terça-feira, 15 de março de 2011

Noite de Inverno

«Um lobo vermelho a ser estrangulado por um anjo. As tuas pernas tilintam, a andar, como gelo azul, e um sorriso cheio de tristeza e arrogância empederniu-te o rosto, e a fonte empalidece com a volúpia da geada;»
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 91

Metamorfose Do Mal

(2ª versão)
 
(...)
 
          «Alguém te abandonou na encruzilhada, e tu olhas longamente para trás. Passos argênteos na sombra de macieiras raquíticas. Purpúreo, o fruto resplandece nos ramos negros, e na erva a serpente está na muda de pele. Oh, a escuridão! O suor que apareceu na fronte de gelo e os tristes sonhos no vinho, na taberna da aldeia sob traves negras de fumo. Tu, deserto ainda, que faz nascer por magia ilhas de rosas das nuvens castanhas do tabaco e lhes arranca do interior o grito selvagem de um grifo que caça, rodando falésias negras, por mares, tempestades e gelos. Tu, um metal verde e por dentro um rosto de fogo que quer sair para cantar, de cima do monte de ossadas, tempos sinistros e a queda flamejante do anjo. Oh, desespero que num grito mudo cai de joelhos!
           Um morto vem visitar-te. Do coração corre-lhe o sangue que ele próprio verteu, e no sobrolho negro
aninha-se um instante indizível. Encontro lúgrebe. Tu - uma lua de púrpura, quando o outro aparece na sombra verde da oliveira. Segue-o a noite eterna.»
  
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 87
Cai-lhe dos braços um corpo já morto,
 
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 79
Oh, que solitário fim o do vento da tarde!
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 59

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Toad in the Path – An Early Spring in Norfolk, 1888

DORN              Ainda outra coisa. Na obra de arte, tem de
                          haver sempre um pensamento claro e bem
                          definido. Temos de saber para que se está a
                         escrever. De outro modo, quando envereda-
                         mos por um caminho cheio de pitoresco mas
                         sem objectivo, perdemos o rumo e somos
                         aniquilados pelo nosso próprio talento.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.34
NINA             Estou só. E uma vez apenas, de cem em cem
                       anos, abro a minha boca para falar, e a minha
                       voz ressoa melancólica neste lugar ermo e de-
                       solado, e ninguém a ouve...



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.24
(...)
 
«À noite, no terraço, embriagámo-nos com vinho castanho.
Vermelho arde o pêssego na folhagem;
Doce sonata, alegre riso.
 
Belo é o silêncio da noite.
Na planície negra
Encontramo-nos com pastores e estrelas brancas.'»
 
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 57

domingo, 13 de março de 2011

Cântico Da Noite

I

Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.

Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.

Somos os viadantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las.


II

Que em mim se consume o último sofrimento,
Não vos detenho, forças negras do Mal!
Vós sois a estrada para o grande silêncio,
Por onde entramos em noites de cristal.

No velho hábito crepita o meu lume.
Paciência! Morre a estrela, os sonhos passam
Para aqueles reinos, para nós sem nome,
Que só os homens sem sonhos atravessam.


III

Coração negro, oh noite cerrada,
Quem espelha vossos sacros recantos,
Do vosso mal os derradeiros antros?
A nossa dor deixa a máscara gelada -

A nossa dor, o nosso prazer,
E esse riso de pedra da máscara sem dundo,
Que fez ruir as coisas deste mundo
E escapa a quem o queira conhecer.

Mas ele aí está, inimigo de fora,
Rindo das coisas por quem nos arriscamos,
Ensombrando as canções que cantamos
E deixando no escuro o que em nós chora.


IV

Tu és o vinho que embriaga o mundo,
E eu esvaio-me em sangue em danças de amor,
Coroando de flores a minha dor!
É a tua vontade, oh noite sem fundo!
Eu sou a harpa em ti a tanger,
E as últimas dores no meu coração
Cedem à tua negra canção,
Que me faz eterno e me apaga o ser.


V

Paz profunda, dorme o vento,
Nem um som de sinos traz.
Doce mãe de sofrimento -
É da morte a tua paz.
Deixa que sangrem para dentro,
Sara as feridas, estende a mão
De bálsamo e compaixão,
Doce mãe de sofrimento -


VI

Que o meu silêncio seja a tua canção!
De que te serve o ciciar do deserdado,
Que dos jardins da vida se afastou?
Deixa-te em mim ser o não nomeado -

Como se em mim te erguesses sem sonhar,
Como a ausência de toque nos sinos,
Como a noiva de mel da minha dor
E a papoila ébria dos meus sonhos.


VII

Ouvi flores nos abismos a morrer
E das fontes a queixa inebriada
E da boca dos sinos uma canção a sair,
Noite, e uma pergunta ciciada;
E, chaga de morte, um coração nascer
Do outro lado desta pobre jornada.


VIII

As trevas apagaram-se sem nada dizer,
Tornei-me sombra morta em pleno dia -
Saí então da casa do prazer
Para a noite me engolir.
Com o coração cheio de silêncio vi
Como ele é insensível ao tédio do dia -
E te oferece um sorriso de espinhos de ti,
Noite - até ao fim!


IX

Noite, muda porta do meu sofrimento,
Olha o meu sangue negro da chaga a correr,
E como já se inclina o cálice da dor!
Oh noite, é o momento!

Tu, noite, jardim do esquecimento
Do brilho órfão do mundo desta pobreza minha!
Murcha a coroa de espinhos, a folhagem da vinha.
Oh vem, supremo tempo!


X

Tempos houve em que o meu demónio ria,
E eu era uma luz em jardins soalheiros,
Tinha jogo e dança por companheiros
E o vinho do amor que me inebria.

Tempos houve em que o meu demónio chorava,
E eu era uma luz em jardins de crueldade,
Tinha por companheira a humildade
Que a casa da pobreza iluminava.

Hoje o meu demónio não ri nem chora,
Eu sou uma sombra num jardim perdido,
E o meu companheiro, pela morte enegrecido,
É o silêncio vazio de antes da aurora.


XI

Meu pobre sorriso que te cortejava,
Minha triste canção que no escuro se apagava.
Agora a jornada quer chegar ao fim.

Concede que eu entre na tua catedral
Como outrora um simples devoto, fiel,
Para mudo te adorar a ti.


XII

Tu és em funda meia-noite
Uma praia morta num mar de silêncio,
Uma praia morta: Esquecimento!
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
O céu em que foste estrela por vezes,
O céu em que já não florescem deuses.
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
Um não-concedido em ventre de amor,
O que nunca foi e não tem ser!
Tu és em funda meia-noite.



Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 25-35

sexta-feira, 11 de março de 2011

ARKADINA    (Recita uma passagem do Hamlet)
                          ''Meu filho, fizeste
                            voltar o meu olhar para dentro de mim.
                            E vejo nódoas tão raiadas e escuras
                            que nada lhes lavará a tinta.''

TREPLEV           (Do Hamlet:)
                            ''Porque vos haveis vós entregado ao vício
                             e procurado o amor nos abismos do crime?''


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.22

Towing the Reed, 1885

DORN        (Canta) ''Nunca digas que a tua juventude foi
                     perdida...''


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.19
NINA            É tão difícil de representar, a tua peça. Não
                      tem personagens vivas, nenhuma.

TREPLEV     Personagens vivas! A vida não tem que ser
                     reproduzida como é, nem como deveria ser.
                     É a vida que vemos em sonho que nós temos
                     de reproduzir.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.18/9
NINA       O meu pai e a mulher não querem nunca dei-
                  xar-me vir. Dizem que há aqui um ambiente
                  de boémia...Receiam que eu queira ser actriz.
                   Mas eu estou sempre a desejar tanto, tanto,
                   vir para a beira do lago...como se fosse uma
                  gaivota. E o meu coração está tão cheio, tão
                  cheio de ti....(Olha em volta)

TREPLEV  Estamos completamente sós.

NINA         Pareceu-me ouvir alguém.

TREPLEV   Ninguém. (Beijam-se)

NINA          Esta árvore, o que é?

TREPLEV   É um ulmeiro.

NINA          Tão sombrio, porquê?

TREPLEV    Está a anoitecer. Todas as coisas vão ficando
                     sombrias. Não te vás embora tão cedo, peço-
                     -te.

NINA            Não posso ficar mais tempo.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.17

quarta-feira, 9 de março de 2011

POEMA SIMPLES

Quando, à nossa volta, já tudo escurece, e lilás se rasga o céu, então
                                                            [gostaria de ver os teus olhos.
Quando te olho, só vejo teus olhos, e gostaria de beijar tuas mãos,
                                                                                [com audácia.
Gostaria de beijar-te, e quando estou ao Teu lado, sei que não
                                                                    [beijarei tuas mãos.


József Attila in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 179

VELA INCLINADA

 Estala, vira-se o leme, a longa
       verga,
ceifa quase a onda,
        e a barca larga!

Mastro e vela, vê,
lança-se quando
vitoriosa? Quando se
      inclina ao mais profundo.



Illyés Gyula in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 175
E eu escutava o ruído das suas asas.

Ezequiel, 1, 24

terça-feira, 8 de março de 2011

Entre flores no chão deitar-nos e
queres, queres brincar à morte?


Kosztolányi Dezső in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 154

The Garden Party, ca. 1905

ENTRE CAIXÃO E BERÇO

Mãe, quando, um dia, eu voltar de vez,
fico aqui contigo para sempre.
Quando abraçar a velha soleira
e beijar as santas árvores de antigamente
e, cansado, em lágrimas tremendo,
teus olhos olhar.

Espera, então, por mim, que uma noite virei.

Será Outono, sei, luz púrpura ziguezagueia,
fulva luz noctura.
A grande porta de ferro, troando, há-de fechar-se de tal modo,
que a velha casa, fria, tremerá
de medo.

Mas tu não receies, vem ao meu encontro, suavemente,
por mais medonho e branco que seja,
aperta-me nos teus braços, não busques o coração,
que inunda o sangue feio e preto,
olha só para os meus olhos dormentes e baços,
acaricia-me a cabeça, em silêncio.
Eu nem sequer te contarei como vivi
entre beijos ulcerados, na noite clara,
olhar-te-ei somente, como no passado,
então, compreenderei que tu és o início
e tu és o fim.
Mudo, deitar-me-ei na grande cama branca,
eu, velho bebé que falar não sabe,
e do coração aos lábios sobe, vibrante,
a ida melancolia da minha vida.
Tu escutas, como quem vela junto a um berço,
eu devaneio, sorrindo, triste,
e, hesitando entre caixão e berço,
fias minha branca coroa de flores.

Passou quase a noite, em repetidos suspiros;
curando, franze teu abençoado sorriso;
e, em lágrimas, com flores e uma canção muito antiga,
cantas a morte do teu pobre filho.


1907



Kosztolányi Dezső in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 153
        « A chuva transformava-se em brisa. Ouviu: «O perdão dos pecados e a ressurreição da carne. Amén.» Isso era cá dentro, onde as mulheres rezavam o fim do rosário. Levantavam-se; fechavam-se os pássaros; trancavam a porta; apagavam a luz.
         Só permanecia a luz da noite, o ciciar da chuva como um murmúrio de grilos...
         -Porque é que não foste rezar o rosário? Estamos na novena pelo teu avô.
         Lá estava a sua mãe, na ombreira da porta, de vela na mão. A sua sombra, que se estendia até ao tecto, longa, desdobrada. E as vigas do tecto desenvolviam-se em pedaços, despedaçada.
          -Sinto-me triste - disse.
          Então, ela voltou-se. Apagou a chama da vela. Fechou a porta e abriu os seus soluços que continuaram a ouvir-se, confundindo-se com a chuva.
          O refúgio da igreja deu as horas, uma a seguir à outra, como se o tempo estivesse encolhido.»




Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 31
«Os teus lábios estavam molhados como se o orvalho os houvesse beijado.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 28

A Ilha Que Desaparecia

Presumimos um dia radicar-nos
Para sempre entre as suas colinas azuis
E a costa árida onde passámos a noite
De desespero em oração e vigília,
Mas uma vez colhida a lenha que o mar trouxe,
Construída uma lareira, e pendurado
O nosso caldeirão como um firmamento,
Quebrou-se a ilha sob os nossos pés como uma onda.
A terra que nos sustinha parecia
Só ter firmeza quando a abraçávamos
In extremis. Tudo o que lá sucedeu,
Creio, foi visão.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.399
Dia e noite as minhas lágrimas foram o meu pão.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.377

Untitled (Billiard game), c. 1910,

Clareiras

Em memória de M.K.H., 1911-1984


Ela ensinou-me o que o seu tio lhe ensinara:
Como o maior carvão rachava facilmente
Se o ângulo entre o veio e o martelo fosse o certo.

O som dessa pancada aliciante e segura,
O seu eco agregado e obliterado,
Ensinou-me o golpe certeiro, e a distensão,

Ensinou-me, entre o maço e o cepo, a enfrentar
Consequências. Ensina-me agora a escutar,
A acertar no veio entre as linhas a negro.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.365

A Lanterna do Espinheiro

Arde fora do tempo o invernal pilrito,
pomo entre espinhos, pequena luz para pequena
gente, desta só esperando que não deixe
extinguir-se a mecha do respeito por si própria,
não tendo de a cegar com um clarão.

