quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O BORAMETZ



   «O cordeiro vegetal da Tartária, também chamado «Borametz» e «polipódio Borametz», e «polipódio chinês», é uma planta cuja forma é a de um cordeiro, coberta de penugem dourada. Ergue-se sobre quatro ou cinco raízes; as plantas morrem, à volta e ela mantém-se louçã; quando a cortam sai um suco sangrento. Os lobos deleitam-se a devorá-la. Sir Thomas Browne descreve-a no terceiro livro da sua Pseudodoxia Epidemica (Londres, 1646). Noutros monstros combinam-se espécies ou géneros animais; no Borametz, o reino vegetal e o reino animal.

    Recordemos a este propósito a mandrágora, que grita como um homem quando a arrancam, e a triste floresta dos suicidas, num dos séculos d'O Inferno, de cujos troncos magoados brotam ao mesmo tempo sangue e palavras, e aquela árvore sonhada por Chesterton, que devorou os pássaros que tinham feito ninho nos seus ramos e que, na Primavera, deu penas em vez de folhas.»



Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009., p. 39

O Basilisco


   «O Basilisco reside no deserto: ou melhor, cria o deserto. Aos seus pés caem mortos os pássaros e apodrecem os frutos; a água dos rios em que bebe fica envenenada durante séculos. Plínio declarou que o seu olhar parte as pedras e queima o pasto. O cheiro da doninha mata-o e na Idade Média dizia-se que era o canto do galo. Os mais experimentados viajantes levavam galos consigo para atravessar regiões desconhecidas. Uma outra arma era um espelho, porque o Basilisco cai fulminado com a sua própria imagem.»



Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 34

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

«Os pobres de espírito e os ascetas estão excluídos dos prazeres do Paraíso porque os não compreenderiam.»


Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 24

THANATOS E EROS


Espelho dentro de um absorto espelho,
quem vês dentro de ti mesmo,
o teu frio, talvez, a tua carência,
ou o convulso mistério que te embebe
para ser parte de ti o que do éden tu desejas?
Serás, por acaso,  o meu altivo delírio,
a outra metade perdida e nunca encontrada,
o outro inimigo que me procura?

Obscura tentação do proibido,
a tua indagação explica-me, turva-me até inflamar
a perversa paixão da aparência,
a vã leveza que me nega e te apaga,
a que lança na minha alma a sua promessa de amor
até ficar contigo, alheio e deslumbrado,
para assim me destruíres lentamente.
Mas o que procuras em mim? Serão os meus sonhos
ou as minhas reencarnações futuras?

Afasta de mim a tua exaltação tenebrosa,
ou será que formaremos sempre um só ser,
fundidos num corpo de cega luz.
Sei que somos duas forças fustigadas,
a luta fraticida entre Thanatos e Eros,
a impiedade da noite e o desdém da luz,
a claridade que pulsa com a sua agónica sombra.
O horror e o afã de se extinguir na tua vertigem,
sorvendo o teu brilho e o meu soluço,
tornam infindável a miragem.
O tempo divide-nos e reúne-nos.
Na palavra elevada voltamos a olhar-nos,
lenta ressurreição, sonho de pátria e vento,
olhos onde começamos a encontrar
as súbitas presenças da minha face e do teu revés,
enquanto a solidão e o silêncio se afundam
e nos deixam cativos, frente a frente, no nada.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18

«Toco a hostil humidade no anoitecer
das tensas palavras que não esqueço
e escuto a palpitação do poema,
como se fosse o infinito espaço
que abraçasse o planeta solitário que eu sou.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18

terça-feira, 21 de janeiro de 2014




First I shut down the stars because
You said they ruled us
Then I took out Mars
He was the cruelest

His lover followed suit
By way of suicide
And the others stood there silent
As I dealt out peace of mind

Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man

Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man

Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'm less than nothing
I'm a misanthropic man

This is a journey
To the edge of the night
I've got no companions
Only Celine's on my side
Don't need nothing from no-one
The needle's in the red
Nothing to lose
Everything's dead

Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man

Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'm less than nothing
I'm a misanthropic man

The sky is empty/silent
The earth as still as stone
Nothing stands above me
Now I can sleep alone
«É uma coisa magnífica, a inocência. Mas também é de temer, posto que não consegue proteger-se contra aquilo que a pode destruir.»


Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 19

púcaro


«Mas seria Kant um mortal qualquer? Ele tem ''um grilo na lareira'', quer dizer um maníaco, talvez um louco adiado.»


Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 16

« -O trabalho que me deu essa mulher para descobrir-lhe a alma ou qualquer coisa como isso. Virei Lisboa do avesso para encontrar-lhe o rosto. Havia ainda quem a amasse, acredita nisso? Havia quem, depois de ela ter morrido, velha e esquecida, fosse capaz de matar por ela.»



Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 12


« - Dispenso as explicações. Quando elas são necessárias já não servem de nada - disse eu, de maneira modesta, para não o irritar. Digo mal. O Freirão nunca se irritaria comigo. Um caçador irrita-se com o meteorologista, não com uma mulher. Eu, de resto, não lhe dizia o que pensava. Como se me ouvisse, no silêncio das minhas cordas vocais, ele perguntou-me:
       -O que estás a pensar?
       -Eu? Em nada...Mas já que quer saber, penso que não há remédio para uma pessoa como você.
       -Não há salvação, quer dizer.
      -Ou isso.»

Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 12

I

«Um enterro no campo:
  A tarde parecia vagarosa, como acontece às vezes em que acrescentamos às obrigações de todos os dias um dever que não sabemos qualificar. Neste caso, o enterro dum amigo. É muito difícil descrever uma amizade quando se tem tudo para a pôr de parte. Tudo, como a juventude, o futuro prometedor e a espécie de indústria cega que é o talento. Este tem qualquer coisa de desumano. Escorrega-nos dos dedos sem que se possa evitar o egoísmo que compõe a sua matéria e o seu uso. Ele não se adapta a qualquer conselho moral ou imoral. Apodera-se das nossas entranhas e deixa-as secas para tudo o que não seja a sua obra.
    No entanto, eu tinha tido um amigo naquele homem que fazia da infelicidade um desporto da alma.»


Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 9


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

UM ANIMAL SONHADO POR KAFKA

«(...)


Costumo ter a impressão de que o animal me quer amestrar; agarrar e logo esperar tranquilamente que volte a atrair-me, e de imediato voltar a saltar?»


FRANZ KAFKA
Hochzeítsvorbereitungen auf dem Lande, 1953



Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 20

Antichrist


O SANGUE IRREFREÁVEL


A avidez que descubro nas minhas pupilas
como fera encerrada por um íntimo acaso.
Atracção por aquele fogo, a miragem
estende as suas areias perante o mar de Verão,
perante o voo dos pássaros que anunciam
o diálogo furtivo dos corpos.

Reino da lascívia sob palmeiras sombrias,
ardente brisa, música plena dos sentidos
iniciada na alma, respirada
com fruição pelos meus cinco salteadores dementes.
Quantas luzes se acenderam. Quanta pura agitação
nos lábios e nas ancas fugidias.

Emergi da espuma como um sol solitário.
Passei por dunas, oásis, cheirei esticados lençóis,
despertei os racimos mais pretos e os mais túmidos,
senti as certezas que estes dedos abriam.
Ali a dança, abismo de doçura,
e o seu vibrante ventre de timbale,
bebendo-se na desordem o meu futuro
sob o ar de uma vertigem de estrelas.
Fui tirano e escravo do gozo e da dor,
da dura saudade dos beijos,
da fugacidade depredadora
de tudo quanto vive e ama consumindo-se.
Despedaçado, escutei o pavor do capricho,
a impiedade que me nega ou aquela onde amanheço.

Morri com a convicção em tantas ocasiões
para ressuscitar com um vigor fragante,
e depois e depois e depois, depois de tantos anos,
sonho perante o mar rebelde do estio,
sonho com a juventude de um erguido desejo
e espero a maré das horas
vindo e indo até ao último deserto,
lá onde se dilui o sangue irrefreável.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 13/4

Consciência

Já nem conservas a fibra dos sonhos
que reclame a herança perdida da tua sorte?
Exiges certezas, uma fidelidade
de acordo com a paz do coração,
livre dos presságios onde espreita
o exausto pulsar do vencido.
Quanto desdém usurpa a tua integridade.
Ainda no erro manténs o orgulho
de ser entre medíocres o senhor dos náufragos.
Os teus olhos esculpiram no ar distante
a esperança, a única possível
de não ouvir a chuva de qualquer infortúnio.
É tão difícil perdurar, continuar
a insistir num ténue registo de palavras,
procurando-as pelos anos sombrios,
como se elas salvassem ou desculpassem
esta inquietude de merecer a vida.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 11

O que vem ao mundo para não perturbar nada
não merece nem consideração nem paciência.

