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terça-feira, 8 de março de 2011

A Ilha Que Desaparecia

Presumimos um dia radicar-nos
Para sempre entre as suas colinas azuis
E a costa árida onde passámos a noite
De desespero em oração e vigília,
Mas uma vez colhida a lenha que o mar trouxe,
Construída uma lareira, e pendurado
O nosso caldeirão como um firmamento,
Quebrou-se a ilha sob os nossos pés como uma onda.
A terra que nos sustinha parecia
Só ter firmeza quando a abraçávamos
In extremis. Tudo o que lá sucedeu,
Creio, foi visão.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.399
Dia e noite as minhas lágrimas foram o meu pão.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.377

Clareiras

Em memória de M.K.H., 1911-1984


Ela ensinou-me o que o seu tio lhe ensinara:
Como o maior carvão rachava facilmente
Se o ângulo entre o veio e o martelo fosse o certo.

O som dessa pancada aliciante e segura,
O seu eco agregado e obliterado,
Ensinou-me o golpe certeiro, e a distensão,

Ensinou-me, entre o maço e o cepo, a enfrentar
Consequências. Ensina-me agora a escutar,
A acertar no veio entre as linhas a negro.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.365

A Lanterna do Espinheiro

Arde fora do tempo o invernal pilrito,
pomo entre espinhos, pequena luz para pequena
gente, desta só esperando que não deixe
extinguir-se a mecha do respeito por si própria,
não tendo de a cegar com um clarão.

Mas quando o hálito se condensa na invernia
toma às vezes a forma errante de Diógenes
com a sua lanterna, em busca de um homem justo;
e assim nos vemos observando de trás
à altura dos olhos, e estremecemos
perante pele e caroço tão coesos,
espinho de sangue que esperamos nos teste e liberte,
pomo maduro e picado que nos sonda
e depois se afasta.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.351

domingo, 6 de março de 2011

(...)

Um rio de peregrinos respondendo ao sino
Subia os degraus enquanto eu os descia
Em direcção à sombra calma e verde escura
De um carvalho. Sombras da quinta sabina
Nos canteiros do Purgatório de S. Patrício.
Fim de Verão, extensões rurais, nem uma aragem:
Distenda-se a toga para o vinho e poesia
Até que Febo regresse e destrone a estrela da manhã.
Ouvindo elevar-se, arrastando, um hino a Maria
Senti um velho tormento com que os sacos de grão
E as hastes arqueadas de enxadas e forquilhas
Em tempos troçavam de mim, virgem, com os meus longos
Jejuns e sedes, sombrios festins nocturnos,
Percorrendo os celeiros de palavras como seios.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.297
''A menos que aqui estejas para um último olhar.''


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.289
''Sou mais velho do que eras quando partiste''


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.289
«Se os tempos eram duros, também eu o seria.»


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.279

II

Tinha a certeza de o conhecer. O tempo que eu passara
obsessivamente naquele quarto lá em cima a aproximar-me dele:
em cada hiato absorto, fumando um cigarro atrás de outro e
olhando as águas-furtadas para a encosta coberta de erva, eu
estava a abrir-me. Ele dependia de mim enquanto eu pendia de um
passo traduzido como um miúdo desafiado a aventurar-se por um
ramo de amieiro sobre o remoinho. Pequeno eu sonhador nos
ramos. Medos experimentados em sonhos, aos quais eu era dado, e
que interrogava agora:

-Foi a ti que após subir as escadas a correr encontrei afogado
sob a água corrente na banheira?
-Foi a ti que a máquina ceifeira cortou como uma lebre na
rígida moldura da ceifa?
-Cujas pequenas vestes ensanguentadas enterrámos no
jardim?
-Eras tu que jazias acordado no escuro só com a parede a
separar-te dos cascos inquietos?

Após ousar estas invocações, retrocedi até ao portão para o seguir.
E o meu passo furtivo era já espontâneo, como se assim me
tornasse eu próprio. Recordei-me de que tinha sido in-vestido
nestas funções.




Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.267

quarta-feira, 2 de março de 2011

Pedra de Delfos

A devolver ao santuário numa madrugada
em que o mar alargue para o sul
as suas distantes searas de sol
e eu faça de novo uma oferenda matinal:
para que eu possa escapar ao miasma de sangue derramado,
governar a língua, temer a hybris, temer a divindade
até que ela fale na minha boca enfim liberta.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.255

de Tempo de Conservação

Lasca de Granito



Pedra denteada. Aberdeen do espírito.

