quarta-feira, 13 de outubro de 2010


I write about myself with the same pencil and in
the same exercise book as about him. It is no
longer I, but another whose life is just beginning.

Samuel Beckett

«O contexto histórico-filosófico de Beckett (1906-1989) é a passagem do existencialismo para o pessimismo. Eis a situação do sujeito do século XX, após vivenciar os anos de guerra. As paisagens inóspitas e os diálogos de seus personagens que denunciam a impossibilidade de comunicar algo são evidências da realidade do pós-guerra. Sua linguagem sem ornamentos tem como função ressaltar o silêncio dos personagens. Seu teatro exprime a angústia de personagens que se encontram condenados à incapacidade de a linguagem comunicar o que sentem.»





ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.22


Atraco-me comigo, disparo uma luta. Eu e meus alguéns, esses
dos quais dizem que nada têm a ver com a realidade e é
somente isto que tenho: eu e mais eu
H.Hilst

«Desejo de eternizar-se. Desejo de abdicar da vida social para se dedicar totalmente à literatura. Desejo de alcançar a verdade, o conhecimento, a compreensão da vida e da morte. Desejo de ser santa aos oito anos de idade, quando era interna no colégio de freiras. Desejo de escrever um livro a cada novo amor que surgia em sua vida. Desejo de traçar um roteiro para a sua obra, mesmo que o final deste roteiro fosse dar no silêncio: “eu fui atingida na minha possibilidade de falar”. Eram tantos os desejos dessa autora, leitora de Joyce, Beckett, Kafka, Nietzsche, Kierkegaard, Kazantzákis, só para citar alguns de seus autores preferidos.»



ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.16
How far does the Truth admit of being learned?
Kierkegaard
«Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contacto com quem está possuído pelo demónio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.»

Georg Lukács
«-Vê, Nikhil, como a Verdade adquire carne e sangue no coração de uma mulher! - exclamou Sandip Babu. - A mulher sabe ser cruel, a sua virulência é como uma tempestade cega: maravilhosamente terrível. No homem é feia porque contém no seu âmago os vermes corrosivos da razão e do pensamento.

(...)


Vem, pecado, ó belo pecado!
Que teus esbraseantes beijos vermelhos derramem
ardente vinho tinto no nosso sangue!
Faz soar a trompa do mal imperioso
E atravessa na nossa fronte a coroa da exultante
ilegalidade!
Ó Deusa da Profanação,
Mancha sem vergonha o nosso peito com a mais
negra lama do descrédito!



Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 29
«Se fosse necessário preencher, pouco a pouco, o espaço entre o dia e a noite, levar-se-ia nisso uma eternidade. Mas o Sol nasce e as trevas dissipam-se, basta um momento para abarcar uma distância mínima.»


Negrito
Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 16

106.

Rasgos de Loucura



III

Os olhos são coisas raras.
Neles o sentido se transforma em vida.
Neles a vida tem asas.

Olha para mim. É louco e estranho o teu olhar.
Uma luta interior se vê reflectida.
Mais que belo Horror ele vem revelar!

IV

1.

Quanto tu falavas, apenas sentia
Um terror alienado e estranho.
Imagina. Ajoelhar-me poderia
Ante teus lábios, seu mover, seu desenho.
A forma dos lábios, cheia de expressão,
E teus dentes meio descobertos
Eram do delírio, chicotes despertos.
Senti desaparecer minha razão.

Um fetichismo mais que sensual
Visita minha mente delirante.
Maior do que o abismo se apresenta
A fenda entre a razão e sentimento,
Aberta ao alvião do sofrimento.

Tudo contém mais do que aparenta.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 241
«E, de modo estranho e indefinido,
Perdidos no Todo, um só vivente,
Essa prisão a que eu chamo a alma
E esse limite a que chamo mente.»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 233
«Lamento o passado e temo o futuro,
Choro e desejo o que nunca fui eu,
Aquilo que não houve na Natureza
E o que havendo nunca será meu.

Saudade do prazer que já é passado,
Tristeza da dor outrora vivida,
A dor do que visto em vagas visões
É apenas eco da amargura tida.»

(...)



91. A minha vida


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 201

89.

O Lábio


Um dia em delírio entorpecido,
Onde vi estranhas coisas a passar,
Vi num sonho, sem luz alguma a brilhar,
Um homem com um só lábio -
Exactamente, exactamente,
Exactamente um só lábio.

Lembro bem que ele não tinha rosto
Nem nariz, com a ponta para vê-lo,
Nem olhos, nem faces, nem cabelo
Mas apenas só um lábio -
Um somente, um somente
Apenas um, um só lábio.

Podeis pensar nisto sem terror?
E nenhum outro lábio ressalva
À visão, nem tampouco lhe faltava:
Havia somente um lábio.
Vendo-o como eu, ficaríeis loucos -
O homem com um só lábio.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 197/8

terça-feira, 12 de outubro de 2010

New Yorker Review of Books
"with enough time, enough afterlife, a great book does find its rightful place. And perhaps some books deserve to be rediscovered again and again" (com tempo suficiente, vida post mortem suficiente, um grande livro encontra o seu lugar de direito. E talvez alguns livros mereçam ser redescobertos várias vezes).



Na minha capital

V


Mas que encontrei eu na minha capital?
A morte com a sua boca de cinzas, aniquiladora, sede e fome,
que repugnava, porém, à minha própria fome, porque era
uma fome de carne e de pão, de rostos e retretes,
uma fome que balbucia o opróbio desta cidade,
uma fome de mesquinhez,
brilhando de janela a janela, gerando primavera e glória pútrida
sob as escadas do céu.
Eu estava preso e de podridão cansado,
longe das florestas e longe dos anseios da morte de anos em ruínas.
As pedras cinzentas e inconsistentes deste vigamento clamavam em
fúria,
mas eu mesmo não era mais que risadas, risadas do Inferno,
que me fizeram esquecer a cilada dos homens em que eu tinha caído,
uma hora negra do mundo
no vento de Novembro da minha existência...




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 87
(...)

«Vós não dizeis nada, porque estais demasiado doentes para dizer
o que
tem de ser dito, o que faz tão tristes estes montes
e este nascer do Sol e esta labuta dos camponeses
e esta labuta dos pássaros
e esta labuta que cria destruição em cada caule, em cada leito de rio,
por toda a parte onde as mãos estão por cima da terra.»