                                                        René Char

Dois poemas plásticos


O dia morre contigo. Deixa que os teus braços pendam
     sobre a hora que não tarda.
A tua túnica ondeia como um verme espreguiçado.
Os teus mamilos já não fremem: a hora cobre-te a nudez.
A primeira estrela subiu e veio depor o beijo sobre
                                                                  [a tua fronte suada.
As aves estão contigo. Abrigam-te as lágrimas serenas
                                                        [nas suas asas de crepe.
Pronto. Cerra os olhos. É o fim.


Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 129

''lua sonâmbula''


«Eu chorava essas horas de prisioneiro na sala da varanda
entre as flores que minha mãe adorava»


Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 114

Ressaca

Retratos de Família


As badaladas da torre, pelo fim do dia...
      Os homens regressavam do trabalho, enxada aos
                                                                                            [ombros.
Os pastores vinham sondar a estrada e o crepúsculo,
saindo dos matos como faunos;
as suas flautas de cana choravam penas ou amores ou
                                                                                               [apenas humildade.
Eram sons talvez sem música. Mas a sua melopeia trazia
                                                                     [paz e também candura
e deixava-as à flor da terra, um orvalho
que ficasse poisado nos fetos
até à manhã seguinte.

Essa paz fazia-me companhia no meu regresso do pinhal.
E eu enchia as narinas de tudo isso,
orvalho, moitas, flautas, terra,
e sentia-me calmo e repleto.

Mas em chegando à aldeia estava de novo só.
E na minha solidão gritava por um amigo.


Não ter um amigo! Se o tivesse,
outras coisas boas se dariam!
Iria, por exemplo,
até ao pico da montanha, ouvir ranger as velas do moinho.
E talvez o ardor me levasse mais longe.
Até onde, não sei. Sabê-lo-ia
se tivesse um amigo.





Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 111-112

caruncho

«Era como se as entranhas da terra viessem até ali, de rastos, famintas, para serem possuídas. A planície tinha a ondulação, a profundidade e a largueza de um mar. Tudo nela era imenso, insondável e simultaneamente dádiva e fuga. Era o mesmo sortilégio que, havia muito, se tinha apossado do Loas. A campina de tão lânguida, amolengava os músculos dos homens, e o Loas, amando a terra, desejando-a como se deseja fecundar um corpo de uma mulher, era no entanto impotente para traduzir tudo isso em acção. Erguia a enxada em meia dúzia de vezes e parava, embevecido, esperando que a gleba, sob esse breve estímulo, se multiplicasse em alvoroço e fertilidade. Como se o esforço físico o impedisse de assistir à solenidade dessa procriação. No seu apelo à terra havia o desejo fanático de nela deixar uma cicatriz, mas uma cicatriz de amor e não de suor.»



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 18-19
«O Barbaças, porém, já ouvira o Loas contar muitas vezes aquelas proezas, conhecia-as de memória, embora fosse inútil interrompê-las: quando o lavrador abria a torneira, era uma inundação.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 17

antegozar

domingo, 19 de janeiro de 2014

A mulher de branco, Lisboa, 1956


«Quando não havia pesca, nem biscates, nem uma galinha ingénua, quando, enfim, a vida começava a significar uma azeda melancolia, o Barbaças abria então o peito aos grandes sacrifícios, aceitando uma empreitada qualquer, ceifa ou colheita de azeitona, cortes de lenha, etc. - a que ele se entregava com uma gana de quem tinha pressa em voltar ao repouso.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 13

vomecê

os meus remorsos de Deus infernam-me,
                                                          [atormentam-me.
A mim nada me espanta ser escuma,
a salsugem da noite na madrugada infinita,
o que me escancara o espanto, o que me assusta
é saber o não saber, é adivinhar com a vista,

(...)»



Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 57


"Deer Stop"

And I long to go
Love started here
Shoot your star
Be a light
Is that

Don't you call
Deer stop bottle in a shell
Shoot a thousand stars over me
Love to come home
You've arrested a knight

Say my name
Whisper it, don't ever turn
I'm deliciously wired
I'm falling in a cloud

Deer stop bottle in a shell
Shoot a thousand stars over
Say my name
Whisper it
as bibliotecas ardem, as gerações
enchem o corpo-santo do mundo,
e nesta fila sei que agora sou eu,
e somos todos tão iguais, todos tão medonhos,
a habitar os sonhos uns dos outros
no pesadelo de nos metermos medo.
A voz das coisas habita-me de nada,
a minha nau chamou-se esquecimento,
quantas mãos seguraram este crânio vivo,
escuto-me na noite a noite sem manhã,
a voz das coisas faz o silêncio do mundo,
o vento atravessa as pedras com frio,
a sucessão dos dias é isenta de mim mesmo,
mas ataca-me de frio como o vento às pedras.


3.00, 22/7/87, Funchal.


Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 53

A ideia do silêncio onde me guardo.


«(...)

perder o amor ao desviar a cara,
perder tudo, enfim, que já perdido
nasci, mas indagando sempre
cara, pedra, rumor, bátega, folha,
nas peças do processo em que me julgo
por não acreditar no que mais amo.


28/06/1987, Stonehenge, Londres.




Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 29

andar de charola

andar aos ombros de alguém

A TRANÇA TORTA

Para todas as mulheres Ogdala da Nação Lakota


1
    Ele queria sair.
    Ele disse-me «Tu ficas em casa»
    Eu disse «Eu queria sair»
    Ele disse´«Tu tens de tomar conta do bebé»
    Eu disse «O bebé é dos dois»
    Eu deitei o bebé
    Provavelmente sentiu a minha inquietação
    Porque choramingava
    Ergui o olhar
    E ele deu-me uma bofetada,
    o meu marido
    Não um murro que põe um olho negro.
    Isso foi mais tarde.
    Foi uma bofetada,
    Uma bofetada forte.
    Ele olhou para mim.
    Sorria.
    Era inacreditável.
    Ele estava a sorrir.
    Deu-me outra bofetada.
    O pai dele maltratava a mãe.
    Vi-o sorrir.
    O que se estava a passar?
    Ele era muito simpático.
    Tinha cabelo preto comprido.
     Dantes
    quando fazíamos amor
    ele soltava o cabelo.


2

Fomos jantar fora,
Queria que eu saísse com o seu patrão.
Eu não queria.
Deu-me um pontapé debaixo da mesa,
Disse-me que fingisse estar feliz
Disse-me que sorrisse.
Eu sorri.
Ele deu-me outro pontapé,
Perguntou-me quem é que eu queria foder,
disse-me que parasse
de me atirar a toda a gente.
Parei de sorrir.
Ele deu-me outro pontapé.
Continuou a agredir-me.
Lá fora
puxou-me os cabelos
e arrastou-me até eu estar caída na estrada.
Tinha nevado.
Ele enterrou-me na neve.
Deu-me socos na sarjeta.
A neve derretia.
Eu estava suja.
Tinha a sensação de que o meu cabelo
sangrava.


3
Ele bebia.
Eu também.
Devo ter desmaiado.
Acordei no hospital
Depois de cinco operações ao cérebro.
Não tinha cabelo.
Raparam-no.
Tive que aprender outra vez a falar
e a mexer os braços.
Demorei quatro meses
a lembrar-me como se prepara
o pequeno-almoço.
Lembro-me de pôr
o ovo na frigideira
com o bacon.
Eu sabia que era um ovo
só não me lembrei
de o partir.
Apenas o ovo com casca
na frigideira.
Não tinha cabelo.


4

Ele batia-me
há dezoito anos.
De manhã
ele era outra vez muito amável
eu penteava-lhe o cabelo comprido
e fazia-lhe uma trança.
Entrançava os cabelos devagar
como se gostasse muito dele
Fazia uma trança torta.
Os cabelos ficavam espetados
como os penteados dos doidos.
Depois ele esquecia-se de que
as nódoas negras no meu
rosto eram as marcas das suas mãos.
Ele pavoneava-se pela rua
todo machão na estrada
mas a sua trança estava muito torta
e dava-lhe um ar muito estúpido.
Eu devia ter ficado feliz.
Muito feliz.