Dizendo Deitarei na taça uma pérola
feri-me na mão, apertando com força
esta lasca tirada da Torre Martello
de Joyce, este brilhante manchado e insolúvel

que guardo mas com o qual pouco tenho em comum -
espécie de faca de circuncisão pré-histórica,
traço calvinista no meu cerne deferente.
O granito é áspero, salgado, punitivo

e exigente. Vinde a mim, diz ele,
todos os que estais cansados e oprimidos,
e não vos aliviarei. E acrescenta, Agarrai
o momento. E ainda, Pegai-me ou largai-me.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.251

VIII

Relâmpagos na lenha: chuva em grossas gotas
Quentes como o corpo e túrgidas de presságio
Espirrando escuras no ferro do machado.
Esta manhã quando uma gralha saltitante
Inspeccionou um cavalo que dormia junto à lenha
Lembrei-me do orvalho sobre armadura e cadáveres.
Que iria eu encontrar na estrada, ensanguentado?
Onde, na pilha de lenha, se ocultava o sapo?
O que se espoja nesta escura calma das searas?
Recordas-te daquela pensão nas Landes
Em que a velha embalava, embalava, embalava
Um mongolóide, ao som de cançõezinhas?
Vem a mim depressa, estou cá em cima, e tremo.
Minha, toda tu, lenha sob o relâmpago.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.213

terça-feira, 1 de março de 2011

«Cada novo verso como a charrua no regresso.»


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.203
«Incompreensível, p'ra ele,
Essa minha outra vida.
Por vezes, num banco alto,
Ocupado com a faca
Num pedaço de tabaco,
Sem os olhos se encontrarem,
Numa pausa após um trago
Mencionava a poesia»

(...)


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.187

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Acto de União

I

Esta noite, um primeiro abalo, latejante
Como se a chuva no pântano engrossasse
Pr'a fluir e alargar: uma explosão,
Um rasgão abrindo o leito vegetal.
O teu dorso é a costa leste, linha firme,
Braços e pernas lançadas para lá
Do teu relevo gradual. Acaricio
A província arquejante onde cresceu o nosso passado.
Sou o reino que por detrás de ti se eleva,
Que não queiras seduzir nem ignorar.
A conquista é uma mentira. Envelheço
Concedendo-te uma meia independência,
Território em que agora o meu legado
Tem o seu ponto culminante, inexorável.

II

E permaneço no aprumo imperial
Do macho - deixando-te com o sofrimento,
A colónia a ser dilacerada,
O ariete, e a explosão vinda de dentro.
A quinta coluna que do acto nasceu
É obstinada e tem o olhar unilateral.
O seu coração ao lado do teu
É um tambor chamando p'rá batalha. E já
Os pequenos punhos, parasitas, ignaros,
Te batem às fronteiras, me ameaçam
Por sobre a água. Nenhum tratado
Poderá o teu corpo marcado sarar,
Estriado, em carne viva com a dor
Que te faz solo rasgado, de novo.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.143
«Sempre a caminho, mas sempre aquém de avistar terra.»



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.51

Colmeiro

Há muito apalavrado, apareceu numa certa
Manhã, de surpresa, e na bicicleta
Uma escada leve e um saco de navalhas.
Olhou o velho colmo, testou as traves,

Abriu e ajeitou feixes de palha.
Depois, molhos de varas, de aveleira e salgueiro:
Sopesadas, torcidas - não fossem estalar.
Pareceu gastar toda a manhã a prepara-se:

Firmou então a escada, e com facas bem afiadas
Cortou a palha e aguçou a ponta das varas
Que, dobradas, eram o agrafo de espigões brancos
Com que fixava o seu mundo, em punhados.

Curvados vários dias sobre as vigas
Aparou e poliu extremidades, tudo atou
Numa colmeia em declive, uma resteva,
E a todos espantou com o seu toque de Midas.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.49

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Apanha das Amoras

Para Philip Hobsbaum


Por fins de Agosto, com chuva forte e sol
Toda uma semana, amadureciam as amoras.
A princípio, uma só, luzidio coágulo púrpura
Entre outras, rubras, verdes, duras como um nó.
Comia-se a primeira e era carnuda e doce
Como vinho fermentado: era o sangue do Verão
Tingindo-nos a língua com o desejo de as
Colher. Escureciam então as vermelhas, e essa fome
Levava-nos com canecas, latas, boiões
Onde as silvas arranhavam e erva húmida
Polia as botas. Por prados, lameiros e searas
Seguíamos na apanha até enchermos as vasilhas,
Até que o seu fundo tilintante se cobria
Com as verdes, e por cima borrões negros reluziam
Como um prato de olhos. Picados de espinhos
Ardiam-nos nas mãos, tão pegajosas
Como as do Barba-Azul.

Guardávamos as bagas frescas no curral.
Mas mal a dorna enchia lhe víamos uma penugem,
Um fungo cinza-rato devorando-nos o tesouro.
Também o sumo estava pestilento. Mal o colhíamos,
Fermentava o fruto, azedava a doce carne.
Apetecia-me chorar. Não era justo
Que tanto deleite fosse agora podridão.
Ano a ano esperava conservá-las,
Sabendo bem que não.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.41
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