Mas quando o hálito se condensa na invernia
toma às vezes a forma errante de Diógenes
com a sua lanterna, em busca de um homem justo;
e assim nos vemos observando de trás
à altura dos olhos, e estremecemos
perante pele e caroço tão coesos,
espinho de sangue que esperamos nos teste e liberte,
pomo maduro e picado que nos sonda
e depois se afasta.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.351

segunda-feira, 7 de março de 2011

(...)

«Tu conheces o fio da lâmina, o sabor do sangue,
           os minutos de tensão,
os espasmos da traqueia lacerada, e a luta
           e terror de sufocar.
Ajuda-me! Tu já sabes tudo, tudo passaste,
           adulto sábio! Tu sabes bem
quanto sofrimento suporta o homem, que nem é muito
           para a bondade de Deus,
e o que vale a vida...E, talvez, que nem é
uma coisa assim tão grande a morte.»



Verão de 1937



Babits Mihály in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 150

PERGUNTAS DA NOITE

Quando a noite, esta manta branda,
negra, lisa manta de veludo
que estende uma gigantesca ama,
lentamente cobre a terra resguardada,
e tão cuidadosamente, que cada fio de erva
fique, direito, sob doce véu
e não curve a pétala das flores
e as duplas asas subtis das bordadas borboletas
não percam o esmalte de arco-íris
e assim descansem na sombra velada,
leve, liso, aveludado véu,
esse véu de quem nem sentem o peso:
então, por onde andes, no vasto mundo,
ou estejas em casa, sentado no quarto escuro e triste,
ou vejas, no café, admirado,
que acendem, um após outro, candeeiros de gás de luz solar;
ou, cansado, com teu cão na falda da colina
observes a preguiçosa lua entre as frondas;
ou pela estrada, que levantou pó,
teu cocheiro ensonado, cabeceando, te conduza;
ou tenhas vertigens no chão vacilante
do navio, ou no assento do comboio;
ou, errando através de uma cidade estrangeira,
pares nas esquinas para admirar, tranquilo,
o longo fio de ruas longínquas,
a dupla linha de ruas em chamas;
ou até em cidade aquática, no Riva,
onde um espelho opalino, estragado, pontilha chamas,
tenhas saudades do passado longínquo regressando,
cuja recordação docemente te tortura,
tempo ido que, qual imagem da
lâmpada encantada, está presente, mas não existe,
cuja recordação nunca pode ser fria,
cuja recordação é um peso, mas também um tesouro;
aí, tua espada cabeça de recordações
no chão de mármore possas inclinar:
entre puras belezas e em prazeres andando,
irás só ainda pensar, cobarde:
toda esta beleza para quê?
irás ainda pensar, órfão:
para quê a água de seda, o mármore multicolor?
para quê a noite, alada manta?
porquê as colinas e porquê as frondas,
e o mar, que ninguém semeia?
para quê os fluxos, para quê os refluxos,
e as nuvens, essas tristes Danaides,
e o sol, essa pedra de Sísifo escaldante?
para quê as recordações, para quê os passados?
porquê as lâmpadas e porquê as luas?
porque é que o tempo não mata o seu fim?
Ou toma exemplo do minúsculo fio de erva:
porque cresce a erva, se há-de secar?
porque seca, se cresce de novo?


Primavera de 1909



Babits Mihály in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 144/5
«No alto, vermelho, heróico, nupcial
leito, de revoluções virgens éramos.
Mas, sob a pele, queima, ardente, já nosso
sangue, triste e pesado até aqui.
Faz silêncio, qual se não tremêssemos,
e precipitamo-nos prà revolução.»


Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 135
«Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o Universo dos astros, são parentes desesperos e secretas consolações. O nosso destino (ao contrário do inferno de Swedenborg e do inferno da mitologia tibetana)não é extraordinário por ser irreal; é extraordinário por ser irreversível e de ferro. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real. Eu, desgraçadamente, sou Borges.»


Borges. Novas Inquirições, pg. 218.
Esta é a utilidade da memória:
Libertação – não diminuição do amor mas crescimento
Do amor para além do desejo, e assim libertação
Do futuro e do passado.


Thomas Stearns Eliot

da enciclopédia chinesa que se intitula: Empório celestial de conhecimentos benévolos

«Nas suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos (g) cães soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas.»



O trecho é citado por Foucault como fonte de inspiração na abertura de As Palavras e as Coisas

Peter H. Emerson: ''Gathering Water Lillies'' (ca. 1880s)

«A serpente, Ouroboros, foi adorada por várias seitas dos ofitas. A criatura enrolada, que se assemelha a um dragão e morde sua própria cauda, forma um círculo, o símbolo do ciclo infindável das metamorfoses. O bem e o mal unem-se assim dentro de Ouroboros.»


Seligmann. História da Magia. pg. 93.
«Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência Humana.».»



William Blake. Complete Writings, pg. 149.

«Os românticos, como afirma Eduardo Lourenço (1999), não viajam realmente em direcção ao passado, antes trazem o passado para o presente, fazendo da palavra Saudade, e do sentimento que ela exprime, de sofrimento e de doçura, a sua verdadeira musa.»




Delfina de Araújo Madureira. Sehnsucht e Saudade Para uma história comparada do pathos. Universidade do Minho, 2008.

O sublime


«Para Frost, e segundo a sugestão de Most, para a maior parte de nós, o sublime existe só no modo de desgosto, pesar, de nostalgia, de uma saudade de alguma coisa que de facto nunca esteve presente, de uma falta. Este sublime é uma sombra, cuja frieza imediata nós sentimos, mas que não forma qualquer corpo, uma cicatriz cujas margens nós tocamos, de uma ferida que nunca recebemos.»


Delfina de Araújo Madureira. Sehnsucht e Saudade Para uma história comparada do pathos. Universidade do Minho, 2008.

domingo, 6 de março de 2011

(...)

púrpura sobre o Diabo antigo.
Crucifixo, duas velas, dor.
Grande e sem fim triste torneio.
e o vinho espalha-se na mesa.



Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 120

Young Housewife, Bethnal Green 1937

(...)