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 81

segunda-feira, 11 de outubro de 2010


Por trás das árvores há um outro mundo

Por trás das árvores há um outro mundo,
o rio traz-me as queixas,
o rio traz-me os sonhos,
o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas,
sonho com o Norte...

Por trás das árvores há um outro mundo,
que o meu pai trocou por dois pássaros,
que a minha mãe trouxe para casa num cesto,
que o meu irmão perdeu no sono, quando tinha sete anos e estava
cansado...

Por trás das árvores há um outro mundo,
uma erva que sabe a tristeza, um sol negro,
uma lua dos mortos,
um rouxinol que não pára de se queixar
do pão e do vinho
e do leite em grandes jarros
na noite dos prisioneiros.

Por trás das árvores há um outro mundo,
eles descem em longos sulcos
para as aldeias, para as florestas dos milénios,
amanhã perguntam por mim,
pela música dos meus achaques,
quando o trigo apodrece, quando de ontem
nada ficou, dos seus quartos, sacristias de espera.
Quero deixá-los. Já não quero
falar com nenhum,
eles atraiçoaram-me, os campos sabem-no, o sol
há-de defender-me, eu sei,
cheguei tarde de mais....

Por trás das árvores há um outro mundo,
aí há uma outra quermesse,
na caldeira dos camponeses bóiam os mortos e em volta dos charcos
derrete-se em silêncio a gordura dos esqueletos vermelhos,
aí já nenhuma alma sonha com a roda do moinho,
e o vento compreende
apenas o vento...

Por trás das árvores há um outro mundo,
a terra da podridão, a terra
dos negociantes,
deixa atrás de ti uma paisagem de sepulturas
e tu irás destruir, irás dormir cruelmente
e beber e dormir
de manhã à noite, de noite até de manhã,
e não hás-de entender mais nada, nem o rio nem a tristeza,
porque por trás das árvores,
amanhã,
e por trás dos montes,
amanhã,
há um outro mundo.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 61/63
«Mas o meu marido recusava-me qualquer ensejo de o adorar. Aí residia a sua grandeza. Aqueles que exigem absoluta devoção por parte das mulheres, como um direito que lhes é devido, não passam de cobardes. Tal exigência é uma humilhação para ambos.
O seu amor por mim era uma tal enxurrada de riqueza e dedicação que parecia ultrapassar todos os limites. Mas eu precisava mais de dar do que receber, porque o amor é um vagabundo e, às vezes, as suas flores desabrocham melhor na poeira das bermas da estrada do que nas jarras de cristal nas salas.»
Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 9/10

domingo, 10 de outubro de 2010

«O meu coração está cada vez mais negro,
porque de asas negras se encontra
coberto.»



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 53

Que farei...

Que farei
quando nenhum palheiro mendigar para a minha existência,
quando o feno arder em aldeias húmidas,
sem coroar a minha vida?
Que farei
quando a floresta crescer apenas na minha fantasia,
quando os regatos só já forem artérias vazias e lavadas?

Que farei
quando já das ervas não vier qualquer mensagem?
Que farei
quando estiver esquecido por todos, por todos...?


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 49

76.

Raiva

Sinto uma raiva - sim, uma raiva! -
Do tempo que passa sem se deter,
Sede de vida que nada acalma,
Um ódio que nada pode reter.
E cada hora que sinto passar
E funde a noite com um novo dia
Faz, de pensá-lo, a alma clamar:
«Tortura eterna, tortura sem fim!
Os dias passam e nem uma acção!
Um forte desejo, como uma cobiça
Da vontade ausente - Oh, desolação! -
Um sonho dorido, condenado em mim!»

Sinto uma raiva! Raiva por sentir
Tristeza e mistério, em confusão,
Até que a mente num rodopiar,
Louca, contempla essa maldição
Descarnada, que é o mundo a passar,
Como ante um crime fica um paralítico
Sem ter o poder para o evitar.
Diante do sol, eu sinto estranheza,
Frente ao rio, aos campos, fico angustiado,
Sinto-me um cínico ante a baixeza
E, perante Deus, um revoltado.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 169/171

«Numa vida doce eu temo pensar,
Família e amigos perto de mim.
Meus olhos detestam o encontrar
Do que é finito - a rua, o lar
E todas as coisas que têm fim.
Não sei o que é que aspiro a ter
Mas isto sei que não posso querer.

Em constante desajuste assim
E frio perante o que é vulgar,
Desço no próprio inferno até ao fim,
Ouvindo o sino a dobrar em mim
Que do meu envelhecer me vem falar,
Mas isto num tom tão estranho vem
Que da Mudança o mistério contém.»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 163
«Silêncio! Que os sãos fiquem daí e os loucos deste lado.»


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 145

54.

Mania da dúvida

Tudo para mim é um duvidar
Com a normalidade sempre em cisão,
E o seu incessante perguntar
Cansa meu coração.
As coisas são e parecem e o nada sustém
O segredo da vida que contém.

A presença de tudo sempre perguntado
Coisas de angústia premente,
Em terrível hesitação experimentando
A minha mente.
É falsa a verdade? Qual o seu aparentar
Já que tudo são sonhos e tudo é sonhar?

Perante o mistério vacila a vontade
Em luta dividida dentro do pensar,
E a Razão cede, qual cobarde,
No encontrar
Mais do que as coisas em si revelam ser,
Mas que elas, por si só, não deixam ver.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 117
«Porque, amigo, embora seja a loucura
Ora doce, ora dor inominada,
Nunca a dor humana a dor atura.»


51. A dor suprema


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 113



«Só há sombras onde eles misturavam água no mel
e vendiam vacas doentes a cidades cinzentas e obscuras, onde
roubavam às mães a erva e a vida e
ensinavam os filhos a morrer em colinas abandonadas.
Só há sombras e bancos desconfortáveis que não deixam
à minha carne, por muito que te esfaltes, a glória
que lhe é devida após as suas viagens.»

(...)



