quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta
estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem
pergunto por mim me viu.
Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens
por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.

Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,
que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,
os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.

A terra fala uma linguagem que ninguém entende,
porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus
nos desesperos
e bebi vinho do seu jarro,
que é feito das minhas dores.

Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus
atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante
e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das
almas.
Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas
e causam graves danos nos monumentos.
Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.
Debaixo da porta está afixado um mandamento:
NÃO MATARÁS
...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,
que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.
Leio essas notícias como uma fábula,
de uma facada para outra - sem me aborrecer.
Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme
sob o movimento da mão de Deus.




Thomas Bernhard. Na Terra e no InfeNegritorno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121

Robert Bresson-Pickpocket (1959)


Tristeza

São vermelhos os montes e os meus irmãos andam no meu cérebro,
como se Jesus não tivesse sido crucificado à luz das estrelas,
que não têm medo das crueldades da minha alma, da alma
que enterrei num vale quando nem sequer era nascido, naquele tempo,
em Abril, o mês iracundo, que lava as pedras
e as torna em lousas de sepulturas, sobre as quais se encolhem as
companheiras da minha solidão,
com rostos lívidos, enquanto o vendaval lhes vai rasgando os olhos
no brilho mortiço da Lua distante.


Para quê estes dias, para quê a morte,
para quê tudo aquilo de que não gosto, o arbusto
e as flores na boca do burro e o grito
dos meus membros no Outono e a lida dos camponeses
e a glória do sofrimento com que a minha mãe me sobrecarregou ao
morrer,
oprimida pelos donos, sempre bêbados, da fábrica de cerveja na margem
do lago, que devora os meus mortos
sob o riso das estrelas.
Eu não fiz nada que pudesse prejudicar a vossa felicidade, nada,
senão escrever uns versos que fizeram chorar o meu irmão
e despertar na minha irmã - com as flores do vento de Março -
o espinho do ciúme, não comi nada
que tivesse faltado na vossa mesa, não bebi nada que cheirasse aos
vossos casamentos nem
ao cantar dos celeiros, a que eu já não posso voltar, porque
toquei o sino errado na margem do rio, que leva ao encontro
da minha aflição os crânios vazios da imortalidade,
todos os dias, uma manhã após outra, em silêncio, como seu me
tivesse desfeito em cinza, antes
de ter acordado na carne primaveril destas cidades.
Em que é que eu penso quando vejo as ruas vazias, as janelas dos
homens e das mulheres
que tanta putrefacção beberam que Deus terá de te proteger,
que despedaçaram o teu verde e o teu cinzento e o negro dos rios,
que não enalteceram a tua fonte nem a tristeza das tuas noites,
em que, com cada pedra e com cada rã, te despenhaste
no esquecimento! No esquecimento! No desespero
das raízes!
Já não vejo nenhum rosto que eu possa amar, nenhuma carne
que traga prazer ao meu anseio nem nenhuma morte
que satisfaça o meu estar só...Os campos estão vazios! As casas
estão roxas de velas! As portas rangem o seu desdém na tua fadiga
quando
tu regressas a qualquer boca depravada que possui um campo,
uma macieira, uma vaca, um pedaço de relva
te amaldiçoa...
E quando queres partir não sabes para onde!
E quando queres beber água, estás no deserto!
E quando queres mendigar, a imundície da sua riqueza já te
estrangulou!
E quando buscas a tua sepultura, trazem-te uma travessa cheia de
beleza!
...Já não vejo nenhum rosto...Só o barro negro e em decomposição
das suas enfermidades e a ira que transforma em pó a sua vida.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 113-117
XII


Coisas terrenas,
Oh, são inúteis e frágeis, mas nelas
Me inspirando, posso esquecer as minhas angústias;
Todo o pensar que dói, as lágrimas vertidas por outros,
Todas as dores e todos os desejos nelas mergulho.
Ao pensá-las, mais dói o pensamento, daí que
Embora temendo, desejo fechar os olhos em morte breve,
Só que mais sofro ainda, pois não sei o que é a morte.
Oh, o mistério do homem, que triste tu és
E tão profundo! Que horrível é o teu rosto
Marcado pelo véu da vida mortal!
Profunda de mais p'ra dizer, grande de mais p'ra pensar.

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 367

The sacred and the profane: Anne Wiazemsky and Balthazar in Robert Bresson’s “Au hasard Balthazar”


Literatura para crianças: O Pássaro da Alma




Quando alguém nos magoa, o pássaro da alma agita-se de lá para cá / Em todos os sentidos dentro do nosso corpo, sofre muito.

*
Decerto querem também saber de que é feito o pássaro da alma.
Ah, isso é mesmo muito fácil:
É feito de gavetas e mais gavetas.
Mas não podemos abrir as gavetas de qualquer maneira,
Pois cada uma delas tem uma chave para ela só!
E o pássaro da alma
É o único capaz de abrir as gavetas dele.
Como?
Pois isso também é muito simples:
Com a segunda pata.
**
E como o que sentimos tem uma gaveta,
O pássaro da alma tem imensas gavetas.
A gaveta da alegria e a gaveta da tristeza.
A gaveta da inveja e a gaveta da esperança.
A gaveta da desilusão e a gaveta do desespero.
A gaveta da paciência e a gaveta do desassossego.
E mais a gaveta do ódio, a gaveta da cólera e a gaveta do mimo.
A gaveta da preguiça e a gaveta do vazio.
E a gaveta dos segredos mais escondidos,
Uma gaveta que quase nunca abrimos.
E há mais gavetas.
Vocês podem juntar todas as que quiserem.
***
E o mais importante - é escutar logo o pássaro.
Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós, e nós não o ouvirmos.
É pena. Ele quer falar-nos de nós próprios.
Quer falar-nos dos sentimentos que estão encerrados nas gavetas
Dentro de nós.
****
Há quem o ouça muitas vezes,
Há quem o ouça raras vezes,
E há quem o ouça
Uma única vez na vida.
Michal Snunit
. O Pássaro da Alma. Ilustrações de Naama Golomb. Trad. do hebraico de Lúcia Liba Mucznik. Editora Vega, Lisboa, 2007

“uma função da arte é legar um ilusório ontem à memória dos homens”

Borges
Nietzsche, «Del país de la educación», Así hablaba Zaratustra: “já só amo a terra dos meus filhos, a terra ainda não descoberta no mar mais longínquo; é por ela que mando as minhas velas a procurar e voltar a procurar.É nos meus filhos que quero remediar o facto de ser filho dos meus pais: e compensar todo o futuro... por este presente!”.

«Fundação mítica de Buenos Aires»

«(...) A tarde tinha-se afundado em ontens,
os homens partilharam um passado ilusório.»