Um rio de peregrinos respondendo ao sino
Subia os degraus enquanto eu os descia
Em direcção à sombra calma e verde escura
De um carvalho. Sombras da quinta sabina
Nos canteiros do Purgatório de S. Patrício.
Fim de Verão, extensões rurais, nem uma aragem:
Distenda-se a toga para o vinho e poesia
Até que Febo regresse e destrone a estrela da manhã.
Ouvindo elevar-se, arrastando, um hino a Maria
Senti um velho tormento com que os sacos de grão
E as hastes arqueadas de enxadas e forquilhas
Em tempos troçavam de mim, virgem, com os meus longos
Jejuns e sedes, sombrios festins nocturnos,
Percorrendo os celeiros de palavras como seios.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.297
''A menos que aqui estejas para um último olhar.''


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.289
''Sou mais velho do que eras quando partiste''


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.289
«Se os tempos eram duros, também eu o seria.»


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.279

II

Tinha a certeza de o conhecer. O tempo que eu passara
obsessivamente naquele quarto lá em cima a aproximar-me dele:
em cada hiato absorto, fumando um cigarro atrás de outro e
olhando as águas-furtadas para a encosta coberta de erva, eu
estava a abrir-me. Ele dependia de mim enquanto eu pendia de um
passo traduzido como um miúdo desafiado a aventurar-se por um
ramo de amieiro sobre o remoinho. Pequeno eu sonhador nos
ramos. Medos experimentados em sonhos, aos quais eu era dado, e
que interrogava agora:

-Foi a ti que após subir as escadas a correr encontrei afogado
sob a água corrente na banheira?
-Foi a ti que a máquina ceifeira cortou como uma lebre na
rígida moldura da ceifa?
-Cujas pequenas vestes ensanguentadas enterrámos no
jardim?
-Eras tu que jazias acordado no escuro só com a parede a
separar-te dos cascos inquietos?

Após ousar estas invocações, retrocedi até ao portão para o seguir.
E o meu passo furtivo era já espontâneo, como se assim me
tornasse eu próprio. Recordei-me de que tinha sido in-vestido
nestas funções.




Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.267
«Ah, é uma maneira de viver sem sentido, distante.
Estou aqui consigo, perfeitamente esgotado e a pensar
- a todo o momento - numa história, na minha história
inacabada que me espera. Estou agora a ver, uma nuvem,
aquela, ali, que me parece um piano enorme. E penso
logo que não posso esquecer-me de a incluir numa
história - uma nuvem que passou, flutuante, e que parecia
um piano enorme. Sinto, em redor, o perfume do heliotrópio.
E, num ápice, anoto no meu pensamento: perfume doce, do
tom da viuvez, lembrar e usar numa descrição de noite estival.»



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992.

sábado, 5 de março de 2011

«Sentado, batem ondas, vento frio,
nas águas da Babilónia, sombrias.»


Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 118

O POETA DO HORTOBÁGY

Era um rapaz de olhos grandes, sangue
cumano, ferido de tristes quereres:
a manada guardava e corria
através do célebre Hortobágy húngaro.

Crepúsculos e miragens cem vezes
a alma lhe tomaram; se uma flor,
porém, no coração lhe crescia,
nele pastava manada de povos.

Mil vezes pensou em maravilhas,
pensou na morte, em vinho, mulheres;
em qualquer outro sítio do mundo
teriam feito dele cantor sacro.

Mas se olhava os companheiros, sujos,
tolos, calças largas, e a manada,
logo enterrava sua canção:
e praguejava ou assobiava.



Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 106

NÚPCIAS DE FALCÕES NA FOLHAGEM

Partimos. Vamos para o Outono,
uivando, chorando, perseguindo-nos,
dois falcões de asas desfalecidas.

Traz novos ladrões consigo Verão,
batem asas novas de falcão,
assanham-se combates de beijos.

Voamos do Verão, acossados voamos,
paramos, algures, no Outono,
penas eriçadas, com amor.

Estas as nossas últimas núpcias:
laceramos a carne um ao outro
e caímos nas folhas de Outono.



Ady Endre in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 105

quarta-feira, 2 de março de 2011

Comala

«Eu imaginava ver tudo aquilo através das memórias da minha mãe; da sua nostalgia, entre retalhos de suspiros. Ela viveu sempre a suspirar por Comala, pelo regresso; mas nunca voltou. Agora venho eu em vez dela. Trago os olhos com que ela viu estas coisas, porque sempre me deu os seus olhos para ver: «Passado o desfiladeiros de Los Colimotes, há a vista mais bonita de uma planície verde, um pouco amarela por causa do milho maduro. Daí vê-se Comala, branqueando a terra, iluminando-a durante a noite.» E a sua voz era sussurrada, quase apagada, como se falasse consigo mesma...A minha mãe.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 20
«- Não lhe vás pedir nada. Exige-lhe o que nos pertence. O que me devia ter dado e nunca deu...O esquecimento a que nos votou, meu filho, cobra-lho caro.
   -Assim farei, mãe.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 19

Pedra de Delfos

A devolver ao santuário numa madrugada
em que o mar alargue para o sul
as suas distantes searas de sol
e eu faça de novo uma oferenda matinal:
para que eu possa escapar ao miasma de sangue derramado,
governar a língua, temer a hybris, temer a divindade
até que ela fale na minha boca enfim liberta.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.255

de Tempo de Conservação

Lasca de Granito



Pedra denteada. Aberdeen do espírito.

Dizendo Deitarei na taça uma pérola
feri-me na mão, apertando com força
esta lasca tirada da Torre Martello
de Joyce, este brilhante manchado e insolúvel

que guardo mas com o qual pouco tenho em comum -
espécie de faca de circuncisão pré-histórica,
traço calvinista no meu cerne deferente.
O granito é áspero, salgado, punitivo

e exigente. Vinde a mim, diz ele,
todos os que estais cansados e oprimidos,
e não vos aliviarei. E acrescenta, Agarrai
o momento. E ainda, Pegai-me ou largai-me.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.251

Man Manet

VIII

Relâmpagos na lenha: chuva em grossas gotas
Quentes como o corpo e túrgidas de presságio
Espirrando escuras no ferro do machado.
Esta manhã quando uma gralha saltitante
Inspeccionou um cavalo que dormia junto à lenha
Lembrei-me do orvalho sobre armadura e cadáveres.
Que iria eu encontrar na estrada, ensanguentado?
Onde, na pilha de lenha, se ocultava o sapo?
O que se espoja nesta escura calma das searas?
Recordas-te daquela pensão nas Landes
Em que a velha embalava, embalava, embalava
Um mongolóide, ao som de cançõezinhas?
Vem a mim depressa, estou cá em cima, e tremo.
Minha, toda tu, lenha sob o relâmpago.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.213

terça-feira, 1 de março de 2011

«Cada novo verso como a charrua no regresso.»


