sábado, 14 de maio de 2011

Medito e encontro-me só

«Neste cume estou muitas vezes, ó meu Belarmino! Mas um momento de reflexão derruba-me. Medito e encontro-me só, como dantes, com todas as dores da mortalidade. e o asilo do meu coração, o mundo eternamente uno, desaparece; a Natureza recusa-me os seus braços, e fico diante dela como um estranho e não a entendo.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 23
«Unir-se a tudo o que vive, regressar ao todo da Natureza, em feliz esquecimento próprio, é o mais elevado pensamento e a maior das alegrias, é o sagrado cume do monte, o lugar do eterno descanso, onde o meio-dia perde o seu ar abafado e o trovão a sua voz e o mar embravecido se assemelha à ondulação dos campos de trigo.»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 23
«Agora todas as manhãs compareço nas alturas do istmo de Corinto e a minha alma, qual abelha entre flores, voa frequentemente num vaivém entre os mares, os que à direita e à esquerda refrescam o sopé dos meus montes ardentes.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 21
“Eu já não sou o que era: devo ser o que me tornei.”
''Já que tudo está na nossa cabeça, é melhor a gente não perdê-la.”

Mademoiselle Coco Chanel
    «É meia-noite. A chuva fustigava as vidraças. Estou calmo. Tudo dorme. Não obstante levanto-me e sento-me à secretária. Não tenho sono. A luz da lâmpada é firme e suave. Regulei-a para dar até de manhã. Ouço o bufo, ave nocturna. Que terrível grito de guerra! Outrora ouvia-o impassível. O meu filho dorme. Que durma. Virá a noite em que também, não podendo dormir, se sentará à mesa de trabalho. Estarei esquecido.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 133

As noites de solidão no Alentejo: eis tudo.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

...........................Não havia homem algum no lugar,
ninguém que me socorresse e me ajudasse
a suportar a dor. Observei tudo
e nada encontrei que não fosse o desespero presente
e desse muita abundância, meu filho.

(vv. 280-284)
 
 
 
 
Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p.12

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Filoctetes

  « O Filoctetes (409 a. C.) baseia-se no contraste entre três figuras, duas que se opõem frontalmente, Filoctetes e Ulisses, e uma terceira que é atraída ora para a esfera de um, ora para a esfera do outro, Neoptólemo. Filoctetes, o homem abandonado que a solidão e o sofrimento endureceram, sem lhe destruírem a sensibilidade; Ulisses, o político sem escrúpulos morais que age pelo oportunismo e interesse e utiliza quaisquer meios para conseguir os seus objectivos; Neoptólemo, o jovem ingénuo, bom e generoso, que aprende com as situações embaraçosas, e sofre uma visível transformação psicológica. Da correlação de forças entre estas três personagens nasce e se desenvolve a acção.»



Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p.11

AS FOLHAS DA CEREJEIRA

A André Tarkovsky


        Por cima de Casteldeci há uma igreja sem tecto e as paredes têm entre os braços uma cerejeira que cresceu no chão e cujos ramos tocam o céu.
        Em Abril floresce e a brancura desliza da árvore até ao fundo do vale, depois nascem os frutos e comem-nos os melros e os pássaros bravos; entretanto as folhas ficam vermelhas e uma de cada vez caem no chão.
       Se alguém assoma àquelas paredes com o desejo de pedir um milagre e há uma folha que cai nesse momento é sinal de que lá de cima terá uma resposta boa.
        Tarkovsky passou lá em Novembro e precisava de fazer um pedido grande, mas as folhas já tinham caído todas e serviam de cama a duas ovelhas que dormiam.



Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 45

Female Nude

       O amado solo da Pátria de novo me enche de alegria e de sofrimento.


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 21
      «Outrora os povos partiram da harmonia das crianças; a harmonia dos espíritos será o princípio de uma nova história do mundo. Os homens começaram a par da felicidade das plantas e cresceram, cresceram até amadurecer; a partir de então, continuaram a fermentar incessantemente, por dentro e por fora, até que o género humano, agora infinitamente desagregado, se apresenta como o caos, de tal modo que todos os que ainda sentem e vêem ficam com vertigens; porém a beleza foge da vida dos homens para as alturas do espírito; torna-se ideal tudo o que era Natureza, e se a árvore, por baixo, está seca e degradada, há ainda nela uma copa fresca que dela saiu e verdeja à luz do Sol, como outrora o tronco nos dias de juventude; é ideal o que foi Natureza. Neste ideal, nesta divindade rejuvenescida se conhecem os poucos que são uma unidade, porque neles há unidade, e a partir deles começa a segunda idade do mundo - » (Carta 26)



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 13

Carta a Susette Gontard

«É em Susette que o Autor reconhece a sua Diotima, e Susette, que já conhece o Hipérion, vê também em Hölderlin o seu Autor. A versão definitina é escrita em Frankfurt e é objecto de conversas entre ambos. Que Susette não estava de acordo em que a heroína morresse ficou documentado na carta 199.» 

            Aqui tens o nosso Hipérion, querida! Este fruto dos nossos dias felizes dar-te-á pelo menos um pouco de alegria. Perdoa-me que Diotima morra. Por certo te lembras que na altura não fomos completamente unânimes nesse ponto. Eu achava que era necessário, devido a todo o conjunto de pressupostos. Meu Amor! toma tudo o que aqui e ali se diz dela e de nós, da vida da nossa vida, como um agradecimento, que ainda se torna tanto mais verdadeiro, quanto mais desajeitadamente se exprime. Tivesse eu podido formar, a teus pés, em mim gradualmente o artista, em silêncio e liberdade, sim penso que depressa o chegaria a ser - por isso anseia agora o meu coração, mergulhado em sofrimento, em sonhos e à luz do dia e muitas vezes em silencioso desespero. (Hölderlin)


«A linguagem das cartas «reais» é praticamente a mesma das ficcionadas, pois a vida aproximou-se do ideal e o fracasso deste reflectiu-se na vida e até premonitoriamente, se pensarmos que Susette vem realmente a morrer cedo e que Hölderlin lhe sobrevive no afastamento completo da vida «normal», no seu cemitério da Torre de Tübingen.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p.9/10


      
«O homem gostaria de estar em tudo e acima de tudo, e a máxima inscrita no túmulo de Loyola:

         non coerceri maximo, contineri tamen a minimo

tanto pode referir-se ao pendor perigoso do homem, que tudo quer possuir e dominar, como ao estado máximo e magnífico que pode alcançar. Compete ao exercício livre da sua vontade decidir em que sentido ela deva valer.»




Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p.9

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Livro das Igrejas Abandonadas

Eu abandono Roma
Os camponeses abandonam a terra
As andorinhas abandonam  a minha aldeia
Os fiéis abandonam as igrejas
Os moleiros abandonam os moinhos
Os montanheses abandonam os montes
A graça de Deus abandona os homens
Alguém abandona tudo



Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 18
      Como dizia o Italo Calvino, «para Tonino Guerra tudo se transforma em conto e em poesia: de viva voz ou escrito ou nas sequências do cinema, em prosa ou em verso, em italiano ou em dialecto romanholo. Há sempre um conto em cada uma das suas poesias; há sempre uma poesia em cada um dos seus contos. E poesia quer dizer uma experiência precisa e concreta e inesperada, contendo dentro de si um sentimento e com o tom de uma voz que nos fala.»


Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 15/6

domingo, 8 de maio de 2011

domingo, 1 de maio de 2011

Siddhartha tinha um único objectivo

«Siddhartha tinha um único objectivo: ficar vazio, vazio de sede, vazio de desejo, vazio de sonho, vazio de alegria e de tristeza. Deixar-se morrer, não ser mais Eu, encontrar a paz de um coração vazio, descobrir o milagre do pensamento puro, era o seu objectivo. Quando a totalidade do Eu estiver dominado e morto, quando todos os vícios e inclinações desaparecerem do coração, então despertará o mais profundo do Ser, aquilo que já não é o Eu, o grande segredo.»




Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 22
«(...) A carne desapareceu das suas pernas e do rosto. Sonhos ardentes tremeluziam nos seus olhos enormes, nos seus dedos secos as unhas tornaram-se compridas e no seu queixo cresceu uma barba áspera e hisurta. O seu olhar era gelado, quando observava as mulheres; a sua boca enchia-se de desdém, quando atravessava uma cidade cheia de pessoas bem vestidas. Via mercadores a negociar, príncipes a caminho das caçadas, pessoas enlutadas chorando os seus mortos, prostitutas que se ofereciam a ele, médicos ocupados com os seus doentes, sacerdotes a determinarem o dia para as sementeiras, amantes a amarem, mães a embalarem os seus filhos - e tudo isto valia a seus olhos, tudo mentia, tudo cheirava mal, tudo cheirava a mentiras, tudo fingia sentido e sorte e beleza, tudo era uma oculta podridão. O mundo tinha um sabor amargo. A vida era sofrimento.»



Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 21/2

«É necessário encontrar a Fonte Primordial no fundo do Eu, possuí-la em nós mesmos! Tudo o resto era demanda, era desvio, era erro.
    Estes eram os pensamentos de Siddharta, esta era a sua sede, esta a sua dor.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 15

Atman

«(...) A quem fazer sacrifícios, a quem venerar, senão a Ele, ao Único, a Atman? E onde encontrar Atman, onde vive Ele, onde bate o Seu coração, senão no próprio Eu, nas profundezas imperecíveis que existem em todos nós? Mas onde, onde se encontra este Eu, esta Interioridade, esta Finalidade? Não é de carne e osso, não é o pensamento ou a consciência, assim ensinavam os mais sábios. Onde, onde era então? Penetrar no Eu, na Interioridade, em Atman - existiria outro caminho que valesse a pena ser procurado? Mas, ai, que ninguém o conhecia, nem o pai, nem os professores e sábios, nem os cânticos sagrados dos sacrifícios!»



Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 14

TARDE DE OVELHAS

A mancha de sangue depõe-se no horizonte de aqui,
A gota de leite desponta no horizonte de lá.
Homem simples que se dissipa na flauta e cuja pru-
       [dência tem a forma de um cão negro, o pastor
                             [desce a adolescência da encosta.
Seguem-no as suas ovelhas, com dois pâmparos por
        [orelhas e dois cachos por tetas, seguem-no as
                            [suas ovelhas: vinhas ambulantes.
Tão puro o rebanho, que esta tarde estival parece                
                             [nadar na planura infantilmente.
Estes miúdos escrínios de vida roeram, lá no alto.
                             [os perfumadores e descem cheios.
Os meus Desejos também, estimulados pela flauta
 [da Esperança e o cão da Fé, subiam esta manhã
 [a encosta do Mistério, e foram-se mais alto que
                                            [as ovelhas da minha alma.
Mas, na pradaria de jacintos, a cheirosa estrela incen-
       [diou os dentes ávidos que queriam desapertar-lhe
                                                                     [o corpete fértil.
É por isso que o meu rebalho subtil, à hora das ave-
 [-marias, se adentra em mim, flancos desesperados.
As ovelhas estão no redil, e o homem simples vai
[dormir entre a sua flauta e o cão negro.




Saint-Pol Roux. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.147
«Tristes lágrimas de ira:
Não minhas: da vida.»


Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.141
«Estranho e em terror, que farei
Num mundo que não criei?»

Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.141

«In the morning...»

De manhã, pela manhã,
No feliz campo de feno,
Oh, filtram-se um ao outro
À luz do dia sereno.