Borges

Tango em Evaristo Carriego

«Borges afirma então que o tango tem por objecto a fabulação de uma certa memória
combativa
:


''Talvez a missão do tango seja essa: dar aos argentinos a certeza de terem
sido valentes, de terem cumprido já com as exigências da coragem e da
honra.''»



Eduardo Pellejero. Borges e a política da expressão a transvaloração do passado nacional, p.3

segunda-feira, 18 de outubro de 2010


''Indagação'' socrática

(Sobre a impossibilidade da sobreposição da cópia)
“Não haveria dois objectos, tais como Crátilo e a imagem de Crátilo, se um deus, não satisfeito em reproduzir apenas tua cor e tua forma, como os pintores, representasse além disso, tal como ele é,todo o interior de tua pessoa, dando exactamente seus caracteres de flacidez e calor, e colocasse nele o movimento, a alma e o pensamento, tais como eles são em ti, em resumo, se todos os traços de tua pessoa, ele dispusesse junto a ti numa cópia fiel? Haveria então Crátilo e uma imagem de Crátilo,ou então dois Crátilos?”. Crátilo: “Dois Crátilos, Sócrates, me parece”.





Guimarães, R (2008). Jorge Luis Borges e Maurice Blanchot: Os pharmakós da escritura. ACTA LITERARIA Nº 37, II Sem., p.4

« (...) no conto “Vinte e cinco de agosto, 1983”, Borges encontra Borges num quarto de hotel. Esse outro (ele mesmo) é bem mais velho. Assustado, o narrador (o jovem Borges) pergunta: “Então, tudo isto é um sonho?” A resposta, nada esclarecedora: “É, tenho certeza, meu último sonho”. Quem sonha com quem? Esta é a pergunta aristotélica feita pelo jovem Borges. Porém, a resposta é borgeana: “Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar se há um único homem sonhando ou dois que sonham um com o outro” (Borges, 2000c: 427).»


Guimarães, R (2008). Jorge Luis Borges e Maurice Blanchot: Os pharmakós da escritura. ACTA LITERARIA Nº 37, II Sem., P.4

“la literatura no es otra cosa que un sueño dirigido”

Borges
“Le fantastique c’est l’hésitation éprouvée par un être qui ne connaît que les lois naturelles, face à un événement en apparence surnaturel.''


Todorov. Introduction à la littérature fantastique, 1970, p. 29

domingo, 17 de outubro de 2010

XXII
Mulher (para Marino):
Certos homens têm um negro semblante,
Os seus olhos não respondem à luz do olhar
Pois estão mergulhados na sombra. Mas os teus
Têm a escuridão abafada da noite tropical
Onde o relâmpago está prestes...



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 335

XVIII


A Morte veio e levou-o de mim.
(...)
Acho que (de mim tão amigo e chegado)
Nesta aparência de mortal frialdade,
Senti sobre a face o sopro abafado
Do grande vortéx da eternidade.

Tão perto, que a Morte parecer tocar
Meu corpo tremente; triste me parece
Que a Morte junto a mim não vai voltar
Salvo por mim mesmo...
(...)
Alguns morrem na batalha sangrenta,
Alguns no cadafalso, outros esfaqueados,
Outros dão o ser sem qualquer contenda,
Mas os mártires por outros são imolados.

Morrem alguns no leito de agonia,
Noutros funda angústia os arranca à sorte,
Uns partem sem ver quão belo é o dia,
Outros bem tarde. Mas morte é sempre morte.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 331
XIII

Menestrel: Tão bem te conheço, Giles Attom, que tu
Não te conheces a ti tão bem quanto eu;
Tua infância e juventude, a tua idade adulta
Tudo me é conhecido; teus pais igualmente
Conheci muito bem; até da tua vida
Conheço os segredos - tuas paixões, cuidados,
Teus amores e desgostos, tuas raivas e calmas,
Chamas e friezas; sei do teu presente
E, de igual modo, o teu futuro conheço.
Giles: Como tal? Quem és e o que és para falar assim?
Para te gabares de tudo conhecer?
Men: Não interessa
Quem sou e o que sou. Basta dizer-te...






Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 323/325

En el mercado de Zacatepec, 1956


«Que o homem é tão estranho na sua existência,
Tão raro no seu fado, tão obscuro na sua origem,
Que ante coisas tão simples perdemos a voz.
Tão ridículo, tão bizarro, tão real, irreal
E contudo tão triste! Como exprimir tudo isto?
Tivesse em mil línguas, mil maneiras
De expressar meu pensar e uma ideia só a dizer
Inda a mente me oprimiria ante um pensamento
Que amaldiçoa a palavra.

Sim, por vezes acho
Que vou ter a resposta de tudo; só que então
Algo demasiado horroroso em si aparece,
Uma loucura que alastra, uma ausência de luz,~
E de novo emudeço.
Quando medito sobre
Este espaço imenso, silencioso, interminável,
Sinto a vertigem do viandante que olha
Arrebatado sobre o fundo de um abismo,
Em escuro envolvido, donde se soltam terríveis sons -
Assim é estridente na minha alma o som solene
Do pensamento em si pesado.
Eu te dou algo para pensar, mas retém uma só
Palavra - uma pequena palavra, amigo - «Deus»
E diz-me tudo o que nela está. Ou então não digas
E pensa somente.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 323

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

«(...) Nietzsche identifica a verdade de Deus como sendo uma herança dos gregos. Ele sugere a existência de uma escada com três degraus importantes: o primeiro deles evidencia que em determinada época a humanidade foi sacrificada por um Deus. O segundo degrau revela que em seguida a humanidade sacrificou seus mais fortes instintos e sua natureza em nome da moral. Finalmente, no terceiro degrau, a humanidade sacrificou deus em favor do nada e da liberdade. Mas, diante da leitura de tais apontamentos nietzschianos, surge uma pergunta para o leitor: liberdade para quê? Agora o homem é livre, porém não sabe o que fazer com sua liberdade e se encontra sem direcção, navegando num mar desconhecido.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 39

Causas do Niilismo

«Segundo Nietzsche, há duas grandes causas para a presença do niilismo: a ausência de grandes modelos para a humanidade (grandes homens) e a crescente maioria da população (a massa, a sociedade, o rebanho). O excesso de fraqueza e a falta de força – a falta de modelos de força e vontade humana – constituem para o filósofo a raiz do niilismo.
Assim, haverá homens fracos e fortes no mundo, mas é importante que os fortes representem a maioria, para que a vida seja enriquecida. No entanto, faz-se necessário frisar que nem sempre aqueles que detém o poder, a autoridade e o saber são os mais fortes. Muitas vezes eles são os mais fracos, os parasitas. O que Nietzsche quer, de fato, afirmar é que o homem vive numa era de pobreza (“age of poor”). O homem tem se tornado pobre em valores, em talentos, em conhecimento e em espírito. O mundo de um modo geral tornase corrompido.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 36
«Em Gaia Ciência (1882), no parágrafo 125, Nietzsche ressalta a morte de Deus(ou o assassinato de Deus). Vê-se que a crise na qual se encontra o mundo moderno/contemporâneo aponta para nenhuma direcção. Deus não representa mais um papel fundamental na vida do homem e na sua relação com a realidade. Nessa obra, o filósofo sugere que o homem sempre viveu no erro ao criar um mundo para si próprio, de acordo com sua razão. A história da filosofia tem mostrado que somos frequentemente enganados pelo nosso pensamento e pela razão. Ao buscar alcançar a verdade, a humanidade se afasta cada vez mais dela, como um incansável Sísifo.»




ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 33

Where we still walk soon no one will be able to walk

Nietzsche

Niilismo

«Etimologicamente, “niilismo” vem do latim nihil e significa a persistência do pensamento pelo nada. De acordo com Franco Volpi, o termo “niilismo” surge entre o final do século XVIII e início do século XIX, mas há registos de que o termo já havia sido empregado em 1733 no título do tratado de F. L. Goetzius, “De neonismo et nihilismo in theologia”. (...)
No entanto, apesar desses registos anteriores, o termo “niilismo” tornou-se conhecido somente a partir do romance russo, Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, escrito entre 1860 e 1862. De facto, é tarefa difícil remontar a história do niilismo, pois suas raízes tendem a se aprofundar cada vez mais à medida que se busca a sua origem. Mas, para além da origem do termo, o niilismo, enquanto sentimento, existiu desde sempre. Trata-se do sentimento de estranhamento e da falta de sentido diante do mundo.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 30

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

III

Se eu pudesse dizer quantas vezes quis morrer esta noite,
morrer sem salmo e sem mãe nem pai, morrer como os animais
que sufocam, encurralados entre os muros,
morrer como um verme pisado, sem qualquer assistência,
morrer como o melro esmagado pela roda do comboio aéreo,
morrer como a alma das árvores, que mandam com o vento
os seus segredos para os oceanos, quando a Primavera chega, porque
«à la fin tu es las de ce monde ancien...»,
tanto sofrimento, tanto cheiro de corpos humanos nunca eu antes
tinha respirado.





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 93

Sandip

«O seu intelecto é vivo, apurado, mas a sua natureza é grosseira e, por isso, ele adorna com nomes ressonantes os seus desejos egoístas. As baixas consolações do ódio são-lhe tão necessárias como a satisfação dos seus apetites.»




Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 33/4
«Outro dia, quando Sandip me acusou de falta de imaginação e afirmou que tal carência me impedia de dar ao meu país uma imagem visível, Bimala concordou com ele. Decidi não dizer nada em minha defesa, porque vencer numa discussão não conduz à felicidade. A divergência de opinião da minha mulher não provém da desigualdade de inteligência e, sim, de dissemelhança de naturezas.
Acusam-me de não ser imaginativo - isto é, segundo eles, tenho óleo no candeeiro, mas não tenho chama. Ora, essa é, precisamente, a acusação que lhes faço. Podia-lhes dizer: «Sois escuros como as pederneiras, precisais de atrito violento e barulho para produzirdes as vossas centelhas: mas as suas chispas desconexas servem apenas para lisonjear o vosso orgulho e não clarificam a vossa visão.»





Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 33
«Bimala é impaciente com a paciência, gosta de encontrar nos homens turbulência, cólera, injustiça. No seu respeito por eles tem de haver um elemento de medo.»



Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 32

«Tenho um espinho cravado no coração, um espinho que não pára de me causar dor, enquanto me entrego ao trabalho diário, e que me parece nem sequer me dar tréguas quando durmo. Mal desperto, de manhã, vejo que o céu perdeu i fulgor. Que se passa? Que aconteceu?
O meu espírito tornou-se tão sensitivo que até a minha vida passada, que se me apresentara sob o disfarce da felicidade, parece arrancar-me o coração, com a sua falsidade. A vergonha e a mágoa que se aproximam cada vez mais vão perdendo o ar secreto, velado, e perdem-no principalmente porque tentam ocultar o rosto. O meu coração é todo olhos. Tenho de ver as coisas que não deveriam ser vistas, as coisas que não quero ver.
Chegou finalmente o dia em que a minha vida maltratada tem de divulgar a sua pobreza, o seu desamparo, numa longa série de revelações. Esta penúria tão inesperada instalou-se no coração onde parecia reinar a plenitude. O que paguei à ilusão durante nove anos, apenas, da minha juventude tem agora de ser pago com juros à Verdade, até ao fim dos meus dias.
De que me serve esforçar-me para conservar o meu orgulho? Que mal pode haver em confessar que falta em mim qualquer coisa? Talvez me falte a firmeza, a impetuosidade cega que as mulheres gostam de encontrar nos homens.»





Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 31
«Uma das heranças joycianas de Beckett e Hilst é a utilização do fluxo de consciência em suas narrativas. Os autores conseguem radicalizar esse recurso estilístico levando-o ao extremo, fazendo com que a narrativa se apresente entrecortada, como se o leitor passasse de uma cena a outra, sem uma sequência, uma continuidade. Seus personagens, além de conviverem com pessoas reais da história, criam personagens imaginários, cujas falas se misturam com a do próprio protagonista, provocando uma confusão no leitor que está acostumado a uma leitura linear, sem atropelos, e sem ambiguidades que comprometam a compreensão do todo. »



ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 27

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

132.

Primeiros fragmentos

I

-«O que é a fama após a morte?
Uma vida sem vida, caro rapaz,
Uma vida que se vive e não apraz,
Um nome escrito à esquina duma rua,
Um busto que podemos espezinhar,
Um vento leve que a tempestade destrua:
Essa a fama póstuma. Maldito quem se agastar
Só por tê-la; e quem por ela morrer, Marino,
Se matará duas vezes. Por isso escuta...

II
É bom ser amado por toda a gente,
Melhor ainda o amor só de alguém;
Mas não há na vida maior amargura
Do que não ter o amor de ninguém.

III
Nunca as negras nuvens serão tão densas
Que não haja um azul para vislumbrar;
Nunca o céu tão escuro que um raio luminoso
Através dele não possa passar.

IV
Nada é mais frio do que as cinzas são
E contudo o lume ali se ateou;
A noite que envolve uma única estrela
Mais negra parece quem a olhou.

(...)




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 313/314

124.