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.203
«Incompreensível, p'ra ele,
Essa minha outra vida.
Por vezes, num banco alto,
Ocupado com a faca
Num pedaço de tabaco,
Sem os olhos se encontrarem,
Numa pausa após um trago
Mencionava a poesia»

(...)


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.187

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Tardiamente

Alguém me disse que estava velha. Tardiamente compreendo. E a única chama que me fez envelhecer foi a dor. A dor de perder alguém. No calendário uma mancha de sangue assinala os dias já convertidos em mais de um ano passado. Batalho com os meus pensamentos, nas longas noites, nas madrugadas frias e silenciosas. Estamos sós, sim, de facto, sós. Não há ninguém para além da nossa vigília. A lanterna alimenta o desassossego. Deito-me e relembro. Relembro a náusea das paredes excessivamente brancas. Ninguém compreenderá. Já não o esperas. Lês à luz da cabeceira, tentando em vão que a viagem saceie o travo amargo. Tê-lo-ás sempre e, terás de viver com isso. Terás de viver, sabendo que, algures nesse dia morreram as tuas ingénuas esperanças. O céu é o teu rosto que as forças que guiam o alto, afastaram das minhas mãos. Já não há lágrimas, elas, tornaram-se o teu Outro, que observa, indiferente, as ruínas, o berço inumano. Dos ramos da amendoeira, bebo a primeva e longínqua presença. A taça erguida ao alto, chama pela minha sede. No sonho vagueio e escureço. Se me ouves o pranto ferido, acolhe-me no teu leito, que perdi as forças para viver nesta ilha, onde tudo é vago rumor.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

FALA COM AS ÁRVORES O TRISTE VENTO DE OUTONO...

Fala com as árvores o triste vento
de Outono, fala baixo, não se ouve;
que lhes dirá? Ao seu discurso, movem
as árvores, sonhando, a cabeça.
É a meio da tarde; confortável,
estendo-me na largura do sofá...
A cabeça deitada no meu peito,
dorme fundo, calma, minha mulher.

Manso, numa mão, ondeia o seio
da minha doce e bela adormecida;
na outra, meu livro de orações: a
história das lutas de libertação.
Quais cometas, cavalgam suas letras
através da minha alma exaltada...
A cabeça deitada no meu peito,
dorme fundo, calma, minha mulher.

Ouro te seduz e o chicote bate,
se lutas pelo tirano, povo escravo;
e a liberdade? Um só sorriso,
e quem crê corre ao campo da batalha,
e aceita, como flor de moça linda,
golpes, morte, perdidamente alegre...
A cabeça deitada no meu peito,
dorme fundo, calma, minha mulher.

Quantas vidas queridas por ti caíram
já, ó santa liberdade! E qual
a utilidade? Mas ver-se-á
tua vitória na luta final,
e teus mortos também irás vingar,
e tua vingança será terrível!...
A cabeça deitada no meu peito,
dorme fundo, calma, minha mulher.


Koltó, Setembro de 1847



Sándor Petőfi in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 92
«Trago no coração chama, celeste
chama, que as gotas do sangue aquece,»

...

«Oh, pudesse dizê-lo, não só com
palavras vazias, mas também obras.»



Sándor Petőfi in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 86

AQUI ESTOU, NO MEIO DA PLANURA...

Aqui estou, no meio da planura,
como estátua, imóvel.
Cobre o deserto silêncio sepulcral,
qual sudário cobre o morto.
Ao longe, um homem ceifa;
pára agora mesmo,
e afia a foice...
A lâmina não se ouve,
vejo somente como a mão se move.
E olha, agora,
comigo se admira, mas eu nem pestanejo.
Que pensará que eu penso acerca dele?


Szalkszentmárton, antes de 10 de Março de 1846




Sándor Petőfi in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 84

Tippi Hedren, Hollywood, 1962


Em redor daquela ilha e de seu imo,
na parte baixa onde bate a onda,
encontras juncos sobre o mole limo.


Dante. Purgatório, I, 100-103

Acto de União

I

Esta noite, um primeiro abalo, latejante
Como se a chuva no pântano engrossasse
Pr'a fluir e alargar: uma explosão,
Um rasgão abrindo o leito vegetal.
O teu dorso é a costa leste, linha firme,
Braços e pernas lançadas para lá
Do teu relevo gradual. Acaricio
A província arquejante onde cresceu o nosso passado.
Sou o reino que por detrás de ti se eleva,
Que não queiras seduzir nem ignorar.
A conquista é uma mentira. Envelheço
Concedendo-te uma meia independência,
Território em que agora o meu legado
Tem o seu ponto culminante, inexorável.

II

E permaneço no aprumo imperial
Do macho - deixando-te com o sofrimento,
A colónia a ser dilacerada,
O ariete, e a explosão vinda de dentro.
A quinta coluna que do acto nasceu
É obstinada e tem o olhar unilateral.
O seu coração ao lado do teu
É um tambor chamando p'rá batalha. E já
Os pequenos punhos, parasitas, ignaros,
Te batem às fronteiras, me ameaçam
Por sobre a água. Nenhum tratado
Poderá o teu corpo marcado sarar,
Estriado, em carne viva com a dor
Que te faz solo rasgado, de novo.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.143
«Dia a dia, apercebia-me de que não conseguia afastar de mim os pensamentos pecaminosos. Até que chegou o momento em que desejei também o pecado.»


Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.14
«Lembro-me de que o seu corpo, a sua atitude e os movimentos resultavam por vezes rudes. Não que ela fosse tão rude. Parecia, sobretudo, que se recolhera no interior do seu corpo, que o entregara a si mesmo e ao seu próprio ritmo pausado, indiferente a alguma ordem do cérebro, e que esquecera o mundo exterior. Foi esse mesmo esquecimento do mundo que eu vi na atitude e nos movimentos ao calçar as meias. Mas nisso não era rude, tinha gestos fluidos, graciosos, sedutores; uma sedução que não é seios e nádegas e pernas, mas sim o convite para o mundo dentro do corpo.»


Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.12
«Sobre a memória do seu rosto de então foram-se depositando, com o passar dos anos, os seus outros rostos. Quando a tenho diante dos olhos como ela era então, vejo-a sem rosto. Tenho de o reconstruir. Testa alta, maxilares salientes, olhos azul-pálidos, lábios grossos bem desenhados e sem sinuosidades, queixo enérgico. Um rosto largo, áspero, de uma mulher adulta. Sei que era bonito. Mas não consigo lembrar-me da sua beleza.»


Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.9
«Por cima do sofá estava estendida uma manta de veludo vermelho. A cozinha não tinha janelas. A luz passava pelos vidros da porta que abria para a varanda. Não muita luz; a cozinha só era iluminada quando a porta estava aberta. Ouvia-se então o chiar da serra na oficina do pátio e cheirava a madeira.»


Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.8/9
«(...) O dia está luminoso, o sol brilha, o ar reverba, e a estrada cintila de calor. As paredes laterais do prédio fazem-no parecer recortado, incompleto. Aquelas poderiam ser as paredes de qualquer prédio. A casa não é ali mais sombria do que na Rua da Estação. Mas as janelas estão cobertas de pó, não deixam adivinhar nada dentro das divisões, nem sequer as cortinas. A casa é cega.
       Estaciono junto à berma e atravesso a estrada na direcção da entrada. Não se vê ninguém, não se ouve nada, nem tão-pouco o ruído longínquo de um motor, nem o vento, nem um pássaro. O mundo está morto. Subo as escadas e toca a campainha.
        Mas não abro a porta. Acordo e sei apenas que atingi a campainha e a toquei. Depois vem-me à memória todo o sonho, e que também já o havia sonhado muitas vezes antes.»



Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.6/7
«Endireitou-se e viu que eu chorava. - Miúdo - disse, surpreendida -, miúdo. - Abraçou-me. Eu era pouco mais alto do que ela, senti os seus seios no meu peito, no aperto do braço cheirei o meu mau hálito e o suor fresco dela e não soube o que fazer com os braços. Parei de chorar.»


Bernhard Schlink. O Leitor. Traduzido do alemão por Fátima Freire de Andrade. Edições ASA., p.4

Clementina in Classical dress (1822-65)

«Sempre a caminho, mas sempre aquém de avistar terra.»



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.51

Colmeiro

Há muito apalavrado, apareceu numa certa
Manhã, de surpresa, e na bicicleta
Uma escada leve e um saco de navalhas.
Olhou o velho colmo, testou as traves,

Abriu e ajeitou feixes de palha.
Depois, molhos de varas, de aveleira e salgueiro:
Sopesadas, torcidas - não fossem estalar.
Pareceu gastar toda a manhã a prepara-se:

Firmou então a escada, e com facas bem afiadas
Cortou a palha e aguçou a ponta das varas
Que, dobradas, eram o agrafo de espigões brancos
Com que fixava o seu mundo, em punhados.

Curvados vários dias sobre as vigas
Aparou e poliu extremidades, tudo atou
Numa colmeia em declive, uma resteva,
E a todos espantou com o seu toque de Midas.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.49

sábado, 26 de fevereiro de 2011

QUEM SOU EU?
AH, NÃO, NÃO DIGO...

Quem sou eu? Ah, não, não digo;
se digo, sou conhecido.
E, se me conhecem mesmo,
vou à forca, pelo menos.

Não tenho machado à mão,
se tiver de ser brigão;
pasta longe meu cavalo,
nem fugir, se necessário.

E para quê tanta pressa,
quando me pesa a cabeça?
E não só, e o coração -
vinho e mulher falsos são.

Se, ao largar a rameira,
cozo eu a bebedeira,
e me vão alferes ao pêlo -
quem eu sou hei-de dizê-lo!


Bratislava, Maio de 1843


Sándor Petőfi in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 77

''Não importa o que eu penso. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos.''

Defeito

Boa, como a clemência, formosa és, qual o ouro;
tens um defeito, Nellike: não seres minha.

1838


Mihály Vörösmarty in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 69

Amor Feliz [Canção 35]

Davam já cortes finais,
na mata, lestos ceifeiros;
ao comprido, colossais,
caíam sombras, à beira;
parámos de vez em quando
na erva alta do prado;
e a ponte atravessando
do rio ao nosso lado,
olhar à água desceu:
nela, em cima, o céu,
também dentro; ardeu logo,
nos corações, santo fogo.


Kisfaludi Sándor  in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 55

A Apanha das Amoras

Para Philip Hobsbaum


Por fins de Agosto, com chuva forte e sol
Toda uma semana, amadureciam as amoras.
A princípio, uma só, luzidio coágulo púrpura
Entre outras, rubras, verdes, duras como um nó.
Comia-se a primeira e era carnuda e doce
Como vinho fermentado: era o sangue do Verão
Tingindo-nos a língua com o desejo de as
Colher. Escureciam então as vermelhas, e essa fome
Levava-nos com canecas, latas, boiões
Onde as silvas arranhavam e erva húmida
Polia as botas. Por prados, lameiros e searas
Seguíamos na apanha até enchermos as vasilhas,
Até que o seu fundo tilintante se cobria
Com as verdes, e por cima borrões negros reluziam
Como um prato de olhos. Picados de espinhos
Ardiam-nos nas mãos, tão pegajosas
Como as do Barba-Azul.

Guardávamos as bagas frescas no curral.
Mas mal a dorna enchia lhe víamos uma penugem,
Um fungo cinza-rato devorando-nos o tesouro.
Também o sumo estava pestilento. Mal o colhíamos,
Fermentava o fruto, azedava a doce carne.
Apetecia-me chorar. Não era justo
Que tanto deleite fosse agora podridão.
Ano a ano esperava conservá-las,
Sabendo bem que não.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.41

Pre-Raphaelite Study October, 1870

A Lúcia

Porque, Lúcia, me desprezas e rejeitas?
Nunca, lembro, a rapariga alguma
(assim vivo, e passo bem) houve que eu não contentasse;
se, porventura, recusas acreditar,
posso provar-to com testemunhos de peso.


Janus Pannonius na Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p.31

A AGAPITO

Envia-me, Agapito, os teus livros;
envia, digo; não serei crítico, mas leitor.


Janus Pannonius in Antologia da poesia húngara. Selecção e tradução Ernesto Rodrigues. Âncora Rodrigues, Lisboa, 2002 ., p. 28

Da Arte

A arte deu-me vigor; atinge-se a perfeição das coisas,
quando a força no engenho se apoia.

Janus Pannonius (1434-1472) in Antologia da poesia húngara. Selecção e tradução Ernesto Rodrigues. Âncora Rodrigues, Lisboa, 2002

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

The Sleeper

At midnight, in the month of June,
I stand beneath the mystic moon.
An opiate vapor, dewy, dim,
Exhales from out her golden rim,
And softly dripping, drop by drop,
Upon the quiet mountain top,
Steals drowsily and musically
Into the universal valley.
The rosemary nods upon the grave;
The lily lolls upon the wave;
Wrapping the fog about its breast,
The ruin moulders into rest;
Looking like Lethe, see! the lake
A conscious slumber seems to take,
And would not, for the world, awake.
All Beauty sleeps!—and lo! where lies
Irene, with her Destinies!