5

Soube que ele estava
com outra mulher
e que faziam amor e que ela lhe despenteava
o cabelo quando ele estava louco
em cima dela.
Ele chegou a casa
muito mais tarde
e tinha a trança bem feita
e apertada.
Ele desmaiou
por causa da bebida
Depois eu levantei-me
com a tesoura na mão
enquanto ele ressonava
e aproximei-me lentamente dele
e cortei a trança
bem rente
e poisei-a na mão dele
e quando acordou ele gritou
«Que raio! Vou matar-te!»
e pôs-se de pé
num salto
mas eu atara-lhe
os sapatos um ao outro
por isso ele não conseguia correr.
Só voltei
para ele três anos depois
quando soube que tinha o cabelo comprido.


6

Eu não queria ir para a cama com ele.
Ele estava bêbado.
Para ele
eu não passava de um pedaço de carne,
de um buraco.
Fingi
que estava a dormir.
Ele deu-me uma cotovelada, sacudiu-me
puxou-me.
Lembro-me de ter pensado despacha-te.
Ele estava mole e continuava continuava
até eu estar dorida.
Eu disse: «Não foi bom.»
Ele disse: «Com quem estiveste?»
Ele era maior do que eu? Gostaste?»
É como a história do rato e do leão.
Tinha de fugir depressa.
Ele pegou em mim
como se eu fosse um trapo.
Tinha um olhar vazio.
Eu ouvia o meu filho gritar
a pleno pulmões...e
as amígdalas,
eu conseguia ver as suas amígdalas.
O meu marido espancou-me
enrolou o meu cabelo preto comprido à volta
    da sua mão,
sacudiu-me a cabeça.
Tentei pegar no meu filho
«Ele não é teu filho», disse ele,
prendendo o meu cabelo na sua mão.
«Já não é teu filho.»

Agora ele chama por mim a meio
da noite
e chora.
Arrepende-se de ter batido na mulher.
Arrepende-se de a ter espancado.
Quer suicidar-se.
Sabe aquilo por que a mãe passou.
Mas ele não consegue parar - o meu filho.
Eles tiraram-nos a nossa terra.
Tiraram-nos o nosso modo de vida.
Tiraram-nos os nossos homens.
Nós queremo-los de volta.

(Este monólogo baseia-se em entrevistas a mulheres índias da Reserva a Pine Ridge.)


Eve Ensler. Os Monólogos da Vagina. Publicações Europa-América, 2008., p. 133-138

sábado, 18 de janeiro de 2014

 

Viagem

QUEM sabe, quem sabe,
               ah, quem sabe
se fui eu que fugi
ou se me abandonaram
à beira de qualquer estrada.
Que terras meus olhos desbravaram,
que mundos vi,
para ser esta saudade de tudo,
uma dor de tudo,
de tudo morrer e renascer em mim!
em que porto estes músculos
suaram à sombra de guindastes,
que terra áspera e quente a minha enxada rasgou,
de que barco fui piloto
e de que pátria emigrante
para sentir as dores que estão fora de mim?
Quem me deu a alma de cigano
e me lançou ao vento
à espera do festim?

Homens de terra e do mar,
duro, de dentes vidrados,
gritando o futuro
e sempre crescendo;
-quem me pôs à frente da guerra,
ébrio de uma luta
que não aprendo?
Homens de longe, estranhos,
esmagando as larvas do celeiro;
- onde vos animei
embora com a pobreza das palavras?
Em que pátria fui vosso companheiro?

Ah, quem sabe
porque esta minha voz enrouqueceu,
esta minha voz que provou o amargo das escarpas
- e gostou!
Quem sabe se um encanto me fez nómada,
nu, faminto e descalço como os mais
ou se todas as almas
esta minha alma penada violou?



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 96/7
«(...)

Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela erva menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
- e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 94

7

Que a tua boca amaldiçoe, companheiro,
as súplicas que o Céu negou.
Navalhas clandestinas furaram-me o dorso,
o desengano fez-me o monte de cacos
que nenhum santo recompôs!
Mas eu me erguerei dos meus pedaços,
nu e verdadeiro,
babado da espuma do meu ódio,
e gritarei a força do meu dia
e o vosso arrepia de medo!