Dia de Inverno



II

A visão que tenho deste dia frio,
A depressão funda em que o pensar extravio
Um símbolo e um resumo é, simplesmente,
Do que a minha vida é perpetuamente.

Em tristeza e dor, que fundo o pensamento!
Como a alma mergulha em desespero intensivo!
Que desolado o peito emudecido
Das palavras que são como odor expelido
Da flor aberta da plena juventude!
Como fico encerrado na minha inquietude!
Como fico neste círculo confinado,
Círculo trágico do meu ser odiado!
Nem uma ambição ou desejo me chama -
Humanitarismo, poder, riqueza ou fama.
Mas sinto-me cansado, frio, desiludido,
Tal como este dia. Tenho envelhecido
A ver os sonhos a passar e desaparecer,
Deixando a lembrança pura, luzindo,
De algo que, como a luz, se foi extinguindo
Sem o vivo horror de se ver morrer.

Negrito


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 291

122.

Oh, estrela solitária

Oh, estrela brilhante que na solidão
Espreitas do seio da noite envolvente,
Nada iguala em beleza a tua amplidão
No céu despido e de estrelas ausente.

Promete manter o teu cintilar
Na noite luzindo em dormente prazer,
Como de uma fada o indolente olhar
Que, p'ra pensar, recusa adormecer.

Que há outras estrelas, eu sei muito bem,
Que podem ter mais brilho e verdade;
Mas não as desejo, porém só uma vem
Pedir atenção e vencer a vontade.

E se, disto, a lição não tiverdes tirado
Muito da Virtude terás desprezado.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 283

I write about myself with the same pencil and in
the same exercise book as about him. It is no
longer I, but another whose life is just beginning.

Samuel Beckett

«O contexto histórico-filosófico de Beckett (1906-1989) é a passagem do existencialismo para o pessimismo. Eis a situação do sujeito do século XX, após vivenciar os anos de guerra. As paisagens inóspitas e os diálogos de seus personagens que denunciam a impossibilidade de comunicar algo são evidências da realidade do pós-guerra. Sua linguagem sem ornamentos tem como função ressaltar o silêncio dos personagens. Seu teatro exprime a angústia de personagens que se encontram condenados à incapacidade de a linguagem comunicar o que sentem.»





ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.22


Atraco-me comigo, disparo uma luta. Eu e meus alguéns, esses
dos quais dizem que nada têm a ver com a realidade e é
somente isto que tenho: eu e mais eu
H.Hilst

«Desejo de eternizar-se. Desejo de abdicar da vida social para se dedicar totalmente à literatura. Desejo de alcançar a verdade, o conhecimento, a compreensão da vida e da morte. Desejo de ser santa aos oito anos de idade, quando era interna no colégio de freiras. Desejo de escrever um livro a cada novo amor que surgia em sua vida. Desejo de traçar um roteiro para a sua obra, mesmo que o final deste roteiro fosse dar no silêncio: “eu fui atingida na minha possibilidade de falar”. Eram tantos os desejos dessa autora, leitora de Joyce, Beckett, Kafka, Nietzsche, Kierkegaard, Kazantzákis, só para citar alguns de seus autores preferidos.»



ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.16
How far does the Truth admit of being learned?
Kierkegaard
«Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contacto com quem está possuído pelo demónio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.»

Georg Lukács
«-Vê, Nikhil, como a Verdade adquire carne e sangue no coração de uma mulher! - exclamou Sandip Babu. - A mulher sabe ser cruel, a sua virulência é como uma tempestade cega: maravilhosamente terrível. No homem é feia porque contém no seu âmago os vermes corrosivos da razão e do pensamento.

(...)


Vem, pecado, ó belo pecado!
Que teus esbraseantes beijos vermelhos derramem
ardente vinho tinto no nosso sangue!
Faz soar a trompa do mal imperioso
E atravessa na nossa fronte a coroa da exultante
ilegalidade!
Ó Deusa da Profanação,
Mancha sem vergonha o nosso peito com a mais
negra lama do descrédito!



Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 29
«Se fosse necessário preencher, pouco a pouco, o espaço entre o dia e a noite, levar-se-ia nisso uma eternidade. Mas o Sol nasce e as trevas dissipam-se, basta um momento para abarcar uma distância mínima.»


Negrito
Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 16

106.

Rasgos de Loucura



III

Os olhos são coisas raras.
Neles o sentido se transforma em vida.
Neles a vida tem asas.

Olha para mim. É louco e estranho o teu olhar.
Uma luta interior se vê reflectida.
Mais que belo Horror ele vem revelar!

IV

1.

Quanto tu falavas, apenas sentia
Um terror alienado e estranho.
Imagina. Ajoelhar-me poderia
Ante teus lábios, seu mover, seu desenho.
A forma dos lábios, cheia de expressão,
E teus dentes meio descobertos
Eram do delírio, chicotes despertos.
Senti desaparecer minha razão.

Um fetichismo mais que sensual
Visita minha mente delirante.
Maior do que o abismo se apresenta
A fenda entre a razão e sentimento,
Aberta ao alvião do sofrimento.

Tudo contém mais do que aparenta.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 241
«E, de modo estranho e indefinido,
Perdidos no Todo, um só vivente,
Essa prisão a que eu chamo a alma
E esse limite a que chamo mente.»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 233
«Lamento o passado e temo o futuro,
Choro e desejo o que nunca fui eu,
Aquilo que não houve na Natureza
E o que havendo nunca será meu.

Saudade do prazer que já é passado,
Tristeza da dor outrora vivida,
A dor do que visto em vagas visões
É apenas eco da amargura tida.»

(...)



91. A minha vida


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 201

89.

O Lábio


Um dia em delírio entorpecido,
Onde vi estranhas coisas a passar,
Vi num sonho, sem luz alguma a brilhar,
Um homem com um só lábio -
Exactamente, exactamente,
Exactamente um só lábio.

Lembro bem que ele não tinha rosto
Nem nariz, com a ponta para vê-lo,
Nem olhos, nem faces, nem cabelo
Mas apenas só um lábio -
Um somente, um somente
Apenas um, um só lábio.

Podeis pensar nisto sem terror?
E nenhum outro lábio ressalva
À visão, nem tampouco lhe faltava:
Havia somente um lábio.
Vendo-o como eu, ficaríeis loucos -
O homem com um só lábio.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 197/8

terça-feira, 12 de outubro de 2010

New Yorker Review of Books
"with enough time, enough afterlife, a great book does find its rightful place. And perhaps some books deserve to be rediscovered again and again" (com tempo suficiente, vida post mortem suficiente, um grande livro encontra o seu lugar de direito. E talvez alguns livros mereçam ser redescobertos várias vezes).