Oh, lady bright! can it be right—
This window open to the night?
The wanton airs, from the tree-top,
Laughingly through the lattice drop—
The bodiless airs, a wizard rout,
Flit through thy chamber in and out,
And wave the curtain canopy
So fitfully—so fearfully—
Above the closed and fringéd lid
’Neath which thy slumb’ring soul lies hid,
That, o’er the floor and down the wall,
Like ghosts the shadows rise and fall!
Oh, lady dear, hast thou no fear?
Why and what art thou dreaming here?
Sure thou art come o’er far-off seas,
A wonder to these garden trees!
Strange is thy pallor! strange thy dress!
Strange, above all, thy length of tress,
And this all solemn silentness!

The lady sleeps! Oh, may her sleep,
Which is enduring, so be deep!
Heaven have her in its sacred keep!
This chamber changed for one more holy,
This bed for one more melancholy,
I pray to God that she may lie
Forever with unopened eye,
While the pale sheeted ghosts go by!

My love, she sleeps! Oh, may her sleep,
As it is lasting, so be deep!
Soft may the worms about her creep!
Far in the forest, dim and old,
For her may some tall vault unfold—
Some vault that oft hath flung its black
And wingéd pannels fluttering back,
Triumphant, o’er the crested palls
Of her grand family funerals—

Some sepulchre, remote, alone,
Against whose portals she hath thrown,
In childhood, many an idle stone—
Some tomb from out whose sounding door
She ne’er shall force an echo more,
Thrilling to think, poor child of sin!
It was the dead who groaned within.


The Complete Poems and Stories of Edgar Allan Poe (1946)

Annabel Lee

It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.


I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea,
But we loved with a love that was more than love—
I and my Annabel Lee—
With a love that the wingèd seraphs of Heaven
Coveted her and me.


And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her highborn kinsmen came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.


The angels, not half so happy in Heaven,
Went envying her and me—
Yes!—that was the reason (as all men know,
In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.


But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we—
Of many far wiser than we—
And neither the angels in Heaven above
Nor the demons down under the sea
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee;


For the moon never beams, without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise, but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so, all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling—my darling—my life and my bride,
In her sepulchre there by the sea—
In her tomb by the sounding sea.


Edgar Allan Poe

William Carlos Williams reviews Wallace Stevens

«The New Republic has posted a review, from 1937, of Wallace Stevens’ The Man with the Blue Guitar and Other Poems, written by William Carlos Williams. Williams begins by praising Stevens’ craft but questioning his politics:
The story is that Stevens has turned of late definitely to the left. I should say not, from anything in this book. He’s merely older and as an artist infinitely more accomplished. Passion he has, too often muted, but not flagrantly for the underdog. No use looking for Stevens there—without qualifications.
And continues on to critique the thoughtfulness of Stevens’ quasi-philosophical verse, which Williams sees as dulling the flashes of brilliance in the poems:
Five beats to the line here, and that’s where the trouble is let in. These five beats have a strange effect on a modern poet; they make him think he wants to think. Stevens is no exception. The result is turgidity, dullness and a language, God knows what it is! certainly nothing anybody alive today could ever recognize—lit by flashes, of course, in this case; for whatever else he may be Stevens is always a distinguished artist. The language is constrained by the meter instead of there being—an impossible peak it may be—a meter discovering itself in the language. We are still searching. Much more might be said were there space for it.»

         in Poetry Foundation
IV
 
Tu és o vinho que embriaga o mundo,
E eu esvaio-me em sangue em danças de amor,
Coroando de flores a minha dor!
É a tua vontade, oh noite sem fundo!
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 27

Três sonhos

I
 
Vi-me num sonho de folhas caindo,
De lagos escuros num bosque perdido,
De tristes palavras ecoando -
Mas não sabia entender-lhes o sentido.
 
Vi-me num sonho de estrelas caindo,
De preces chorosas num olhar ferido,
De um sorriso que vinha ecoando -
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
 
Como estrela caindo, folha tombando,
Assim me via num vai-vem perdido,
Eternamente esse sonho ecoando -
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
 
II
 
No espelho escuro da minh'alma
Há imagens de mares nunca sentidos,
Terras tristes de trágicas visões,
Esvaindo-se em azuis indefinidos.
 
Da minh'alma nasceram céus de sangue
E púrpura ardendo em sóis gigantes,
Estranhos jardins povoados de brilhos
E delícias letais e sufocantes.
 
E o poço negro que é a minha alma
Gerou imagens de noites tenebrosas,
Animadas por anónimos cantos
E o sopro eterno de forças ominosas.
 
Treme-me a alma nas trevas da lembrança,
Como se em tudo se revisse enfim -
No insondável mistério de mares e noites
E em fundos cantos sem começo nem fim.
 
III
 
Vi cidades pelo fogo consumidas
E o cortejo dos horrores pelo tempo fora,
E muitos povos a pó ser reduzidos,
Perder-se tudo nos fundos da memória.
 
Vi deuses afundar-se em escuridão,
A mais sagrada harpa destruída
E, levantando-se do meio da podridão,
Crescer para novo dia nova vida.
 
Crescer para novo dia e logo morrer -
A tragédia que o mundo sempre finde
Compreender no acto de a viver,
 
A cuja dor nocturnal e demente
A doce glória da beleza cinge
Como universo de espinhos sorridente.
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 21-23

Erva segada

A erva jaz segada e frágil:
É breve o sopro
Que os caules ceifados exalam.
Longa, longa a morte

Que ela morre nas horas em branco
Do Junho de folhas tenras
Com flores de castanheiro,
As sebes como de neve espargidas,

Lírios brancos curvando-se,
Veredas rendilhadas a flores bravas,
E aquela nuvem acastelada
Movendo-se ao ritmo do Verão.


Philip Larkin. Janelas Altas. Tradução e introdução de Rui Carvalho Homem. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 95

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

La Dama de Blanco

Os velhos tolos

Que pensam eles que aconteceu, os velhos tolos,
Para os pôr assim? Porventura supõem
Que é mais crescido terem a boca aberta e a babar-se
E mijarem-se a toda a hora e não se recordarem
De quem os visitou hoje de manhã? Ou que é só quererem
E volta tudo a ser como quando dançaram toda a noite,
Ou casaram, ou marcharam de arma ao ombro num certo Setembro?
Ou imaginam que não houve mudança alguma
E que sempre se portaram como inválidos ou bêbados
Ou se sentaram o dia inteiro em devaneio contínuo
Vendo a luz mover-se? Se não o crêem (e não podem), é estranho:
                       Porque não estão a gritar?