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 43

sábado, 9 de outubro de 2010

Podridão

Vi a Terra imperecível como o Sol
quando regressei ao sono, em busca do meu pai,
que trouxe a mensagem do último vento
à minha miserável condição, que molestava a sua glória,
a glória de que ele dizia: «Os grandes destinos
são um fracasso para amanhã...»
Imperecíveis elevavam-se as florestas, que enchiam outrora
a noite com as suas queixas e o seu discorrer
sobre o mosto e o declínio. Só o vento
passava sobre as espigas, como se a Primavera vivesse
no meio desta doce podridão.
A neve tomava uma atitude hostil e fazia-me
arrepiar os braços e as pernas, ao olhar
o Norte agitado, que parecia uma cemitério gigantesco
e inesgotável, o cemitério dos prisioneiros
desta forma de progresso, que se
insinuava em cada encruzilhada, em cada pedra de gleba
e em todas as estradas e igrejas, cujas torres se
levantavam contra Deus e contra os convidados da boda,
que se acocoravam em volta do barril de vinho, para o
beberem todo com gargalhadas imundas.
Como é que eu vi na aldeia, em cima das tábuas, estes mortos,
com ventres inchados, comendo carne vermelha,
tartamudeando os hinos da cerveja forte,
a podridão, que furtivamente deslizava pela esplanada
sob o bramir indolente do trombone...
Ouvi o lento respirar da depravação
entre as colinas...
Vi a Terra imperecível como o Sol,
a Terra, cujo Agosto estava enfermo e era irrecuperável
para mim e para os meus irmãos, que aprenderam
o seu ofício melhor do que eu, que
ando torturado por milhões de mendicâncias e já
nenhuma árvore encontro para as minhas conversas de loucura.
Saí de uma noite do Inferno
para uma noite do Céu,
sem saber quem terá de espedaçar a minha vida
antes de ser tarde de mais para falar de glória e valentia,
da pobreza e dos mundanos desesperos
da carne, que me há-de aniquilar...





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 38-41

Nas arcas negras da terra dos camponeses

Nas arcas negras da terra dos camponeses
está escrito que eu terei de morrer no Inverno,
abandonado pelos meus sóis e pelo sussurro dos baldes,
dos baldes cheios de leite mungido,
pronunciando o tormento e o fim sob os golpes do vento de Março,
que me esmaga com a evocação
das macieiras em flor e do feitiço das eiras!
Nunca aniquilei uma noite com palavras afrontosas
nem com lágrimas, mas este tempo, este tempo absurdo,
extinguir-me-á
com a sua poesia seca e afiada como uma faca!
Terei não só de suportar o abandono, mas também
de conduzir o gado dos meus pais e das minhas mães através dos milénios!
Terei de criar chuva
e neve e maternalidade
para os meus crimes e louvar a raiva
que me arruína a seara nos meus próprios campos!
Reunirei os negociantes e as prostitutas de sábado num ponto da
floresta
e oferecerei esta terra, esta terra triste,
ao seu feroz desespero!
Farei entrar mil sóis na minha
fome! Amanhã criarei
algo de transitório para a imortalidade,
perto das fontes e das torres e longe
dos artesãos,
numa madrugada que está farta dos meus sofrimentos
e na qual não acontece senão o retorno das estrelas à sua morada...
...é aí que quero falar com os desesperados
e deixar tudo
o que foi desprezo, amargura e nojo deste mundo.




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 31-33

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

49.

Lamento


Quereria de novo ser menino
E tu também criança, doce e pura;
Pudéssemos ser livres, sem destino,
Em nossa consciência, de obscura;
Jogos loucos pudéssemos jogar
Sob a ramagem calada e sombria,
Nomes de contos de fadas usar,
Eu de senhor e tu de senhoria.

E tudo seria plena candura
E desejo saudável de pensar,
E quanta dança e quanta travessura
Fariam nossos pés sem descansar;
E eu bem de palhaço actuaria
Para o teu riso infantil ganhar,
E de minha querida eu te chamaria
Sem outra coisa querer significar.

Sentados juntos nos comoveríamos
Com contos ora tristes, no passado;
Não tendo sexo, não nos amaríamos,
O bem sem contra o mal ter lutado.
E numa flor nosso prazer teríamos,
Barco do tesouro a casca de noz:
À noite num armário fechá-lo-íamos
Como na memória um prazer, a sós.

Gastaríamos o tempo, qual riqueza
De um bem grande de mais para fartar,
Gozaríamos saúde e a pureza
Sem saber que os gozámos a gozar...
Ah, quão mais amargo é tudo isso agora
Que um sentimento em mim faz regressar -
O saber de que se nos foi embora
E do que isso deixou em seu lugar.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 108-111

Foto Henri Cartier-Bresson/Magnum. Martine Franck retratada por Henri Cartier-Bresson, de quem foi assistente e esposa.

43.

Nirvana

Um não-existir dentro do Ser,
Um etéreo não-ser fundo sentido,
Uma mais que real Idealidade,
Sujeito e objecto um todo unido.

Nem Vida ou Morte, razão ou sem-razão,
Mas fundo sentir do não-sentimento,
Que calma profunda! Mais funda que a angústia,
Talvez como um pensar sem pensamento.

Beleza e fealdade, amor e ódio,
Virtude e vício - tudo já estranhezas;
Essa paz toda calma apagará
De nossa vida e eterna incerteza.

Um sossego de toda a humana esp'rança,
Um fio de exausto, febril respirar...
A alma em vão tacteia a expressão certa;
A lógica da fé vai ultrapassar.

Um oposto de alegria, do fundo
Desconsolo pela vida que temos,
Um acordar para o sono que dormimos
Um dormir para a vida que vivemos.

Tudo diferente da vida que é nossa
E do que atravessa o nosso pensar;
É um lar se vida nos é túmulo,
É um túmulo se nossa vida um lar.

Tudo o que choramos e o que aspiramos,
Como a criança ao peito, ali está,
E seremos mais do que desejamos
E nossas almas malditas terão paz.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 94-97
«Que pensamento buscas sem achar?
Teu espírito tem asas, p'ra que alturas?
Que alta visão lhe dói até cegar?»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 95

38.