Na minha capital

V


Mas que encontrei eu na minha capital?
A morte com a sua boca de cinzas, aniquiladora, sede e fome,
que repugnava, porém, à minha própria fome, porque era
uma fome de carne e de pão, de rostos e retretes,
uma fome que balbucia o opróbio desta cidade,
uma fome de mesquinhez,
brilhando de janela a janela, gerando primavera e glória pútrida
sob as escadas do céu.
Eu estava preso e de podridão cansado,
longe das florestas e longe dos anseios da morte de anos em ruínas.
As pedras cinzentas e inconsistentes deste vigamento clamavam em
fúria,
mas eu mesmo não era mais que risadas, risadas do Inferno,
que me fizeram esquecer a cilada dos homens em que eu tinha caído,
uma hora negra do mundo
no vento de Novembro da minha existência...




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 87
(...)

«Vós não dizeis nada, porque estais demasiado doentes para dizer
o que
tem de ser dito, o que faz tão tristes estes montes
e este nascer do Sol e esta labuta dos camponeses
e esta labuta dos pássaros
e esta labuta que cria destruição em cada caule, em cada leito de rio,
por toda a parte onde as mãos estão por cima da terra.»





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 81

segunda-feira, 11 de outubro de 2010


Por trás das árvores há um outro mundo

Por trás das árvores há um outro mundo,
o rio traz-me as queixas,
o rio traz-me os sonhos,
o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas,
sonho com o Norte...

Por trás das árvores há um outro mundo,
que o meu pai trocou por dois pássaros,
que a minha mãe trouxe para casa num cesto,
que o meu irmão perdeu no sono, quando tinha sete anos e estava
cansado...

Por trás das árvores há um outro mundo,
uma erva que sabe a tristeza, um sol negro,
uma lua dos mortos,
um rouxinol que não pára de se queixar
do pão e do vinho
e do leite em grandes jarros
na noite dos prisioneiros.

Por trás das árvores há um outro mundo,
eles descem em longos sulcos
para as aldeias, para as florestas dos milénios,
amanhã perguntam por mim,
pela música dos meus achaques,
quando o trigo apodrece, quando de ontem
nada ficou, dos seus quartos, sacristias de espera.
Quero deixá-los. Já não quero
falar com nenhum,
eles atraiçoaram-me, os campos sabem-no, o sol
há-de defender-me, eu sei,
cheguei tarde de mais....

Por trás das árvores há um outro mundo,
aí há uma outra quermesse,
na caldeira dos camponeses bóiam os mortos e em volta dos charcos
derrete-se em silêncio a gordura dos esqueletos vermelhos,
aí já nenhuma alma sonha com a roda do moinho,
e o vento compreende
apenas o vento...

Por trás das árvores há um outro mundo,
a terra da podridão, a terra
dos negociantes,
deixa atrás de ti uma paisagem de sepulturas
e tu irás destruir, irás dormir cruelmente
e beber e dormir
de manhã à noite, de noite até de manhã,
e não hás-de entender mais nada, nem o rio nem a tristeza,
porque por trás das árvores,
amanhã,
e por trás dos montes,
amanhã,
há um outro mundo.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 61/63
«Mas o meu marido recusava-me qualquer ensejo de o adorar. Aí residia a sua grandeza. Aqueles que exigem absoluta devoção por parte das mulheres, como um direito que lhes é devido, não passam de cobardes. Tal exigência é uma humilhação para ambos.
O seu amor por mim era uma tal enxurrada de riqueza e dedicação que parecia ultrapassar todos os limites. Mas eu precisava mais de dar do que receber, porque o amor é um vagabundo e, às vezes, as suas flores desabrocham melhor na poeira das bermas da estrada do que nas jarras de cristal nas salas.»
Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 9/10

domingo, 10 de outubro de 2010

«O meu coração está cada vez mais negro,
porque de asas negras se encontra
coberto.»



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 53

Que farei...

Que farei
quando nenhum palheiro mendigar para a minha existência,
quando o feno arder em aldeias húmidas,
sem coroar a minha vida?
Que farei
quando a floresta crescer apenas na minha fantasia,
quando os regatos só já forem artérias vazias e lavadas?

Que farei
quando já das ervas não vier qualquer mensagem?
Que farei
quando estiver esquecido por todos, por todos...?


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 49

76.

Raiva

Sinto uma raiva - sim, uma raiva! -
Do tempo que passa sem se deter,
Sede de vida que nada acalma,
Um ódio que nada pode reter.
E cada hora que sinto passar
E funde a noite com um novo dia
Faz, de pensá-lo, a alma clamar:
«Tortura eterna, tortura sem fim!
Os dias passam e nem uma acção!
Um forte desejo, como uma cobiça
Da vontade ausente - Oh, desolação! -
Um sonho dorido, condenado em mim!»

Sinto uma raiva! Raiva por sentir
Tristeza e mistério, em confusão,
Até que a mente num rodopiar,
Louca, contempla essa maldição
Descarnada, que é o mundo a passar,
Como ante um crime fica um paralítico
Sem ter o poder para o evitar.
Diante do sol, eu sinto estranheza,
Frente ao rio, aos campos, fico angustiado,
Sinto-me um cínico ante a baixeza
E, perante Deus, um revoltado.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 169/171

«Numa vida doce eu temo pensar,
Família e amigos perto de mim.
Meus olhos detestam o encontrar
Do que é finito - a rua, o lar
E todas as coisas que têm fim.
Não sei o que é que aspiro a ter
Mas isto sei que não posso querer.

Em constante desajuste assim
E frio perante o que é vulgar,
Desço no próprio inferno até ao fim,
Ouvindo o sino a dobrar em mim
Que do meu envelhecer me vem falar,
Mas isto num tom tão estranho vem
Que da Mudança o mistério contém.»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 163
«Silêncio! Que os sãos fiquem daí e os loucos deste lado.»


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 145

54.

Mania da dúvida

Tudo para mim é um duvidar
Com a normalidade sempre em cisão,
E o seu incessante perguntar
Cansa meu coração.
As coisas são e parecem e o nada sustém
O segredo da vida que contém.

A presença de tudo sempre perguntado
Coisas de angústia premente,
Em terrível hesitação experimentando
A minha mente.
É falsa a verdade? Qual o seu aparentar
Já que tudo são sonhos e tudo é sonhar?

Perante o mistério vacila a vontade
Em luta dividida dentro do pensar,
E a Razão cede, qual cobarde,
No encontrar
Mais do que as coisas em si revelam ser,
Mas que elas, por si só, não deixam ver.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 117
«Porque, amigo, embora seja a loucura
Ora doce, ora dor inominada,
Nunca a dor humana a dor atura.»


