                                                         Ouve-se, no mesmo instante,
                                                                   um grande grito de dor, lançado
                                                                   por uma mulher que não se vê.»

 
Jean Genet. A Varanda. Tradução de Armando da Silva Carvalho.Colecção Presença/Nova Série, Lisboa, 1976., p.20/1
Powered By Blogger