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.85

Caiam estrelas nos meus olhos

4

Operário que a manhã despertou no sono necessário,
mão que ficaste nua ao bater na porta fechada,
caminheiro de que a estrada deserta aceitou o cansaço,
mulher de corpo usado e alma desflorada,
todos a quem negaram o pão,
todos a quem negaram amor,
eu vos recebo, embora proscrito como vós!


Nem as carícias de Olívia se fizeram para os nossos
                                                                             [corpos
nem os deuses nos reconheceram como sua obra,
nada, nada a vida nos concedeu.
Mas conquistaremos a fé dos espezinhados,
o clamor das faces cuspidas,
e esta força será maior que as carícias e os deuses,
ó companheiros que desconheceis as preces!
Seremos aquela planta selvagem que se ergueu renovada
depois de o arado a mutilar.

Heróica arrogância da alma desprezada!




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.82
«(...)
mas sempre chega a hora de um amanhecer que nos
                                                                                    [encontra
afagando o perdido.


E eu nasci para morder as saudades
de quem nada tem a recordar.




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.79

neurastenia


nome feminino

1. MEDICINA estado caracterizado pela debilidade física e psíquica, acompanhada de perturbações psíquicas (tristeza, insónia, angústia, indecisão) e funcionais (digestivas, cardiovasculares, sexuais), e dores em diversos locais do corpo
2. coloquial mau humor acompanhado de irritabilidade
3. coloquial estado de depressão acompanhado de tristeza

(Do grego neũron, «nervo» +asthéneia, «fraqueza»)
«Levei sessenta anos a construir este velho que agora agoniza cheio de ódio. Sou o que sou e não outro. Oh, Deus, Deus se de facto existisses!»
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 113

"Nymphomaniac"

«Porque não me falas? Porque nunca me falas? Talvez uma palavra tua me abrisse o coração! Esta noite, até me parece não ser tarde demais para recomeçarmos a nossa vida. Se eu não esperasse pela minha morte para te entregar estas páginas? Se te suplicasse, em nome do teu Deus, que as lesses até ao fim? Se te pudesse observar depois de terminares a leitura? Se te visse entrar no meu quarto, banhada em lágrimas? Se abrisses os braços para me pedir perdão? Se caíssemos de joelhos, um e outro?»
 
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 79

Oh!, não imagines que me tenho em grande conta.

«Oh!, não imagines que me tenho em grande conta. Conheço o meu coração, este pobre coração: um nó de víboras. Sufocado por elas, saturado do seu veneno, continua a bater debaixo de tanta agitação. Este nó de víboras, impossível de desatar, que seria necessário cortar com uma faca ou com uma espada: não vim trazer a paz, mas a espada
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 78

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

«A minha vagina era a minha aldeia», monólogo de uma mulher bósnia violada

a mastigada dor de não poder
com os dedos tocar o Sol e a Lua,
a mágoa vil de me apodrecer
rumor e cócega dos vermes que me tomam
até ficar apenas dos meus ossos
a mais ímpia e crua gargalhada,
quanto mais só me fico e demoro
os ombrais do destino aproximando,
choro, Senhor, de rastos choro,
miserando, Senhor, tão miserando,
que no côncavo do ventre do meu nada
o meu eco tornasse, em Vós tocando.



24/6/87, Herdade do Sobrado.


Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 21

''folha ligeira que na água treme,"

LUPANAR

BASTAM-ME esses braços descarnados,
         essas úlceras de carmim!
Quero o cheiro do teu corpo barato,
o enjoo dos teus seios,
a náusea de quem nos vê.

Ah, esquecer o mundo lá de fora
e ter versos violentos!
Esquecer mulheres honestas, amigos, livros,
o falso dos risos,
a mentira dos prantos.
Acordar os meus sentidos perdidos
em vícios procurados pelos cantos!

E tu, por exemplo,
serás a minha amante.
Atira-me beijos da janela
quando eu passar na rua
e ao sábado espera-me
para dormir contigo.
Aos outros dias, não, que eu tenho a minha vida...

(...)»




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.41
 

«Errei, errei sem descanso...»

'melancolia espessa'

«(...)

Noite...
(apetece-me repetir o teu nome)
alagaram a cidade com mistério
- que brutos! que brutos os deuses!,
sinto mãos viscosas, aranhiços
a bajularem-me os braços,
andam fantasmas à solta, pelas ruas,
ossos de uma brisa
de voz cava.