51. A dor suprema


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 113



«Só há sombras onde eles misturavam água no mel
e vendiam vacas doentes a cidades cinzentas e obscuras, onde
roubavam às mães a erva e a vida e
ensinavam os filhos a morrer em colinas abandonadas.
Só há sombras e bancos desconfortáveis que não deixam
à minha carne, por muito que te esfaltes, a glória
que lhe é devida após as suas viagens.»

(...)



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 43

sábado, 9 de outubro de 2010

Podridão

Vi a Terra imperecível como o Sol
quando regressei ao sono, em busca do meu pai,
que trouxe a mensagem do último vento
à minha miserável condição, que molestava a sua glória,
a glória de que ele dizia: «Os grandes destinos
são um fracasso para amanhã...»
Imperecíveis elevavam-se as florestas, que enchiam outrora
a noite com as suas queixas e o seu discorrer
sobre o mosto e o declínio. Só o vento
passava sobre as espigas, como se a Primavera vivesse
no meio desta doce podridão.
A neve tomava uma atitude hostil e fazia-me
arrepiar os braços e as pernas, ao olhar
o Norte agitado, que parecia uma cemitério gigantesco
e inesgotável, o cemitério dos prisioneiros
desta forma de progresso, que se
insinuava em cada encruzilhada, em cada pedra de gleba
e em todas as estradas e igrejas, cujas torres se
levantavam contra Deus e contra os convidados da boda,
que se acocoravam em volta do barril de vinho, para o
beberem todo com gargalhadas imundas.
Como é que eu vi na aldeia, em cima das tábuas, estes mortos,
com ventres inchados, comendo carne vermelha,
tartamudeando os hinos da cerveja forte,
a podridão, que furtivamente deslizava pela esplanada
sob o bramir indolente do trombone...
Ouvi o lento respirar da depravação
entre as colinas...
Vi a Terra imperecível como o Sol,
a Terra, cujo Agosto estava enfermo e era irrecuperável
para mim e para os meus irmãos, que aprenderam
o seu ofício melhor do que eu, que
ando torturado por milhões de mendicâncias e já
nenhuma árvore encontro para as minhas conversas de loucura.
Saí de uma noite do Inferno
para uma noite do Céu,
sem saber quem terá de espedaçar a minha vida
antes de ser tarde de mais para falar de glória e valentia,
da pobreza e dos mundanos desesperos
da carne, que me há-de aniquilar...





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 38-41

Nas arcas negras da terra dos camponeses

Nas arcas negras da terra dos camponeses
está escrito que eu terei de morrer no Inverno,
abandonado pelos meus sóis e pelo sussurro dos baldes,
dos baldes cheios de leite mungido,
pronunciando o tormento e o fim sob os golpes do vento de Março,
que me esmaga com a evocação
das macieiras em flor e do feitiço das eiras!
Nunca aniquilei uma noite com palavras afrontosas
nem com lágrimas, mas este tempo, este tempo absurdo,
extinguir-me-á
com a sua poesia seca e afiada como uma faca!
Terei não só de suportar o abandono, mas também
de conduzir o gado dos meus pais e das minhas mães através dos milénios!
Terei de criar chuva
e neve e maternalidade
para os meus crimes e louvar a raiva
que me arruína a seara nos meus próprios campos!
Reunirei os negociantes e as prostitutas de sábado num ponto da
floresta
e oferecerei esta terra, esta terra triste,
ao seu feroz desespero!
Farei entrar mil sóis na minha
fome! Amanhã criarei
algo de transitório para a imortalidade,
perto das fontes e das torres e longe
dos artesãos,
numa madrugada que está farta dos meus sofrimentos
e na qual não acontece senão o retorno das estrelas à sua morada...
...é aí que quero falar com os desesperados
e deixar tudo
o que foi desprezo, amargura e nojo deste mundo.




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 31-33

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

49.

Lamento


Quereria de novo ser menino
E tu também criança, doce e pura;
Pudéssemos ser livres, sem destino,
Em nossa consciência, de obscura;
Jogos loucos pudéssemos jogar
Sob a ramagem calada e sombria,
Nomes de contos de fadas usar,
Eu de senhor e tu de senhoria.

E tudo seria plena candura
E desejo saudável de pensar,
E quanta dança e quanta travessura
Fariam nossos pés sem descansar;
E eu bem de palhaço actuaria
Para o teu riso infantil ganhar,
E de minha querida eu te chamaria
Sem outra coisa querer significar.

Sentados juntos nos comoveríamos
Com contos ora tristes, no passado;
Não tendo sexo, não nos amaríamos,
O bem sem contra o mal ter lutado.
E numa flor nosso prazer teríamos,
Barco do tesouro a casca de noz:
À noite num armário fechá-lo-íamos
Como na memória um prazer, a sós.

Gastaríamos o tempo, qual riqueza
De um bem grande de mais para fartar,
Gozaríamos saúde e a pureza
Sem saber que os gozámos a gozar...
Ah, quão mais amargo é tudo isso agora
Que um sentimento em mim faz regressar -
O saber de que se nos foi embora
E do que isso deixou em seu lugar.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 108-111

Foto Henri Cartier-Bresson/Magnum. Martine Franck retratada por Henri Cartier-Bresson, de quem foi assistente e esposa.

43.

Nirvana

Um não-existir dentro do Ser,
Um etéreo não-ser fundo sentido,
Uma mais que real Idealidade,
Sujeito e objecto um todo unido.

Nem Vida ou Morte, razão ou sem-razão,
Mas fundo sentir do não-sentimento,
Que calma profunda! Mais funda que a angústia,
Talvez como um pensar sem pensamento.

Beleza e fealdade, amor e ódio,
Virtude e vício - tudo já estranhezas;
Essa paz toda calma apagará
De nossa vida e eterna incerteza.

Um sossego de toda a humana esp'rança,
Um fio de exausto, febril respirar...
A alma em vão tacteia a expressão certa;
A lógica da fé vai ultrapassar.

Um oposto de alegria, do fundo
Desconsolo pela vida que temos,
Um acordar para o sono que dormimos
Um dormir para a vida que vivemos.

Tudo diferente da vida que é nossa
E do que atravessa o nosso pensar;
É um lar se vida nos é túmulo,
É um túmulo se nossa vida um lar.

Tudo o que choramos e o que aspiramos,
Como a criança ao peito, ali está,
E seremos mais do que desejamos
E nossas almas malditas terão paz.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 94-97
«Que pensamento buscas sem achar?
Teu espírito tem asas, p'ra que alturas?
Que alta visão lhe dói até cegar?»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 95

38.

Fragmento de delírio

Não sei se em mim a mente se quebrou
Nem se a razão me foi adoecer;
Não sei se o amor é só o último sinal
De Deus em mim, ou a voz que se calou
No caos do querer.