Na manhã de azul e prata
Sobre o feno de deitavam,
Oh, fitaram-se um ao outro,
E seus olhos desviavam.



Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.140

«No Worst...»

Não pior não há. Que tensas além tensa dor,
mais mágoas, de em pre-mágoas, brancas morderão.
Ó tu que és quem consola, onde a consolação?
Maria, nossa mãe, aonde o teu calor?

Meus gritos arfam, longos de manadas, por
em de hiper-mundo-dor, em bigorna canção.
Depois sossegam, calam. A fúria estrila: « Não
demora. Que eu remate seja. Breve ardor».

A alma tem montanhas; tem escarpas terríveis
abruptas, não-exploradas. Julga-as por pequenas
quem nunca pendeu nelas. Nem podem sensíveis
lidar com tais declives. Vá. canalha, amenas
te servem ventanias, trepa! Que os possíveis
da vida a morte acaba, e o dia dorme as penas.



Gerard Manley Hopkins. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.133/4
«As folhas gelam no frio;
mas que amizades amantes
podem gelar como dantes
quem no Inverno sumiu?»


Thomas Hardy. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.131

sexta-feira, 29 de abril de 2011

The Olive Tree

Save for a lusterless honing-stone of moon
The sky stretches its flawless canopy
Blue as the blue silk of the Jewish flag
Over the valley and out to sea.
It is bluest just above the olive tree.
You cannot find in twisted Italy
So straight a one; it stands not on a crag,
Is not humpbacked with bearing in scored stone,
But perfectly erect in my front yard,
Oblivious of its fame. The fruit is hard,
Multitudinous, acid, tight on the stem;
The leaves ride boat-like in the brimming sun,
Going nowhere and scooping up the light.
It is the silver tree, the holy tree,
Tree of all attributes.

Now on the lawn
The olives fall by thousands, and I delight
To shed my tennis shoes and walk on them,
Pressing them coldly into the deep grass,
In love and reverence for the total loss.


Karl Shapiro
«Nada, nada arrancará tua raiz profunda
Do meu imenso corpo entorpecido de prazer. »


François Mauriac, poema  O sangue de Átis

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Song of the Little Cripple at the Street Corner

Maybe my soul’s all right.
But my body’s all wrong,
All bent and twisted,
All this that hurts me so.

My soul keeps trying, trying
To straighten my body up.
It hangs on my skeleton, frantic,
Flapping its terrified wings.

Look here, look at my hands,
They look like little wet toads
After a rainstorm’s over,
Hopping, hopping, hopping.

Maybe God didn’t like
The look of my face when He saw it.
Sometimes a big dog
Looks right into it.
 

Source: Poetry (April 2006). Rainer Maria Rilke,Translated by David Ferry in Poetry Magzine.

Mirabeau Bridge

Under Mirabeau Bridge the river slips away
        And lovers
           Must I be reminded
       Joy came always after pain


The night is a clock chiming
The days go by not I


We're face to face and hand in hand
While under the bridges
Of embrace expire
Eternal tired tidal eyes


The night is a clock chiming
The days go by not I


Love elapses like the river
Love goes by
Poor life is indolent
And expectation always violent


The night is a clock chiming
The days go by not I


The days and equally the weeks elapse
The past remains the past
Love remains lost
Under Mirabeau Bridge the river slips away


The night is a clock chiming
The days go by not I



Guillaume Apollinaire. "Mirabeau Bridge" from Alcools, English translation, 1995 Donald Revell and reprinted by permission of Wesleyan University Press.

terça-feira, 26 de abril de 2011

« [...] perfeitamente gracioso no seu porte, amado por todos, sendo a alegria de todos, não tinha qualquer alegria no seu coração. Sonhos e pensamentos perturbadores vinham até ele, flutuando nas águas do rio, cintilando nas estrelas da noite, fundidos nos raios do sol; sonhos e inquietude de alma vinham até ele, diluídos no fumo dos sacrifícios, suspirados nos versos do Rig-Veda, escorrendo dos ensinamentos dos velhos brâmanes.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 13
« [...] amava o seu espírito, os seus pensamentos elevados e ardentes, os seus desejos impetuosos, a sua vocação nobre.»




Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 12

O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele...

«O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele, ao vê-lo caminhar, sentar-se perto dela e levantar-se; Siddhartha, o forte, o belo, aquele que caminha com pernas elegantes, aquele que saúda com delicadeza.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 12

O Filho do BRÂMANE

 «Na penumbra da casa, ao sol nas margens do rio, junto aos barcos, à sombra do bosque, à sombra das figueiras, cresceu Siddhartha, o belo filho do brâmane, o jovem falcão, na companhia de Govinda, o seu amigo, o filho do brâme.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 11

segunda-feira, 25 de abril de 2011

«Mas eu sou humano, acho, e a minha progressão ressentia-se disso, desse estado de coisas, e de lenta e penosa que tinha sido até ali, tenha eu dito o que tiver, transformava-se, salvo o vosso respeito, em verdadeiro calvário, sem limite de estações nem esperança de crucificação.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 112

Porque o caçador...

«Porque o caçador no fundo não passa de um fraco e de um sentimental, com reservas de ternura e de compaixão, que não pedem outra coisa senão transbordar.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 96
9

As grandes portas do celeiro estão todas abertas,
A erva seca da ceifa amontoa-se na carroça lentamente puxada,
A luz límpida brinca com os matizes do cinzento e do verde,
As braçadas empilham-se na meda de feno que se inclina.

Estou lá, ajudo, vim deitado em cima da carga,
Senti os seus solavancos suaves, uma perna sobre a outra,
Salto das traves e apodero-me do trevo e da erva dos prados,
E dou cambalhotas e o meu cabelo fica todo emaranhado com
             pedaços de palha.




Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 36
5

Acredito em ti, minha alma, o outro que sou não se deve rebaixar
              perante ti,
E tu não te deves rebaixar ao outro.