Na morte, desfazemo-nos: os pedaços do que éramos
Começam a fugir uns dos outros para sempre
Sem ninguém ver. Não é mais que um olvido, é certo:
Já o tivemos antes, mas dessa vez ia acabar,
E combinava-se com um esforço sem igual
Para fazer desabrochar a flor de um milhão de pétalas
Que é estar aqui. Da próxima vez não se pode fingir
Que vai haver algo mais. E estes são os indícios:
Não saber como, não ouvir quem, já não ter
Força para escolher. Pelo ar deles, estão prontos para ir:
Cabelo de palha, mãos de sapo, cara de fruto seco -
                           Como podem não o saber?

Ser velho é talvez ter salas iluminadas
Dentro da cabeça e, lá dentro, gente a representar.
Gente que se conhece, mas cujo nome nos escapa;
Cada vulto responde a uma perda profunda, assomando
A uma porta conhecida, pousando uma vela, sorrindo
Das escadas, tirando um livro da estante; ou por vezes
Se as próprias salas, cadeiras e uma lareira acesa,
O vento no arbusto para lá da janela, ou a débil
Simpatia do sol na parede, num solitário
Fim de tarde de Verão, depois da chuva. É onde eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo aconteceu em tempos.
                            Por isso é que eles têm

Um ar de ausência perplexa, tentando estar lá
E contudo estando aqui. É que as salas vão-se afastando,
Deixando para trás um frio inepto e o atrito constante
Do ar respirado, enquanto eles, os velhos tolos,
De cócoras junto ao morro da extinção, não se apercebem
De como está próximo. Deve ser isto que os sossega:
O pico que se observa de onde quer que se vá
Para eles é uma elevação. Será que não adivinham
O que os puxa para trás, e como tudo acabará? Nem à noite?
Nem sequer quando vêm os desconhecidos? Nunca,
Ao longo de toda a horrível infância do avesso? Bom,
                            Havemos de o saber.



Philip Larkin. Janelas Altas. Tradução e introdução de Rui Carvalho Homem. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 49/51

Esquecer o que

Parar o diário
Foi aturdir a memória,
Foi um começo em branco,

Começo que já não cicatriza
Com tais palavras, tais acções,
Que tornaram inóspito o acordar.

Queria-as terminadas,
Despachadas para enterro
E rememoradas

Como as guerras e os invernos
Que faltavam para lá das janelas
De uma infância opaca.

E as páginas vazias?
Se vierem a preencher-se,
Que seja com a observação

De recorrências celestes,
O dia em que vêm as flores,
E quando partem as aves.


Philip Larkin. Janelas Altas. Tradução e introdução de Rui Carvalho Homem. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 43
E há quem nos fira, por bem, embora teimemos em recusá-lo. A ferida que depois de amadurecida, revela as prismáticas iluminações. Iluminações, que, em retrospectiva, estiveram sempre tão próximas, mas eu tão cansada para  pensá-las, tão orgulhosamente entregue ao passado.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Ricking the reed from Life and Landscape on the Norfolk Broads, 1886

«Ao comunicar-se (o que, nos finais da vida, lhe parece impossível), Trakl fá-lo, nos poemas mais maduros, por um processo de reverbação: o seu corpo «empestado» é o corpo do século, do Império, do mundo, a sua melancolia embebe tudo, dos mitos das origens à epifania escatológica.»
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p.14
« A poesia de Trakl parece assumir-se como uma segunda natureza que, diria o Walter Benjamin dos primeiros ensaios sobre a linguagem, por ser melancólica, é muda, e que, se lhe fosse dada linguagem, começaria invariavelmente a lamentar-se: a forma natural desta poesia é, por isso, a elegia.»


Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p.12
«Quando o galho da amendoeira dá a sua chama,
Quando os rebentos novos são trazidos ao altar,»


Ezra Pound. Do caos à ordem (Visões de sociedade dos cantares de Ezra Pound). Tradução e Prefácio de Daniel Pearlman e Luísa Campos. Edição Bilingue. Assírio&Alvim, Lisboa, 1983, p. 49
Primeiro terás de seguir o caminho
                                                  do inferno


Ezra Pound. Do caos à ordem (Visões de sociedade dos cantares de Ezra Pound). Tradução e Prefácio de Daniel Pearlman e Luísa Campos. Edição Bilingue. Assírio&Alvim, Lisboa, 1983, p. 41

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

«Que apesar de morto tem ainda a mente intacta!»


Ezra Pound. Do caos à ordem (Visões de sociedade dos cantares de Ezra Pound). Tradução e Prefácio de Daniel Pearlman e Luísa Campos. Edição Bilingue. Assírio&Alvim, Lisboa, 1983, p. 41
«cego da luz do sol,
Olhos inchados, repousei,
         pálpebras a fechar, escuridão incons-
                                                         [ciente.


Ezra Pound. Do caos à ordem (Visões de sociedade dos cantares de Ezra Pound). Tradução e Prefácio de Daniel Pearlman e Luísa Campos. Edição Bilingue. Assírio&Alvim, Lisboa, 1983, p. 37
«Infinitas escamas de pus, escaras de uma sífilis
                                                        [persistente.



Ezra Pound. Do caos à ordem (Visões de sociedade dos cantares de Ezra Pound). Tradução e Prefácio de Daniel Pearlman e Luísa Campos. Edição Bilingue. Assírio&Alvim, Lisboa, 1983, p. 33

A Tree With roots

«E, ao regressar, obsediado por essa visão, eu procurava analisar a minha dor súbita, e disse comigo: «Acabo de ver a imagem do velho homem de letras que sobreviveu à geração de que foi brilhante animador; do velho poeta sem amigos, sem família, abatido pela miséria e pela ingratidão pública, e em cuja barraca o mundo ingrato não mais quer entrar!»



Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p.43

    «Um olhar experimentado nunca se engana ali. Nesses traços, rígidos ou abatidos; nesses olhos profundos e ternos, ou brilhantes dos últimos relâmpagos da luta, nessas rugas fundas e numerosas, nesses passos tão lentos ou tão sacudidos, ele decifra imediatamente as inúmeras legendas do amor enganado, da devoção mal correspondida, dos esforços recompensados, da fome e do frio humildemente, silenciosamente suportados.»


Charles Baudelaire. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução de António Pinheiro Guimarães. Relógio D'Água, Lisboa, 1991.,p.37/8

«No amar es sufrir. Sufrir es sufrir. Ser feliz es amar. Ser feliz, entonces, es sufrir, pero, sufrir te hace infeliz.»

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