Fragmento de delírio

Não sei se em mim a mente se quebrou
Nem se a razão me foi adoecer;
Não sei se o amor é só o último sinal
De Deus em mim, ou a voz que se calou
No caos do querer.

Meu pensar deve ser o da loucura
E minha alma é por fantasmas habitada -
Formas grotescas e estranhas a rolar
Em minha mente, quais vermes em sepultura...




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 91
- ¿Qué es lo que tanto te llamó la atención?
- ¿Que tienen de particular los habladores?
(...)
- Son una prueba prueba palpable de que contar historias puede ser algo más que una mera diversión – se me ocurrió decirle - . Algo primordial, algo de lo que depende la existencia misma de un pueblo.


(...)

((Es hora de descasar)), ((Es hora de sentarse a escuchar lo que habla)). Así lo hacían: descasaban con el sol o se reunían a oír el hablador hasta que empezaba a oscurecer. Entonces desperezándose, decían: (( Ha llegado el momento de vivir.)) p.62

Mario Vargas Llosa. El hablador. Santiago: Siex Barral, 1987

Prémio Nobel da Literatura 2010: Mario Vargas Llosa


Ver aqui a página oficial do autor.
«Segundo Vargas Llosa, não há “grande arte sem uma certa dose de irracionalidade”, porque “a grande arte expressa sempre a totalidade humana, na qual existe intuição, obsessão, loucura e fantasia, ao mesmo tempo que ideias. Na obra de Sartre, o homem parece exclusivamente composto destas últimas.” Chegou, então, à conclusão que “sua obra literária envelheceu de maneira terrível”, havia nela “uma escassa originalidade”. (VARGAS LLOSA, 1986:232-233).»

«Toda teoria que se apresenta como absoluta, como o cristianismo ou o marxismo,acaba, cedo ou tarde, por justificar o crime e a mentira. Questionado sobre o que seria essa“moral dos limites”, Camus afirmou que consistia “em admitir que um adversário pode ter razão, deixá-lo expressar-se e aceitar reflectir sobre seus argumentos” (apud VARGASLLOSA, 1986:332). »


Vidal, A. C (2009). Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus. Revista Brasileira de História & Ciências , - Número I .

¿de dónde venimos?¿quiénes somos?¿adónde vamos?


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

“... nenhuma mãe arranca os olhos de um príncipe, por ele achar bela a filha”.

Gotthold Ephraim Lessing. Emilia Galloti: Uma Tragédia em Cinco Actos. São Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2007.
As acções são o objecto próprio da poesia”. (...) a pintura também pode imitar acções,
porém só de maneira alusiva através de corpos.

De outro lado, (...) a poesia também pinta corpos, porém só de maneira alusiva através de acções.

A pintura, em suas composições coexistentes, só pode utilizar um único momento da acção,tendo de se escolher por isso o mais fecundo, a partir do qual o antecedente e o subsequente se tornam ao máximo inteligíveis”


Gotthold Ephraim Lessing
,Laokoon (Laocoonte ou Sobre os Limites da Pintura e Poesia), de 1766

“O enigma de Kaspar Hauser” - de Werner Herzog, 1974

Para o Prof. Eduardo Soveral

«Ah, quando, em mim, eu for minha esperança,
Meu próprio ser, divino e redimido.
E minha sombra apenas for lembrança
Bem longe, em outro mundo transcendente,
À luz sem sol jamais anoitecido,
Serei contigo, amor, eternamente.»

Teixeira Pascoaes, Elegias, Renascença Portuguesa, Porto, 1912.

Para Vivenciar Nadas

para e com chiara, bea, valérie
borboleta é um ser irrequieto4.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raíz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arco-íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

Ondjaki, Há Prendisajens com o Xão O Segredo Húmido da Lesma &Outras Descoisas, Lisboa, Editorial Caminho, 2002, pp. 38/39

terça-feira, 5 de outubro de 2010

(This Photograph is My Proof, 1974)


"This photograph is my proof. There was that afternoon, when things were still good between us, and she embraced me, and we were so happy. It did happen, she did love me. Look see for yourself!" , Duane Michals
«O ensaio de Eduardo Lourenço apresenta-se, assim, como uma espécie de escrita contra a escrita, naquele duplo sentido da expressão «ir contra» que está também presente em Wittgenstein quando se propõe «investir contra os muros (os limites) da linguagem», assumindo o risco de sair dessas investidas com alguns inchaços na testa. Alimentando-se mais de paixões do que de regras, ele desenvolve-se, em última análise, em espirais de pensamento e de escrita que lhe permitem, quer dar a ver o não visto, quer sugerir o não-dito através do entre-dito e do interdito. Gravando em cada linha o seu desenho de lapidares cintilações do (im)preciso, a sua palavra pode ser como a da poesia: bloco errático, solitário, de onde salta o silêncio das ideias ou a acutilância da visão clarividente.»


João Barrento. As pedras brancas de Eduardo Lourenço, p.5
«Em cada ensaio de Eduardo Lourenço se sente essa luz que revela o objecto, que o abre iluminando-o de tantos lados que não se chega a saber qual deles está mais próximo da finalidade última da busca, a de uma qualquer «essência», sempre à espera de revisão. José Gil di-lo também quando escreve: «Nunca um ensaísta, para escrever sobre o não sentido e o Nada, deu a ver com tanta diversidade e profusão o sentido de tudo.»

João Barrento. As pedras brancas de Eduardo Lourenço, p.4

Martine Franck


A atenção à vida presente nos três principais heterónimos de Fernando Pessoa...

“Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”
“levantar a torre do meu canto/é
recriar o mundo pedra a pedra”


Carlos de Oliveira


“Ao longe, ao luar,/No rio uma vela,/Serena a passar,/Que é que me revela?//Não sei, mas meu ser/Tornou-se-me estranho”



Fernando Pessoa

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

“No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta. A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes. Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia.”
Eduardo Lourenço
“O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a Linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida.”