Entrega-te comigo ao ócio sobre a erva, liberta o nó que tens na
            garganta,
Não quero palavras, música ou rimas, nem regras ou prelecções,
           nem mesmo as melhores.
Apenas gosto da quietude, do sussurro da tua voz velada.


Recordo como numa manhã límpida de Verão em que estávamos
         deitados,
Tu pousaste a tua cabeça nas minhas ancas e te voltaste sobre mim
         com toda a suavidade,
E afastaste a camisa do meu peito e mergulhaste a língua no
         meu coração desnudado,
E te estendes até sentir a minha barba e te estendeste até agarrares
         os meus pés.


De repente surgiram e rodearam-me a paz e o conhecimento que
        ultrapassam todas as polémicas da terra,
E sei que a mão de Deus é a minha promessa,
E sei que o espírito de Deus é meu irmão,
E que todos os homens alguma vez nascidos são também meus
         irmãos e as mulheres minhas irmãs e amantes,
E que o amor é o suporte da criação,
E que são inúmeras as folhas firmes ou a cair nos campos,
E por baixo delas as formigas escuras nos seus pequenos poços,
E crostas musgosas da cerca em ziguezague, pedras amontoadas, o
                sabugueiro, o verbasco e a erva-tintureira.





Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 32/3
Pudesse eu não sentir mágoa, e tudo perdoar, ouvindo o canto dos pássaros nas cerejeiras, ao acordar.
«O meu primeiro cuidado portanto, ao cabo de algumas milhas na alvorada deserta, foi procurar um sítio onde dormir, porque o sono também é uma espécie de protecção, por mais paradoxal que isso possa parecer. Porque o sono, se é certo que excita o instinto de captura, parece apaziguar o da matança imediata e sangrenta, qualquer caçador vo-lo pode dizer.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 95
(...)

Exercitaste-te tanto tempo para aprender a ler?
Sentiste-te muito orgulhoso ao compreender o significado dos
        poemas?

Fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem de todos os
        poemas,
Quero que possuas o que há de bom na Terra e no sol (há milhões
        de outros sóis),
Não quero que recebas mais coisas em segunda mão ou em terceira
        mão, nem que olhes através dos olhos dos mortos, nem
        que te alimentes dos espectros dos livros,
Também não quero que olhes através dos meus olhos, nem que
        recebas de mim coisas,
Quero que tudo escutes e as filtres a partir de ti mesmo.



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 30
«Hei-de ir para o talude junto do bosque e tirar todos os disfarces e
               ficar nu,
Estou louco por lhe sentir o contacto.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 29
«Vós, oceanos que tendes permanecido calmos dentro de mim!
           como vos sinto, insondáveis, agitados, preparando vagas e
           tempestades sem precedentes.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 27
12

Democracia! próxima de ti uma garganta enche-se agora de ar e
           canta alegremente.

Ma femme! para os filhos que vêm de nós e depois de nós,
Para aqueles que são daqui e aqueles que hão-de vir,
Eu, exultante por estar pronto para eles lanço cá fora canções
             mais vigorosas e altivas do que qualquer outras alguma
             vez ouvidas na terra.

Hei-de escrever canções de paixão para lhes mostrar o seu caminho,
E as vossas canções, transgressores proscritos, porque vos observo
             com olhos de pai e vos levo comigo como a qualquer outro.

Hei-de escrever o verdadeiro poema da riqueza,
Alcançar para o corpo e para o espírito tudo o que se lhe prenda e
             progrida e não seja abandonado pela morte;
Hei-de derramar o egotismo e revelá-lo subjacente a tudo e ser o
             bardo da personalidade,
E hei-de mostrar do macho e da fêmea que um é apenas igual ao
            outro,
E os órgão e actos sexuais! Concentrai-vos em mim pois estou
           decidido a dizer-vos com uma voz límpida e corajosa para
           mostrar que sois gloriosos,
E hei-de mostar que não existe qualquer imperfeição no presente
           e nenhuma pode existir no futuro,
E hei-de mostrar que, seja o que for que aconteça a alguém, pode
           transformar-se em belos resultados,
E hei-de mostrar que nada existe de mais belo que a morte,
E hei-de passar um fio através dos meus poemas para que o tempo
           e os acontecimentos fiquem unidos,
E todas as coisas do universo sejam milagres perfeitos, cada um tão
           profundo como os outros.

Não irei escrever poemas que se refiram a partes,
Mas hei-de escrever poemas, canções, pensamentos que se refiram
           ao todo,
E não hei-de cantar referindo-me a um dia, mas sim referindo-me
          a todos os dias,
E não hei-de fazer um poema ou a mínima parte de um poema
          que não se refira à alma.

Porque, após ter olhado para os objectos do Universo, vi que não
           existe um, nem uma partícula de um que não se refira à
          alma.




Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 23/4

Ao partir de Paumanok

1


Ao partir de Paumanok, a ilha em forma de peixe, onde nasci,
Bem gerado e educado por uma mãe perfeita,
Após ter percorrido muitas terras, enamorado pelos passeios
            cheios de gente,
E ter habitado em Mannahatta, a minha cidade, ou nas savanas do
             Sul,
Ou ter acampado como soldado e carregado com a minha mochila
             e a espingarda, ou sido um mineiro na Califórnia,
Ou, rústico, ter vivido na minha terra, nas florestas de Dacota,
             alimentando-me de carne e bebendo nas fontes,
Ou ter-me retirado para devanear e meditar num profundo recanto
Longe do mundo das multidões, momentos cheios de enlevo e
             felicidade,
Conhecendo o fresco e o generoso curso do Missuri, conhecendo o
            importante Niágara,
As manadas de búfalos que pastam nas planícies, o hirsuto e o
           corpulento touro,
Com a experiência da terra, das rochas, das flores de Maio,
           maravilhado com as estrelas, a chuva, a neve,
Atento aos vários cantos do mimo e ao voo do falcão da montanha
E ouvindo de madrugada o incomparável tordo eremita a cantar
           nos cedros do pântano,
Eu, solitário no Oeste, entoo o meu canto para um Novo Mundo.


Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 16

domingo, 24 de abril de 2011

«Também a ele, ela havia de enterrar um dia. Dentro da gaiola, provavelmente. Também a mim, se ali tivesse ficado, ela teria enterrado. Se tivesse o endereço dela, escrever-lhe-ia, para que viesse enterrar-me.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 53

ascese

busca do aperfeiçoamento espiritual através do afastamento do mundo e da renúncia aos prazeres associados à vida terrena.

(Do gr. áskesis, «id.»)

''arrastadas à queda pela paixão''

ora aí está uma coisa que eu sempre pensei sobre as mulheres. Mas, também, parafraseando, podem ser arrastadas até ao arrebatamento delas próprias, pela paixão.

Nu féminin (1890)


«[...] o tantrismo se propõe a reintegrar – de novo: reincorporar – todas as substâncias, sem excluir as imundas, como o excremento, e as proibidas, como a carne humana. [...] o festim tântrico é uma deliberada transgressão, uma ruptura das regras que tem por finalidade provocar a reunião de todos os elementos e substâncias. Abater as muralhas, transbordar os limites, suprimir as diferenças entre o horrível e o divino, o animal e o humano, a carne morta e os corpos vivos: samarasa, sabor idêntico de todas as substâncias.»



Octavio Paz. Conjunções e Disjunções, pg. 67.

a propósito do tantrismo em Conjunções e Disjunções,

« (...)uma experiência total, carnal e espiritual, que deve verificar-se concreta e realmente no rito.»


Desta forma, o sexo ritual é tido como um índice de religiosidade tão elevado, que incorpora o sexo à religião, em vez de excluí-lo, como afirma Octavio Paz.


 Octavio Paz. Conjunções e Disjunções, pg. 62
«Eis uma das razões por que evito falar sempre que possível. Porque digo sempre ou demais ou de menos, o que me faz sofrer, porque sou um amante da verdade.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 48

Reclining Nude; Oregon, 1976

«O homem do Egeu, sedento de calor, de luz, matei-o, matou-se ele, muito cedo, em mim.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 41
«Há que rendermo-nos à evidência, não somos nós que estamos mortos, são todos os outros.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37
«As minhas razões? Tinha-as esquecido.Porém conhecia-as, julgava conhecê-las (...)»

Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37
«Dentro do fosso a erva era basta e alta, tirei o chapéu e arrumei as compridas folhudas hastes à roda da cara. Cheirei então a terra, o cheiro da terra estava na erva, que as minhas mãos entrançavam sobre o rosto, de tal maneira que fiquei sem ver.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 37

sábado, 23 de abril de 2011

''Já não vivo contigo'', diz Maggie a Brick. ''Nós apenas ocupamos a mesma gaiola.''

 in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)
«Não confio em homens que não bebem.»


 in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)
Como é que um náufrago
ajuda outro que se está a afogar?


Paul Newman in Gata em Telhado de Zinco Quente (Filme)

Marilyn - Crucifix II (1962)



Porém...

«Porém, só depois de deixar de viver é que penso, nestas e noutras coisas. É na tranquilidade da decomposição que me recordo dessa longa emoção confusa que foi a minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos há-de julgar e com a mesma impertinência.»



Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 34
«Sou um homem que deambula sem parar totalmente, por acaso
                olha para ti e de seguida desvia o rosto,
Deixando que sejas tu quem venha prová-lo e defini-lo,
E espera de ti as coisas principais.»


Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p. 15

sexta-feira, 22 de abril de 2011

MENSAGEIRO

(...) « Se o que eu te conto não te é grato, não ponho nisso prazer: digo, porém, a verdade.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.47
«Aos filhos que gerámos, vê-os ele como um lavrador que, tomando um campo distante, o contempla uma só vez ao semeá-lo e uma outra no tempo das colheitas.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.34
Dejanira

«Há uma sentença antiga entre os homens que afirma não poder a vida humana, até que a morte venha, ser tida como feliz ou infortunada, mas aquela que eu levo - e mesmo antes de ao Hades descer - sei bem que é infeliz e pesada. Quando eu vivia no palácio de meu pai, Eneu, em Plêuron, uma dolorosa angústia quanto às núpcias me assaltou, como a mulher alguma da Etólia. Meu pretendente era um rio, de nome Aqueloo, que sob três formas diferentes me vinha pedir a meu pai: ora se apresentava sob o aspecto de um touro, ora de uma serpente de espirais multicores, ora de um ser humano com cabeça taurina: das suas faces de barba espessa brotavam jorros de água viva. Na expectativa de tal pretendente, eu, triste de mim, ansiava pela morte antes que de um tal leito me aproximasse.»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.33

quinta-feira, 21 de abril de 2011



«Seja como for, quero eu dizer tenha ou não me tenha visto, repito que o via afastar-se, a braços (eu) com a tentação de me levantar e de o seguir, de ir mesmo talvez com ele um dia, para o conhecer melhor, para eu próprio ficar menos sozinho. Mas apesar de este impulso da minha alma para ele, e o elástico da minha alma, por causa da obscuridade e também do terreno, atrás de cujas pregas desaparecia de vez em quando, para tornar a emergir mais adiante, mas sobretudo creio por mor das outras coisas que me chamavam e para as quais igualmente a minha alma devorava uma após outra, sem método e esbaforida. Falo naturalmente dos campos embranquecendo sob o carvalho e dos animais deixando de neles vaguear sem tomar as suas atitudes nocturnas, do mar do qual não direi palavra, do céu onde sem as ver sentia estremecer as primeiras estrelas, da minha mão sobre o meu joelho e ainda sobretudo do outro passeante.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 13/4
«Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata».

