Por trás das árvores há um outro mundo,
o rio traz-me as queixas,
o rio traz-me os sonhos,
o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas,
sonho com o Norte...
Por trás das árvores há um outro mundo,
que o meu pai trocou por dois pássaros,
que a minha mãe trouxe para casa num cesto,
que o meu irmão perdeu no sono, quando tinha sete anos e estava
cansado...
Por trás das árvores há um outro mundo,
uma erva que sabe a tristeza, um sol negro,
uma lua dos mortos,
um rouxinol que não pára de se queixar
do pão e do vinho
e do leite em grandes jarros
na noite dos prisioneiros.
Por trás das árvores há um outro mundo,
eles descem em longos sulcos
para as aldeias, para as florestas dos milénios,
amanhã perguntam por mim,
pela música dos meus achaques,
quando o trigo apodrece, quando de ontem
nada ficou, dos seus quartos, sacristias de espera.
Quero deixá-los. Já não quero
falar com nenhum,
eles atraiçoaram-me, os campos sabem-no, o sol
há-de defender-me, eu sei,
cheguei tarde de mais....
Por trás das árvores há um outro mundo,
aí há uma outra quermesse,
na caldeira dos camponeses bóiam os mortos e em volta dos charcos
derrete-se em silêncio a gordura dos esqueletos vermelhos,
aí já nenhuma alma sonha com a roda do moinho,
e o vento compreende
apenas o vento...
Por trás das árvores há um outro mundo,
a terra da podridão, a terra
dos negociantes,
deixa atrás de ti uma paisagem de sepulturas
e tu irás destruir, irás dormir cruelmente
e beber e dormir
de manhã à noite, de noite até de manhã,
e não hás-de entender mais nada, nem o rio nem a tristeza,
porque por trás das árvores,
amanhã,
e por trás dos montes,
amanhã,
há um outro mundo.
Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 61/63
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