É noite.
Quem saberá distinguir
o teu e o meu grito,
a febre e o arrepio,
as carícias e os punhais?

Noite.
Nesta rua onde me deslasso,
filósofo estremunhado,
há uma luz baça
que, ébria, tropeça
na calçada.

(...)»



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.28

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

...Quero-me só, a sofrer e arrastar
a minha cruz.


Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.26

PAISAGEM

Naquela nesga de paisagem andam vagabundos sem
                                                                                    [destino
aos encontrões à Lua.
Há segredos que rugem de calmaria.
Rochas que se deslocam e vão dormir lá ao fundo
no regaço soluçante dos juncos.


Chorar para quê?
...Acordaria o silêncio da trovoada.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.24

A OUTRA CANÇÃO PERDIDA


Das mulheres
     que na minha vida passaram
ficou-me aquela lembrança
de um fio de areia
sobre o regato sedento,
de qualquer frase
que se ficou no tinteiro,
de um cigarro caro
que não se fumou além do meio,
de um grito rouco
gorado nos ouvidos,
de folhas de um diário inacabado
que o tempo desbotou
de vinho
que não deixou nódoa no soalho

Sinto a alma ávida
como sempre
e um cansaço inútil
de bater a tantas portas.

Apenas, do logro,
me resta o travo
dos desejos amargos,
...e ainda às vezes
aquela esperança enganosa
de que passe
quem nunca no meu caminho passou.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5

cabotino


nome masculino

 1. cómico ambulante
2. actor pouco competente na sua profissão
3. figurado indivíduo que alardeia qualidades que não tem

MAR MANSO

Quando o mar amansa,
    brando, mansamente,
um bocejo adormece a natureza.
Tudo dorme, o desespero e a esperança
e o mar,
manso,
tecendo palavras mansas,
é um realejo pérfido
burlando a vida.

Se o menino abre os olhos,
estremunhado,
ou a noiva desperta de um sonho escuro,
o mar
passa os seus dedos brandos por novelos de algas
e as suas histórias mansas
burlam a vida.

Tudo dorme, vento, noivas, crianças.
E o mar
é um monstro manso sem entranhas
escondendo os rugidos
em solidões de areia.






Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5
«(...)


(Não há moças nem risos às janelas.)

Cães uivam dentro da noite
despertando faces opadas
para lá dos vidros foscos.
Roupa já no fio baloiça
nos enxugadoiros das janelas
olhando os gatos e as peixeiras que passam na calçada
- figurantes de sempre para completar a nota...



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.12

Mar de Sargaços

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014



«Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.

O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.

Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.

Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.

Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.

Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.

Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.

Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.

Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.

Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.»
 
António Lobo Antunes

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Moscow. 1962.


«Porque o cheiro mais forte da minha infância é o fedor pútrido dos grãos de milho a germinar.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 65
«Nas brincadeiras com o Tur, ela tinha de ser sempre o cavalo e o Tur é que conduzia a carruagem. E ela caiu e partiu o pé, mas só mais tarde é que se veio a descobrir. O Tur espicaçou-a com o chicote e afirmou que ela estava a fazer fitas, porque já não queria ser o cavalo. Era numa rua íngreme, disse ela, quando se brincava com o Tur, ele comportava-se sempre como um sádico. E eu conto-lhe do jogo da centopeia. As crianças são divididas em duas centopeias. Uma tem de puxar a outra para o seu campo, por cima de uma linha de giz, porque a quer comer. Em cada uma das centopeias, as crianças têm de se agarrar pela barriga e puxar com toda a força. A gente fica toda partida, eu até tive pisadelas nas ancas e um ombro deslocado.»




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

domingo, 12 de janeiro de 2014

Ernst Bloch. Lady with Mushrooms, 1912


«Diz-se que são olhos de mar, tão profundos que o seu fundo tem comunicação com o Mar Negro.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

cismarento

«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.

(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.

(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
«Para lá das quintas dos subúrbios, começava uma pequena cidade de casas amarelo-ocre, de estuque esfarelado e telhados de chapa ferrugenta.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 60

''chaveninhas rosa-pálido''


''ginástica para mutilados''

''voltou a arrumar os alfinetes na caixa de costura.''

«O algodão encharcava-se de chuva e de neve e ficava ensopado durante semanas.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 51

Madeira e Algodão

     « Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
     Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
     Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49

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