Eduardo Lourenço

''Krétakör''

«A palavra húngara "Krétakör" quer dizer "círculo de giz", por causa do Círculo de Giz Caucasiano de Brecht: uma pequena área delimitada e escolhida no espaço, onde acontecem coisas importantes e emocionantes, onde surgem conflitos e se tomam decisões. Depois o giz será levado pelas solas dos sapatos e lavado pela chuva, portanto desenhamos outro círculo noutro lugar e esse passa a ser o nosso espaço escolhido, o nosso teatro. »

«As minhas conversas com Ricardo — pormenor interessante — foram logo, desde o início, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efectivamente alguém que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espírito — os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim. E com ele o mesmo acontecera — havia de mo contar mais tarde.
Não éramos felizes — oh não!As nossas vidas passavam torturadas de ânsias, e incompreensões, de agonias de sombra…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.14
«A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava.
Ah! como Gervásio tinha razão, como eu no fundo abominava essa gente —os artistas. Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam petulantemente, que se mostram complicados de sentidos e apetites, artificiais, irritantes, intoleráveis. Enfim, que são os exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior.
Mas, na minha incoerência de espírito, logo me vinha outra ideia: — Ora, se os odiava, era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como eles…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.8
«— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los.
E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não alteraria!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!»




Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.6

Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu
nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…»


Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«Se ficares com a capa do teu próximo em penhor, restitui-la-ás antes do pôr do sol, porque não tem mais nada para se cobrir, é o vestuário com que cobre o seu corpo; com que dormiria ele?»

Bíblia Sagrada, Êxodo, p.111

domingo, 3 de outubro de 2010

Uma corola

Em algum lugar
esplende uma corola
de cor vermelho-queimado
metálico

não está em nenhum jardim
em nenhum jarro
da sala
ou da janela

não cheira
não atrai abelhas
não murchará

apenas fulge
em alguma parte alguma
da vida



Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

O Jasmim

me invade as ventas
no limite do veneno

assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto
fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas

entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
o que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor ou eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas
[ o cheiro da alfazema?

Nasce o perfume com as
[florestas
um silêncio a inventar-se nas
[plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos
[folhas
o aroma
que se torna arbusto
[ - um jasmineiro.

Nos jardins dos prédios
[ (na rua senadir Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis
[ alfazema

(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque:
já o da alfazema
dorme manso nas gravatas
[de roupas

em São Luís
e reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que
[ontem à noite
arranquei flores de um
[jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
- um lampejo entre
[as mãos-
pela rua
sorvendo-lhe o aroma
[selvagem
enquanto foguetes Tomahawk
[caíam sobre Bagdá.





Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O dia dos fantasmas

Amanhã é o dia dos fantasmas. Vão
erguer-se como pó
e desatar às gargalhadas.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que
caíram na terra das batatas. Não posso
negar que eu
sou culpado desta morte dos rebentos.
Sou culpado!
Amanhã é o dia dos fantasmas, que trazem
na fronte o meu tormento,
que possuem o meu trabalho diário.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que dançam
como carne no muro do cemitério
e me mostram o Inferno.
Porque tenho eu de ver o Inferno? Não há outro caminho
para Deus?

Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho
passa pelo dia dos fantasmas,
passa pelo Inferno.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 25
« (...)Com um grande esforço, mesmo com desespero, Bernhard procura conquistar um papel de poeta e um mundo poético que sugere a mortalidade e o pó do mundo vulgar.»
«O jovem poeta sente-se fora do seu tempo e indigno. Mas não quer deixar a poesia. E prefere percorrer, como que numa ronda clássica, o campo e as cidades, olhando a existência humana aqui e além. E chega à conclusão de que a podridão produz a decomposição da vida no campo e de que as cidades calcinadas, despedaçadas, morrem. Há por detrás das aparências um outro mundo, mas este não é o mundo nobre e elevado que se esperava, mas sim um mundo de podridão e de aniquilamento.»

Hugo Diettberner: «Der Dicher wird Kolorist. Thomas Bernhards Epochensprung», in Text+Kritik, Heft 43, Thomas Bernhard, 3. Auflage: Neufassung, November 1991, p.12/13
S'io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma per cìo che giammai di questo fondo
Non tornò viva alcun, s'i'odo il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.



Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre
[a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos de
[uma noite
E restaurantes com serradura e conchas
[de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento
[enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita.

(...)


T.S.Eliot. A canção de amor de J. Alfred Prufrock. Edição bilingue do poema e de um texto crítico de E. Pound. Trad. de João Almeida Flor. Assírio & Alvim, Lisboa, 1985, p.17

Joanne Woodward with Paul Newman


quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«...Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará
oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.2

terça-feira, 28 de setembro de 2010

«Acontece que, tendo-me voltado, nesta ocasião, para o meu percurso, eu me dei conta de que, para não me perder de mim próprio, como na história célebre do Pequeno Polegar dos Irmãos Grimm, fui deixando muitas pedras brancas no meu caminho, mais numerosas do que eu podia imaginar, algumas hoje já desconhecidas de mim próprio. Hoje, nem essas pedras brancas me servem para eu, através delas, reinventar o meu próprio passado. Mas elas estão lá, podem ser lidas por outros, revisitadas como objecto de curiosidade ou objecto de interesse, se o tiverem.»


Eduardo Lourenço a 21 de Janeiro de 2003, por ocasião de uma homenagem pelos seus sessenta anos de vida literária e filosófica.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Green Night

(Summer, 1982)

We walked down the path to breakfast.
The morning swung open like an iron gate.

We sat in Adirondack chairs and argued
for hours about the self—it wasn’t personal—

and the nature of nature, the broken
Word, the verse of God in fragments.

We trotted back and forth to readings.
The trees were the greenest I had ever seen.

We cut bread from a large brown loaf
at a long wooden table in the mountains.

A farmer hayed the meadows
and the afternoon flared around us.

Pass the smoky flask. Pass the cigarettes:
twenty smoldering friends in a package.

We swam in the muddy pond at dusk.
The sky was a purple I had never seen.

Someone was always hungover,
scheming with rhymes, hanging out.

Nothing could quench our thirst for each other.
At the bonfire, we flamed with words.

The houses were named after trees.
I slept with someone at the top of a maple.

It was a green night to be a poet in those days.
We didn’t care if the country didn’t care about us.