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.98
«Peixe! - disse o velho. - Peixe! Seja como for, tu vais morrer. Precisas também de me matar?»

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.98
«Mas preciso dele bem perto, perto, perto, pensou. Não devo apontar à cabeça. Preciso de acertar no coração.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.96
«Tenho de manter-lhe a dor no grau em que está, pensou. A minha não importa. A minha domino eu. Mas a dele pode enlouquecê-lo.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.93
«Quanto a mim, gostaria agora de falar das coisas que me restam, de fazer as minhas despedidas, de acabar de morrer. Eles não querem. Sim, são muitos, parece. Mas é sempre o mesmo que vem.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 7
«Dejanira não é a mulher de grandes decisões, nada tem de Antígona ou de Electra, a não ser a solidão: mas a sua é uma solidão diferente - a da mulher insegura e frágil que vive dependente em exclusivo da figura de Héracles, a quem referencia toda a sua existência, identificando a morte ou a salvação do herói com a sua própria morte ou salvação (vv. 83-85)»


Sófocles. As Traquínias. Textos clássicos - 18. Introdução, versão do grego e notas de Maria do Céu Azambujo Fialho. 2ª Edição Revista. Coimbra, 1989., p.17
Deverei concordar sempre contigo, Pai, e dizer-te sempre o mesmo: hoje são as minhas cinzas espalhadas, amanhã serão as tuas. O que vos posso dizer, vós do meu sangue? Que vos amei sempre, embora, tenhais, colocado em cima dos meus ombros pesados fardos, e, uma pedra no lugar daquilo a que chamam coração. Não espero que a vida me contemple, porque talvez não tenha sido essa a semente que me trouxe a árida terra. Não espero que me possam compreender, pois, a raiva muito me consumiu, muito me fez alguém, eu, que tantos anos vivi como se não fosse ninguém. Contemplo a espera, o céu, e a estrela lá no alto. Dou por mim, silente, melancólica, pensando-te, a ti, o único do meu sangue, que, tanto me fez verter lágrimas. A minha memória era-me um fardo. Fui fechando as gavetas com o tempo, e hão-de permanecer fechadas;delas já não há nada a conhecer . Lembro-me do punhado de terra na mão fechada, que nunca pude verter sobre o túmulo, sem nada entender. E continuo sem entender, as coisas daquele tempo. Porém, reservaram-me a passagem dolorosa pelas brasas, e, delas colhi, a ternura da endurecida caminhada. Desde que te perdi, ó sangue, sou eu mesma, a que espezinhada e amedrontada, se ergueu do adormecimento, para ser, e apenas isso: ser e existir no vento que atravessa os desertos.


[e, com o tempo, vai terminando o patético e odioso labor dos umbigos.]

terça-feira, 19 de abril de 2011

«-Também o peixe é meu amigo - disse em voz alta. Nunca vi nem ouvi falar de um peixe
assim. Mas tenho de o matar. Agrada-me pensar que não temos de matar as estrelas.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956. p.80/1

Sailboat At Sea

«Peixe! - disse a meia voz. - Hei-de ficar contigo até morrer.                                (p.58)


«Peixe - disse. - Amo-te e respeito-te muito. Mas hei-de matar-te, antes do          (p.60)
dia acabar.»




Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956.
«Tinha escolhido permanecer nas águas fundas e sombrias, fora dos laços, das traições, dos engodos. E eu escolhi ir até lá ao encontro precisamente dele. Precisamente dele e de ninguém mais. E agora estamos unidos, e têmo-lo estado, desde o meio-dia.E ninguém pode ajudar-nos, a qualquer de nós».
«Talvez eu não devesse ser pescador, pensou. Mas foi para o que nasci.Não devo esquecer-me de comer a «tuna», antes de aclarar».


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 56

segunda-feira, 18 de abril de 2011

« Acalma-te, sê gentil - disseram-lhe os outros.
-Tu tens sempre argumentos para criticar as empresas dos teus camaradas não podes impedir que alguém se ria um pouco das tuas...
-Eu não ofendo ninguém: limito-me a precisar os factos, com lugares, datas e provas!
-Fui eu que falei. Também eu vou provar!»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93
«Nem defende nem ataca, nada tem sentido - disse Torrismundo. - A guerra durará até à consumação dos séculos, não haverá nem vencedor nem vencido, ficaremos uns em frente dos outros para sempre. E sem uns e outros não seriam nada. E doravante somos nós que esquecemos porque combatemos...Ouves estas rãs? Tudo o que fazemos tem tanta lógica e tanto sentido como o seu grasnar, os seus saltos da água para a margem e da margem para a água...»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93

Não se pode estar seguro de nada...

« E de que queres tu estar seguro? - interrompeu-o Torrismundo. - Decorações, postos, pompas, títulos...Tudo é uma patarata. Os escudos, com os feitos e as divisas dos paladinos, não são de ferro: são de cartão, que se pode atravessar com um dedo, de lado a lado.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 92

Nieves, Model of Diego Rivera, Cuernavaca

QUANDO LI ESTE LIVRO

«Quando li este livro, a famosa biografia,
E então é isto (disse eu) aquilo a que o autor chama a vida de um
                  homem?
E é assim que, depois de eu ter morrido e desaparecido, alguém
                  irá escrever a minha vida?
(Como se alguém soubesse na verdade qualquer coisa da minha vida,
Na realidade eu próprio muitas vezes penso pouco da minha vida,
                  da minha vida real,
Apenas algumas suspeitas, alguns indícios difusos e vagos ou
                  sugestões dissimuladas
Que procuro para meu próprio uso descobrir aqui.)



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p.11
«Ninguém devia estar só na velhice, pensou. Mas é inevitável.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 54

« (...), e fez por não pensar, aguentar apenas.»

Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 52
«Come, de maneira a que o bico do anzol se te espete no coração e te mate, pensou. Vem para cima sossegado, que eu meto-te o arpão. Muito bem. já acabaste? Estiveste à mesa o tempo que quiseste?»



Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 50

domingo, 17 de abril de 2011

(...)

«Eis aqui os nossos pensamentos, pensamentos de viajantes,
Eis que aparece não só a terra, a terra firme (poderão eles então dizer),
Aqui o céu forma um arco, sentimos sob os pés o balançar do convés,
Sentimos a longa pulsação, o fluxo e o refluxo do movimento sem fim,
Os sons do mistério invisível, as vagas e vastas sugestões do mundo marítimo,
                as sílabas líquidas e fluentes,
O perfume, o ligeiro ranger do cordame, o ritmo melancólico,
A vista ilimitada e o longínquo e indistinto horizonte estão todos aqui,
E é este o poema do oceano.»



Walt Whitman. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Círculo de Leitores., p.6

«Sempre pensava no mar como la mar, que é o que o povo lhe chama em espanhol, quando o ama.»

«(...) . Mas o velho sempre pensava no mar como feminino, como algo que entrega ou recusa favores supremos, e, se tresvariava ou fazia maldades era porque não as podia deixar de as fazer. A lua influi no mar como as mulheres, pensava ele.»



Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p. 34/5

Sim, Senhor!

«- Quando eu era da tua idade, ia de marujo num navio rumo à África e vi leões nas praias ao anoitecer.»


Ernest Hemingway. O Velho e o Mar. Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Ilustrações de Bernardo Marques. Edição «Livros do Brasil», Lisboa, 1956, p.26

sábado, 16 de abril de 2011

« - Eh pintainho, tens um belo encher de peito para a nossa paladina. A ela, agora, só lhe agrada uma couraça limpa por dentro e por fora. Não sabias que está apaixonada por Agilulfo?
   -Mas como pode ser...Agilulfo...Bradamante...Como é possível?
   -É possível quando uma mulher perdeu o desejo por todos os homens existentes, e o único desejo que lhe resta é por um homem que não existe...»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
    «No limite do campo, Agilulfo passava lentamente. Sobre a armadura branca pendia um longo manto negro. Caminhava como quem não quer olhar, mas sabe que o olham, e crê dever mostrar que isso não lhe importa, quando, pelo contrário, importa-lhe sim, mas de uma maneira diferente daquela que os outros poderiam compreender.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
« - Acertas no alvo, mas sempre por acaso.
   - Por acaso? Não falho uma flecha.
   -Mesmo que atirasses bem cem flechas, era sempre por acaso.
   -Então o que é por acaso? Quem consegue acertar sem ser por acaso?»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher...

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher: mas é bem o amor que ela lhe inspirara? Ou não é antes o amor por ele próprio, a busca de uma certeza de existir que só a mulher lhe pode dar? Corre e enamora-se o jovem, duvidando de si mesmo, feliz e desesperado; para ele a mulher é esta presença incontestável, e só ela pode dar-lhe a prova desejada. Mas também a mulher está e não está ali: ei-la, assim como ele, ansiosa e insegura. Como é que o jovem não se apercebe disso? Que importa qual, entre os dois, é o mais forte ou o mais fraco? Estão à mesma altura. Mas o jovem não sabe porque não quer saber: o que ele deseja, avidamente, é a mulher que existe, a mulher indubitável. Ela, ao contrário, sabe mais coisas; ou menos; de qualquer maneira sabe outras coisas; agora é uma maneira diferente de ser que ela procura; fazem, em conjunto, um concurso de tiro ao arco; ela ri-se dele e não o aprecia; ele não sabe que é para se divertir.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 87

sexta-feira, 15 de abril de 2011

«Em definitivo, a guerra é um tanto matadouro, um tanto rotina, e não vale a pena olhá-la de muito perto.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 84

Rambaldo arrasta um morto e pensa

Rambaldo arrasta um morto e pensa: «ó morto, eu corro, eu corro para chegar aqui, como tu, para me fazer arrastar pelos calcanhares. O que valem esta fúria que me impele, esta ânsia de batalhas e de amores, vistas de onde as observam os teus olhos fechados, a tua cabeça caída que bamboleia sobre as pedras? Eu o sei, ó morto, és tu que me fazes saber. Mas o que muda? Nada. Não existem outros dias além daqueles nossos dias que nos levam à cova, para nós, vivos, e também para vós, mortos. Que me sejadado a não desperdiça-los, não perder nada do que sou e do que poderei ser.Cumprir acções ilustres para o exército franco. E abraçar, abraçado pelaorgulhosa Bradamante. Espero que tenhas empregado bem os teus dias, ó morto.Para ti, os dados já foram lançados. Para mim, ainda rodopiam no copo. E euamo, ó morto, a minha ansiedade, não a tua paz.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 78

terça-feira, 12 de abril de 2011

(...)

«Já vindo ao coração veneno assim bebido,
no coração lançou frio desconhecido;
Já só consigo ver por uma nuvem densa
céu e marido a quem ultraja esta presença;
vem a morte roubar-me aos olhos a clareza
e ao dia, onde eram mancha, outra vez dar pureza.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 167

CENA V: TESEU, PÂNOPE

PÂNOPE

Ignoro o que a rainha a projectar medita,
Senhor. Mas temo bem a exaltação que a agita.
Desespero mortal se pinta em sua tez
e seu rosto já tem da morte a palidez.
Já da presença dela expulsa, e infamada,
Enone ao fundo do mar se atirou, desvairada.
Desígnio tão febril não sei como lhe veio
e a levam para sempre as ondas no seu seio.


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 153

segunda-feira, 11 de abril de 2011

ARÍCIA

(...)