Meu pensar deve ser o da loucura
E minha alma é por fantasmas habitada -
Formas grotescas e estranhas a rolar
Em minha mente, quais vermes em sepultura...




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 91
- ¿Qué es lo que tanto te llamó la atención?
- ¿Que tienen de particular los habladores?
(...)
- Son una prueba prueba palpable de que contar historias puede ser algo más que una mera diversión – se me ocurrió decirle - . Algo primordial, algo de lo que depende la existencia misma de un pueblo.


(...)

((Es hora de descasar)), ((Es hora de sentarse a escuchar lo que habla)). Así lo hacían: descasaban con el sol o se reunían a oír el hablador hasta que empezaba a oscurecer. Entonces desperezándose, decían: (( Ha llegado el momento de vivir.)) p.62

Mario Vargas Llosa. El hablador. Santiago: Siex Barral, 1987

Prémio Nobel da Literatura 2010: Mario Vargas Llosa


Ver aqui a página oficial do autor.
«Segundo Vargas Llosa, não há “grande arte sem uma certa dose de irracionalidade”, porque “a grande arte expressa sempre a totalidade humana, na qual existe intuição, obsessão, loucura e fantasia, ao mesmo tempo que ideias. Na obra de Sartre, o homem parece exclusivamente composto destas últimas.” Chegou, então, à conclusão que “sua obra literária envelheceu de maneira terrível”, havia nela “uma escassa originalidade”. (VARGAS LLOSA, 1986:232-233).»

«Toda teoria que se apresenta como absoluta, como o cristianismo ou o marxismo,acaba, cedo ou tarde, por justificar o crime e a mentira. Questionado sobre o que seria essa“moral dos limites”, Camus afirmou que consistia “em admitir que um adversário pode ter razão, deixá-lo expressar-se e aceitar reflectir sobre seus argumentos” (apud VARGASLLOSA, 1986:332). »


Vidal, A. C (2009). Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus. Revista Brasileira de História & Ciências , - Número I .

¿de dónde venimos?¿quiénes somos?¿adónde vamos?


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

“... nenhuma mãe arranca os olhos de um príncipe, por ele achar bela a filha”.

Gotthold Ephraim Lessing. Emilia Galloti: Uma Tragédia em Cinco Actos. São Paulo: Ed. Peixoto Neto, 2007.
As acções são o objecto próprio da poesia”. (...) a pintura também pode imitar acções,
porém só de maneira alusiva através de corpos.

De outro lado, (...) a poesia também pinta corpos, porém só de maneira alusiva através de acções.

A pintura, em suas composições coexistentes, só pode utilizar um único momento da acção,tendo de se escolher por isso o mais fecundo, a partir do qual o antecedente e o subsequente se tornam ao máximo inteligíveis”


Gotthold Ephraim Lessing
,Laokoon (Laocoonte ou Sobre os Limites da Pintura e Poesia), de 1766

“O enigma de Kaspar Hauser” - de Werner Herzog, 1974

Para o Prof. Eduardo Soveral

«Ah, quando, em mim, eu for minha esperança,
Meu próprio ser, divino e redimido.
E minha sombra apenas for lembrança
Bem longe, em outro mundo transcendente,
À luz sem sol jamais anoitecido,
Serei contigo, amor, eternamente.»

Teixeira Pascoaes, Elegias, Renascença Portuguesa, Porto, 1912.

Para Vivenciar Nadas

para e com chiara, bea, valérie
borboleta é um ser irrequieto4.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raíz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arco-íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

Ondjaki, Há Prendisajens com o Xão O Segredo Húmido da Lesma &Outras Descoisas, Lisboa, Editorial Caminho, 2002, pp. 38/39

terça-feira, 5 de outubro de 2010

(This Photograph is My Proof, 1974)


"This photograph is my proof. There was that afternoon, when things were still good between us, and she embraced me, and we were so happy. It did happen, she did love me. Look see for yourself!" , Duane Michals
«O ensaio de Eduardo Lourenço apresenta-se, assim, como uma espécie de escrita contra a escrita, naquele duplo sentido da expressão «ir contra» que está também presente em Wittgenstein quando se propõe «investir contra os muros (os limites) da linguagem», assumindo o risco de sair dessas investidas com alguns inchaços na testa. Alimentando-se mais de paixões do que de regras, ele desenvolve-se, em última análise, em espirais de pensamento e de escrita que lhe permitem, quer dar a ver o não visto, quer sugerir o não-dito através do entre-dito e do interdito. Gravando em cada linha o seu desenho de lapidares cintilações do (im)preciso, a sua palavra pode ser como a da poesia: bloco errático, solitário, de onde salta o silêncio das ideias ou a acutilância da visão clarividente.»


João Barrento. As pedras brancas de Eduardo Lourenço, p.5
«Em cada ensaio de Eduardo Lourenço se sente essa luz que revela o objecto, que o abre iluminando-o de tantos lados que não se chega a saber qual deles está mais próximo da finalidade última da busca, a de uma qualquer «essência», sempre à espera de revisão. José Gil di-lo também quando escreve: «Nunca um ensaísta, para escrever sobre o não sentido e o Nada, deu a ver com tanta diversidade e profusão o sentido de tudo.»

João Barrento. As pedras brancas de Eduardo Lourenço, p.4

Martine Franck


A atenção à vida presente nos três principais heterónimos de Fernando Pessoa...

“Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”
“levantar a torre do meu canto/é
recriar o mundo pedra a pedra”


Carlos de Oliveira


“Ao longe, ao luar,/No rio uma vela,/Serena a passar,/Que é que me revela?//Não sei, mas meu ser/Tornou-se-me estranho”



Fernando Pessoa

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

“No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta. A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes. Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia.”
Eduardo Lourenço
“O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a Linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida.”

Eduardo Lourenço

''Krétakör''

«A palavra húngara "Krétakör" quer dizer "círculo de giz", por causa do Círculo de Giz Caucasiano de Brecht: uma pequena área delimitada e escolhida no espaço, onde acontecem coisas importantes e emocionantes, onde surgem conflitos e se tomam decisões. Depois o giz será levado pelas solas dos sapatos e lavado pela chuva, portanto desenhamos outro círculo noutro lugar e esse passa a ser o nosso espaço escolhido, o nosso teatro. »

«As minhas conversas com Ricardo — pormenor interessante — foram logo, desde o início, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efectivamente alguém que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espírito — os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim. E com ele o mesmo acontecera — havia de mo contar mais tarde.
Não éramos felizes — oh não!As nossas vidas passavam torturadas de ânsias, e incompreensões, de agonias de sombra…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.14
«A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava.
Ah! como Gervásio tinha razão, como eu no fundo abominava essa gente —os artistas. Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam petulantemente, que se mostram complicados de sentidos e apetites, artificiais, irritantes, intoleráveis. Enfim, que são os exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior.
Mas, na minha incoerência de espírito, logo me vinha outra ideia: — Ora, se os odiava, era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como eles…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.8
«— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los.
E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não alteraria!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!»




Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.6

Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu
nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…»


Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«Se ficares com a capa do teu próximo em penhor, restitui-la-ás antes do pôr do sol, porque não tem mais nada para se cobrir, é o vestuário com que cobre o seu corpo; com que dormiria ele?»

Bíblia Sagrada, Êxodo, p.111

domingo, 3 de outubro de 2010

Uma corola

Em algum lugar
esplende uma corola
de cor vermelho-queimado
metálico

não está em nenhum jardim
em nenhum jarro
da sala
ou da janela

não cheira
não atrai abelhas
não murchará

apenas fulge
em alguma parte alguma
da vida



Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

O Jasmim

me invade as ventas
no limite do veneno

assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto
fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas

entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
o que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor ou eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas
[ o cheiro da alfazema?

Nasce o perfume com as
[florestas
um silêncio a inventar-se nas
[plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos
[folhas
o aroma
que se torna arbusto
[ - um jasmineiro.

Nos jardins dos prédios
[ (na rua senadir Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis
[ alfazema

(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque:
já o da alfazema
dorme manso nas gravatas
[de roupas

em São Luís
e reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que
[ontem à noite
arranquei flores de um
[jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
- um lampejo entre
[as mãos-
pela rua
sorvendo-lhe o aroma
[selvagem
enquanto foguetes Tomahawk
[caíam sobre Bagdá.





Ferreira Gullar in Jornal de letras, artes e ideias, Nº 1043, 22 de Setembro a 5 de Outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O dia dos fantasmas

Amanhã é o dia dos fantasmas. Vão
erguer-se como pó
e desatar às gargalhadas.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que
caíram na terra das batatas. Não posso
negar que eu
sou culpado desta morte dos rebentos.
Sou culpado!
Amanhã é o dia dos fantasmas, que trazem
na fronte o meu tormento,
que possuem o meu trabalho diário.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que dançam
como carne no muro do cemitério
e me mostram o Inferno.
Porque tenho eu de ver o Inferno? Não há outro caminho
para Deus?

Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho
passa pelo dia dos fantasmas,
passa pelo Inferno.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 25
« (...)Com um grande esforço, mesmo com desespero, Bernhard procura conquistar um papel de poeta e um mundo poético que sugere a mortalidade e o pó do mundo vulgar.»
«O jovem poeta sente-se fora do seu tempo e indigno. Mas não quer deixar a poesia. E prefere percorrer, como que numa ronda clássica, o campo e as cidades, olhando a existência humana aqui e além. E chega à conclusão de que a podridão produz a decomposição da vida no campo e de que as cidades calcinadas, despedaçadas, morrem. Há por detrás das aparências um outro mundo, mas este não é o mundo nobre e elevado que se esperava, mas sim um mundo de podridão e de aniquilamento.»

Hugo Diettberner: «Der Dicher wird Kolorist. Thomas Bernhards Epochensprung», in Text+Kritik, Heft 43, Thomas Bernhard, 3. Auflage: Neufassung, November 1991, p.12/13
S'io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma per cìo che giammai di questo fondo
Non tornò viva alcun, s'i'odo il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.



Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre
[a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos de
[uma noite
E restaurantes com serradura e conchas
[de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento
[enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita.

(...)


T.S.Eliot. A canção de amor de J. Alfred Prufrock. Edição bilingue do poema e de um texto crítico de E. Pound. Trad. de João Almeida Flor. Assírio & Alvim, Lisboa, 1985, p.17

Joanne Woodward with Paul Newman


quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«...Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará
oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.2

terça-feira, 28 de setembro de 2010

«Acontece que, tendo-me voltado, nesta ocasião, para o meu percurso, eu me dei conta de que, para não me perder de mim próprio, como na história célebre do Pequeno Polegar dos Irmãos Grimm, fui deixando muitas pedras brancas no meu caminho, mais numerosas do que eu podia imaginar, algumas hoje já desconhecidas de mim próprio. Hoje, nem essas pedras brancas me servem para eu, através delas, reinventar o meu próprio passado. Mas elas estão lá, podem ser lidas por outros, revisitadas como objecto de curiosidade ou objecto de interesse, se o tiverem.»


Eduardo Lourenço a 21 de Janeiro de 2003, por ocasião de uma homenagem pelos seus sessenta anos de vida literária e filosófica.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Green Night

(Summer, 1982)

We walked down the path to breakfast.
The morning swung open like an iron gate.

We sat in Adirondack chairs and argued
for hours about the self—it wasn’t personal—

and the nature of nature, the broken
Word, the verse of God in fragments.

We trotted back and forth to readings.
The trees were the greenest I had ever seen.

We cut bread from a large brown loaf
at a long wooden table in the mountains.

A farmer hayed the meadows
and the afternoon flared around us.

Pass the smoky flask. Pass the cigarettes:
twenty smoldering friends in a package.

We swam in the muddy pond at dusk.
The sky was a purple I had never seen.

Someone was always hungover,
scheming with rhymes, hanging out.

Nothing could quench our thirst for each other.
At the bonfire, we flamed with words.

The houses were named after trees.
I slept with someone at the top of a maple.

It was a green night to be a poet in those days.
We didn’t care if the country didn’t care about us.


Edward Hirsch
Wagner. Horas tenho também de fantasia,
Mas aspiração tal em mim não sinto.
De bosques e de prados cedo farto,
Nunca invejei aos pássaros as asas.
Como o prazer do estudo outro nos leva
De livro em livro, de uma a outra página!
Assim se tornam belas, tediosas
Noites de inverno, e calorosa vida
Os membros nos aquece, e, ai!, se acaso
Um douto pergaminho desenrolas,
É o céu que sobre ti baixar se digna!


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 55

domingo, 26 de setembro de 2010

"Boston Common (Men Sleeping on Grass)"


Com teu rir descarnado, tu, caveira,
Que me dizes, senão que em outro tempo,
Como o meu, delirou teu pobre cérebro,
A luz do dia procurou, com vasto
Desejo de verdade, e vagou triste
Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Mas corações não ganhareis vós nunca,
Se o próprio coração vos ficar mudo.»



Negrito
J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 35
( Toma o livro e pronuncia misteriosamente o signo do
Espírito. - Reluz uma chama avermelhada. O Espírito aparece na chama)


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 33
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