Edward Hirsch
Wagner. Horas tenho também de fantasia,
Mas aspiração tal em mim não sinto.
De bosques e de prados cedo farto,
Nunca invejei aos pássaros as asas.
Como o prazer do estudo outro nos leva
De livro em livro, de uma a outra página!
Assim se tornam belas, tediosas
Noites de inverno, e calorosa vida
Os membros nos aquece, e, ai!, se acaso
Um douto pergaminho desenrolas,
É o céu que sobre ti baixar se digna!


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 55

domingo, 26 de setembro de 2010

"Boston Common (Men Sleeping on Grass)"


Com teu rir descarnado, tu, caveira,
Que me dizes, senão que em outro tempo,
Como o meu, delirou teu pobre cérebro,
A luz do dia procurou, com vasto
Desejo de verdade, e vagou triste
Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Mas corações não ganhareis vós nunca,
Se o próprio coração vos ficar mudo.»



Negrito
J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 35
( Toma o livro e pronuncia misteriosamente o signo do
Espírito. - Reluz uma chama avermelhada. O Espírito aparece na chama)


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 33

37.

«Contudo esperamos que este morrer
Seja ilusão só, a enganar;
Que o rio que ora passa a correr
Encontre, inda que longe, um mar;
Que para além do frágil saber
Uma vida maior vá guardar.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
« Como alargado em ópio, ao meu olhar
Meu próprio ser um mistério se fez assim;
A Vida no medo já vem habitar
E a Loucura, como o sopro, está em mim.»

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
«Qualquer burro escoucinha o leão caído
Que, em vida, imóvel o fazia temer,»


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 55



«Gastando com um filho ao colo as forças que parecem falhar,»



(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 49
« Tarde, tarde de mais aprenderás agora,
Já com a voz baixa e de humilde porte,
Já com a alma esmagada sem o garbo de outrora,
O pior mal que os deuses nos dão em sorte.»


(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 47
«À profunda agonia sujeitado;
O que sente o trinco do portal da razão
Cair, com um som de conclusão,
Como algo que se fecha e para sempre passado.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 45
«Ora bem, não sei porquê eu tinha vontade de sair à noite. Em geral prefiro deitar-me e levantar-me cedo, mas há dias em que se sente a necessidade dum pouco de álcool, dum pouco de calor humano, de companhia. Devo ser um sentimental.»
Vernon Sullivan. Morte aos feios. Traduzido do americano por Boris Vian. Versão portuguesa de António Sabler. A Regra do Jogo, Edições, 1981., p. 5

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

«É necessário ter o caos cá dentro, para gerar uma estrela.»


Nietzsche

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

17.

Homens do presente


Homens do presente, nada do passado,
Antes de serdes as coisas que vemos,
Quem podia ter sabido ou pensado
Que seríeis hoje aquilo que temos?
Ah, passantes pela mesma via,
Quem pôde pensar-vos antes deste dia?

Homens do presente e pó de amanhã,
Ao passar dos anos aonde ireis ter?
Que rude mudez ou ânsia em pressa vã
Irá registar vossa dor ou prazer?
Ondas ou cristas do mar desta vida,
Quem vos pensará passado este dia?

Só o génio pode o fogo atiçar
Que na natureza em vós abrigais;
Só o génio pode a lira tocar
E erguer vosso nome aos céus dos mortais;
O génio pode a morte romper
E o nada de ontem num tudo verter.

Mas a virtude, como os choros humanos,
Pelos areais depressa bebida,
Mergulha no pó dos passados anos
E nem sabereis onde está escondida.
Que o génio, então, possa ser laureado;
Que o pó de amanhã seja eternizado.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

domingo, 19 de setembro de 2010

14.

Soneto

Pudesse o que penso exprimir e dizer
Cada pensamento oculto e silente,
Levar meu sentir moldado na mente
A ser natural perante o viver;

Pudesse a alma verter, confessar
Os segredos íntimos em meu ser;
Grande eu seria, mas não pude aprender
Uma língua bem, que expressasse o pesar.

(...)


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

13.

Cá como lá


(...)


«Pois quando no pensar o escuro pesa
E sobre a tua alma a noite desce,
Não regressam de novo os teus pesares?
Não fica a tua alma presa às sombras?
Não sentes em ti que o medo cresce?»




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

Briony

2.

A morte do titã


Do grande ventre da noite a manhã rompeu em dor,
Sobre a terra palpitante ronca a feroz a trovoada,
O Titã acorda enfim, sua cara ensanguentada,
E o rude carvalho arranca, brutal, em seu estertor.

Em agonia mortal delira e, ao seu rugido,
Aves tremem, a costa afunda-se em mar e de terror
Rios secam, montes sucumbem no seu interior,
Rochedos fendem e o manto das nuvens é rompido.

Uiva o relâmpago, os mares extravasam em estrondo;
O gigante vacila e então, com embate hediondo
Cai, e dos tronos brilhantes as estrelas irrompem.

Caiu; a terra alarmada, em louca fúria ferida,
Fendeu, rompeu, vergou; no ar, o eco da praga ouvida;
Mas no céu, o som continuou a sorrir em seu desdém.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11

«(...) a obra literária deve ''educar o gosto''. Gosto que o público, por definição,não possui e que é, portanto, dever do romancista formar.»


Fedeli, M. A mão que balança o berço. Funções do feminino em Júlio Dinis. São Paulo, 2007 Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,.p.34
«E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal.»


Castanheiro, em A Ilustre Casa de Ramires
«Toute oeuvre est réponde à une question, et la question qu'à son
tour doit se poser l'interprète, consiste à reconnaître [...]ce que
fut la question d'abord posé, et comment fut articulée la réponse»

Jean Starobinski

sábado, 18 de setembro de 2010

«Ardo como de mosto embriagado;
Ânimo sinto de arrojar-me ao mundo,
Da terra os gozos partilhar e as penas,
Lutar com a tormenta , e ao estrondo
De naufrágio cruel suster o rosto!»


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 32/3
«Teu mundo é isto?! Chama-se isto um mundo?!
E perguntas ainda porque ansioso
Teu coração no peito confrange,
E oculto sofrer inexplicado
A energia vital em ti comprime?
Em lugar de vivente natureza.
Em cujo seio Deus criou os homens,
Rodeiam-te entre a podridão e o fumo
Somente ossadas nuas e esqueletos.»



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 30/1

Nothing To Hold On To


Vejo só como os homens se afadigam.