«Pois do seu coração não tendes consciência?
E tão mal distinguis o crime e a inocência?»



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 151
«Minos julga no inferno os pálidos humanos.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 137
«Que fogo mal extinto em meu peito desperta?
Que raio, ó Céu, que aviso em tão funesto brilho!»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 131

sexta-feira, 8 de abril de 2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

dos caríssimos que me caem no blogue com pérolas destas.
 Nem sei o que diga. Bem, pelo menos, serve-me para rir um pouco.

«eu quero o karalho do poema de camilo pessanha que ? a clepsydra»

''Os fermentos mais impuros''

''Toda a terra é terra, e pouco importa onde é semeada, desde que a semeemos.''

Doresse, Les livres secrets des gnostiques d’Égypte, pg. 17.


«Esta é a utilidade da memória:
Libertação – não diminuição do amor mas crescimento
Do amor para além do desejo, e assim libertação
Do futuro e do passado.»

terça-feira, 5 de abril de 2011

«Combater com um companheiro ao lado é mais belo do que combater sozinho: encoraja e conforta. E o sentimento de ter um inimigo e o de ter um amigo fundem-se no mesmo calor.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 59/60

segunda-feira, 4 de abril de 2011

«Antes de um grande crime, alguns crimes há.»

...

Um dia só não faz de um mortal virtuoso
um pérfido assassino e um torpe incestuoso.


Hipólito



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 121
(...)

«Tanto golpe imprevisto em mim desaba atroz
que sem palavras fico e se me abafa a voz.»

Hipólito



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 121
(...)

«Não se devia até, nalguns sinais, enganos
ver logo, e o coração dos pérfidos humanos?»

Teseu



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 117
(...)

«Não sei para onde vou, não sei mesmo onde estou.
Ó ternura! Ó bondade a ser paga em tormento!»


Teseu


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 115

domingo, 3 de abril de 2011

«(...) O vale abria-se, estriado pelos férteis campos de aveio e sebes dos medronheiros, onde o vento corria em grandes rajadas, carregadas de pólen e de borboletas. No céu flutuava a espuma das nuvens brancas.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 41
« - Dai-lhe uma gamela de sopa! - disse, clemente, Carlos Magno.
    Com caretas, contorções e propósitos incoerentes, Gurdulú retirou-se para comer, debaixo de uma árvore.
    - Mas que faz ele, agora?
     Estava procurando meter a cabeça dentro da gamela, pousada no chão, como se quisesse entrar dentro dela. O bom jardineiro aproximou-se e puxou-o por um ombro: - Quando é que compreenderás, Martinzúl, que és tu que deves comer a sopa, e não a sopa te comer? Não te lembras? Deves levá-la à boca com a colher.
    Gurdulú começou a meter colheradas na boca, com avidez. Utilizava a colher com tanta fúria que, às vezes, errava o alvo. No tronco da árvore, sob a qual estava sentado, abria-se uma cavidade, mesmo à altura da sua cabeça. Gurdulú pôs-se a deitar colheradas de sopa no buraco do tronco.
 -Aquela não é a tua boca! É a árvore - disse o jardineiro.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 40
HIPÓLITO

                                                          
                                                    Porém, demais já me adianto.
                Vejo a razão ceder da violência à lei.
                 Mas pois silêncio eu já rompendo comecei,
                Senhora, continuo: e vos devo informar
                de um segredo que assim não posso mais guardar.
                Um príncipe ante vós se mostra deplorável,
                de um temerário orgulho exemplo memorável.
                Eu que, contra o amor me revoltei altivo,
                e em ferros insultei quem dele era cativo;
               que naufrágios chorando em tão fracos mortais,
               pensei sempre de bordo olhar os temporais;
               sob essa comum lei sofrendo o jugo ao fim,
               que turvação me faz longe me ver de mim?
               Um momento venceu a minha audácia imprudente:
                esta alma tão soberba enfim é dependente.
               Mais de seis meses já, em pejo e em desgraça,
               dentro de mim levando um dardo que espedaça,
               contra vós, contra mim, me ponho à prova em vão:
               sois presente e vos fujo; ausente, e estais-me à mão:
               dos confins da floresta eis que a vossa figura
               me segue; e a luz do dia e até a noite escura,
               tudo a meus olhos traça encantos que evito,
              e tudo a mim rebelde a vós leva contrito.
              Eu mesmo, e é fruto só de tanto assim cuidar,
              eu me procuro já, sem nunca me encontrar.
              Arcos, dardos, corcel, tudo me é importuno.
              Já não lembro sequer lições que deu Neptuno.
              Ao som do meu gemer os bosques estremecem
              e meus pagens em ócio a minha voz esquecem.
              Talvez que a narração de amor tão desvairado
              vos traga algum rubor pelo que haveis causado.
              De um peito dado a vós, que duro tratamento!
              E que estranho cativo em tão belo tormento!
              A oferta a vosso olhar maior fora e tamanha.
              Pensai que vos falei nalguma língua estranha,
              sem rejeitar o voto expresso em pouco jeito,
              que Hipólito sem vós jamais teria feito.



Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 73/4
ARÍCIA

Bondades moderai, o excesso me embaraça.
Tão generoso sois, honrando-me a desgraça,
Senhor, que me ides pôr, e mais do que pensais,
sob as austeras leis de que me libertais.




Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 69
«Uma esperança adoça esta mortal tristeza.»


Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 69

sábado, 2 de abril de 2011

Tenho notado que, por todo o lado, os seus nomes mudam conforme as estações. Dir-se-ia que todos estes nomes passam por ele, sem nunca conseguirem fixar-se. É-lhe indiferente o nome que lhe dêem. Chamaste-lo e ele julgou que chamaste uma cabra: direi «queijo» ou «torrente» e ele responderá: «Estou aqui!»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 38
Powered By Blogger