I
Vi-me num sonho de folhas caindo,
De lagos escuros num bosque perdido,
De tristes palavras ecoando -
Mas não sabia entender-lhes o sentido.
Vi-me num sonho de estrelas caindo,
De preces chorosas num olhar ferido,
De um sorriso que vinha ecoando -
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
Como estrela caindo, folha tombando,
Assim me via num vai-vem perdido,
Eternamente esse sonho ecoando -
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
II
No espelho escuro da minh'alma
Há imagens de mares nunca sentidos,
Terras tristes de trágicas visões,
Esvaindo-se em azuis indefinidos.
Da minh'alma nasceram céus de sangue
E púrpura ardendo em sóis gigantes,
Estranhos jardins povoados de brilhos
E delícias letais e sufocantes.
E o poço negro que é a minha alma
Gerou imagens de noites tenebrosas,
Animadas por anónimos cantos
E o sopro eterno de forças ominosas.
Treme-me a alma nas trevas da lembrança,
Como se em tudo se revisse enfim -
No insondável mistério de mares e noites
E em fundos cantos sem começo nem fim.
III
Vi cidades pelo fogo consumidas
E o cortejo dos horrores pelo tempo fora,
E muitos povos a pó ser reduzidos,
Perder-se tudo nos fundos da memória.
Vi deuses afundar-se em escuridão,
A mais sagrada harpa destruída
E, levantando-se do meio da podridão,
Crescer para novo dia nova vida.
Crescer para novo dia e logo morrer -
A tragédia que o mundo sempre finde
Compreender no acto de a viver,
A cuja dor nocturnal e demente
A doce glória da beleza cinge
Como universo de espinhos sorridente.
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 21-23