J. W. Goethe. Fausto.Negrito Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 22
240 Falar de inspiração pouco aproveita,
Nunca ao homem que hesita ela se mostra.
Se vos dais por poetas, que a poesia
A vosso mando ceda. O que é preciso
Já de mais o sabeis; licor bem forte
245 Desejamos beber; pois sem demora
No-lo dai preparado. Não se cumpre
Amanhã o que hoje não for feito,
E nem um dia só perder se deve.
Um homem resoluto, do possível
250 Lança mão com ardor, fugir não o deixa
E na empresa prossegue, assim lhe é a força.
Sabeis que cada qual nos nossos palcos
Exp'rimenta o que quer; pois neste dia
Prospectos não poupeis nem maquinismos.
255Da lua e sol servi-vos, e aos centos
Espalhai as estrelas. Fogo e águas,
Rochedos, bosques, pássaros não faltem.
Do bastidor no acanhado espaço
A criação inteira se desdobre,
260E caminhai, com rapidez medida,
Desce o céu, pela terra, ao fundo inferno.


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 19/20
«Paixões, razão, engenho e sentimento
Em vossos cantos brilhem; mas cuidado,
Que neles a loucura também entre.



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 15
Trazeis convosco de bem doces dias
A saudosa lembrança. Sombras caras
Ressurgem numerosas; qual remota
Tradição esquecida, vão volvendo
Primeiro amor, antigas amizades;
A memória cruel com dor recorda
A marcha errante que seguiu a vida,
E nobres peitos lembra, que, frustrados
Pela sorte de dias deleitosos,
Antes de mim a vida terminaram.


Dedicatória


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 11

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sonho de prisão

No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).

Canti Orfici

Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Para a Nossa Senhora da Ponte quem é quem é que acendeu a lâmpada – sente-se
No quarto um cheiro a podre: há
No quarto uma chaga vermelha languescente.
As estrelas são botões de madrepérola e a noite veste-se de veludo:
E treme a noite fátua: é fátua a noite e treme mas há
No coração da noite há,
Sempre uma chaga vermelha languescente.


Canti Orfici



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Nemzedékek (1969) · Generations


« (...) sobre a relação entre Literatura e Loucura que é, desde sempre, uma relação complexa e fecunda . Na literatura italiana do século XX, por exemplo, ela manifesta-se através da voz de grandes escritores, como Italo Svevo, que em La coscienza di Zeno cria a personagem do alienado e do «anormal» que é mais «normal» de muitos outros. Ou de Luigi Pirandello que, à volta da temática da loucura, constrói as suas melhores obras teatrais; ou de Cesare Pavese, que igualmente fala de marginalização social e do «ser diferente»; ou ainda Italo Calvino, que cria a ambígua personagem de Palomar, um alieno neste mundo, um estranho.
São todos autores que falam da loucura. Dino Campana não fala dela, mas vive-a na pele, no corpo martirizado, na alma atormentada e recria-a através do poder mágico das palavras.
Nele, a Vida transforma-se, definitivamente, em Literatura.»


Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 115
«Segundo Sebastiano Vassalli, escritor e estudioso de Campana, a presumida loucura do poeta muito tem a ver com os seus sucessivos ataques de sífilis, uma doença que ele terá contraído já em 1915. Doença inconfessável, naquela altura considerada «vergonhosa» e pela qual nunca foi verdadeiramente tratado. A sífilis destrói-lhe inexoravelmente o sistema nervoso e envenena-lhe o sangue, mas no manicómio preferem curá-lo com repetidos choques eléctricos, tanto que ele, ironicamente, se chama a si mesmo «o homem eléctrico»



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 114
«Ma se voi avete un qualsiasi bisogno di creazione non sentite che monta intorno a voil’energia primordiale di cui inossare i vostri fantasmi?» (1)

«Mi volevano matto per forza» (2)

Dino Campana


1 «Mas se vós tiverdes uma qualquer necessidade de criação não sentireis que sobe à vossa
volta a energia primordial que dá ossos aos vossos fantasmas?»
2 «Queriam à força que eu fosse louco »

O ESTUDANTE DE LATIM

«Das várias coisas boas que havia na loja em grandes quantidades, poucas delas subiam as íngremes escadas, pelo menos para Karl Bauer, porque a comida da Sra. Kusterer era pouca e nunca o saciava. Sem ser isso, viviam ambos muito amistosamente e ele tinha o quarto como um príncipe tem um palácio. Ninguém o incomodava, podia fazer o que quisesse e ele fazia muita coisa. Os dois abelheiros na gaiola seriam a coisa menos importante, mas ele também tinha uma espécie de oficina de marceneiro e no fogão fundia o chumbo e zinco e no Verão tinha licença e lagartos numa caixa - eles desapareciam sempre pouco tempo depois através de buracos que nunca eram os que apareciam na rede. Além disso tinha também o violino e quando não estava a ler ou a carpinteirar, estava seguramente a tocar violino a qualquer hora do dia ou da noite.
E assim o jovem passava com prazer todos os dias e nunca se aborrecia, até porque não lhe faltavam livros que copiava quando encontrava qualquer coisa. Lia bastante mas, na realidade, era-lhe tudo um pouco indiferente, a não ser os contos de fadas e lendas, assim como as tragédias em verso.»


Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.19/20
« É ela quem, quando lhe apraz,
Ordena que às árvores subam as lagartas.»





Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.85

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um rio longo e rigoroso...

Sobre os dois beijos

«O facto de não podermos um com o outro tinha uma boa razão. Ele tratava-me com sobrançaria ou com uma bonomia insuportavelmente irónica, e como o meu entendimento ultrapassava a minha idade, esta maneira desprezível de lidar comigo magoava-me profundamente com o decorrer do tempo. Como bom observador também eu tinha descoberto algumas das suas intrigas e segredos, o que obviamente lhe era muito desagradável. Por vezes tentou ganhar-me através de um comportamento hipocritamente ansioso, mas eu não caía nessa. Se eu fosse um pouco mais velho e mais esperto, tê-lo-ia apanhado através da sua redobrada gentileza e tê-lo-ia feito cair - pessoas mimadas e com sucesso são tão fáceis de enganar! Mas eu tinha crescido apenas o suficiente para o odiar, e era ainda demasiado criança para conhecer outras armas como a aspereza e a obstinação, e em vez de lhe devolver as setas que me tinha mandado, devidamente envenenadas, enterrava-as mais profundamente na minha própria carne com a minha indignação impotente.»

Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.12

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Család (1959) · Family


1

Sobre a Morte


Quando penso que os dias a passar
Em passos breves, mas em peso sentidos,
Minh'alma levam a espaços temidos
E a juventude à morte vai dar,

Por estranho e triste me pareça
Que em breve (ora vivo) eu vá morrer,
Vaga, incerta dor que pesa em meu ser
Faz com que a mente em pavor desfaleça.

Contudo mesmo em raiva, choro e pena
Cada instante é consolo ao coração
E com riso acolherei cada gemido:

Do fundo desespero a esp'rança acena.
Na morte não vejo a libertação -
É melhor o mau que o desconhecido.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11
Tu, Senhor Deus de minha pátria,
Tu, que nasceste entre pastores,
Dá alento à minha voz, fogo às minhas palavras.
Tu o sabes: em meio à verdura,
Aos raios do sol, à orvalhada,
Quando os figos amadurecem
Vem o homem como um lobo e pilha a árvore toda.


Canto Primeiro: A granja das almezas



Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.43

A Lamartine

Te consagro Miréia: é ela a flor dos meus anos;
A minha alma e o meu coração;
-Uva da Crau, com as folhas todas, que te envia,
Humildemente, um aldeão.


Maillane (Bouches du Rhône), 8 de setembro de 1859.


Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.39

domingo, 12 de setembro de 2010

Segunda Meditação

Existe uma grande diferença entre todos os homens e Charlot. Todos os homens se riem dos peixes coloridos e Charlot chora ao ver os peixes coloridos.
Em nenhuma estética se utilizou o pranto desta maneira tão pura.
O pranto foi sempre uma consequência. Charlot faz do pranto uma causa, fonte isolada sem relação com o tema que o produz. Pranto redondo. Pranto em si mesmo.
O riso oferece-se aos peixes coloridos porque o riso é abundante e não exige esforço. Após oferecer o riso à mulher, ao céu e às brisas alegres da primavera, ainda resta o riso para os elefantes e para os peixes coloridos, os calmos e muito distantes peixes coloridos.
O pranto é outra coisa. Oferece-se ao amor e ao morto que se despede. Quem chora gasta-se como uma vela. Todos são avaros das suas lágrimas por esta razão.
(...)
Frederico García Lorca. A Morte da mãe de Charlot. Trad. Fernando Ilharco Morgado. Farândola, Paris, 1999.,p. 17/8

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

«E ofertar o sangue morno de recém-nascidos.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.53
FAUSTO - Tivesse eu tantas almas como estrelas há no céu,
Todas elas haveria de dar por Mefistófeles.
Por ele serei o Imperador do mundo,
Farei uma ponte através dos ares instáveis
Para com um bando de homens passar o oceano;




Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.49

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tennessee Williams: Um Eléctrico Chamado Desejo

[Cena 3; I, 3]

Trovão. Entram Lúcifer e quatro diabos. Fausto dirige-se-lhes.

FAUSTO - Agora que a sombra triste da noite
Rompe do mundo antárctico até ao céu,
Embaciando o empíreo com o seu bafo negro,
Para ver o toldado rosto de Oríon,
Começa, Fausto, os teus encantamentos,
E vê se ao teu apelo os diabos obedecem,
Pelos sacrifícios e orações que lhes ofertaste.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45
Se negamos ter pecado, a nós próprios nos enganamos e ne-
huma verdade existe em nós.
Mas parece então
Que temos de pecar e, por conseguinte, morrer.
Ai...temos de morrer, e morrer para todo o sempre.
Como chamais a esta lei? Che sarà, sarà:
O que for se há-de ver. Teologia, adeus.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.35

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sebastião Salgado, San Juan, Chimborazo, Ecuador, 1979


Sobre os autores

«É a partir da apresentação dos seus escritos, expostos ao olhar do mundo, que devemos ajuizar da sua capacidade, mas não dos seus costumes nem da sua pessoa.»



Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 42
«Os aprendizes (os que não são capazes de uma leitura aprofundada), a esses vi-os enfarinhar a cara, travestir-se e contorcer-se em movimentos e esgares selvagens para nos preparar para o riso.»


Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 36
«De cem membros e rostos que cada coisa tem, pego num, só para o largar, ou para o aflorar, por vezes para penetrar nele até ao osso. Dou-lhe um apontamento, não o mais exaustivo mas o mais profundamente que sei. E prefiro sempre captá-los por algum ponto de vista inusitado. Atrever-me-ia a tratar a fundo qualquer matéria, se me conhecesse menos. Semeando aqui uma palavra, ali outra, amostras destacadas da peça, soltas, sem desígnio nem promessa, não cuido tratar bem a questão, nem de me imiscuir nela, sem variar, quando me agrada; e entrego-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma mestra, que é a ignorância.»
«Deixemos de tomar para desculpa as qualidades externas das coisas: é a nós que cabe responder por elas. O nosso bem e o nosso mal só a nós os devemos.»




Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 16/7

Montaigne: Dos Livros

Pensa que é mais importante aprender a reflectir do que a adquirir e expor conhecimentos, pelo que define a leitura «como uma conversa com homens desaparecidos».

(...)

Percebeu que não há saber sem atenção e paixão; só uma relação pessoal e crítica com os livros produz homens verdadeiramente livres; percebeu que não podemos ler todos os livros e que a relação com o saber é um exercício individual. Exercício de leitura, reflexão e recriação.


cit. Conceição Moreira in Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 11/14

domingo, 5 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até)
................................................................................................................
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu sendo
eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.


Mário Cesariny. Cesariny Uma Grande Razão os poemas maiores. Assíro & Alvim. Lisboa, 2007.,p.141
Entra um diabo.
Ordeno-te que vás mudar de forma;
Estás horrendo demais para me servir:
Vai e volta feito velho franciscano,
Que parecer santo é o que mais convém a um diabo.
Sai o Diabo.

Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45.
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