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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

«Porque o cheiro mais forte da minha infância é o fedor pútrido dos grãos de milho a germinar.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 65
«Nas brincadeiras com o Tur, ela tinha de ser sempre o cavalo e o Tur é que conduzia a carruagem. E ela caiu e partiu o pé, mas só mais tarde é que se veio a descobrir. O Tur espicaçou-a com o chicote e afirmou que ela estava a fazer fitas, porque já não queria ser o cavalo. Era numa rua íngreme, disse ela, quando se brincava com o Tur, ele comportava-se sempre como um sádico. E eu conto-lhe do jogo da centopeia. As crianças são divididas em duas centopeias. Uma tem de puxar a outra para o seu campo, por cima de uma linha de giz, porque a quer comer. Em cada uma das centopeias, as crianças têm de se agarrar pela barriga e puxar com toda a força. A gente fica toda partida, eu até tive pisadelas nas ancas e um ombro deslocado.»




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

domingo, 12 de janeiro de 2014

«Diz-se que são olhos de mar, tão profundos que o seu fundo tem comunicação com o Mar Negro.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64
«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.

(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.

(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
«Para lá das quintas dos subúrbios, começava uma pequena cidade de casas amarelo-ocre, de estuque esfarelado e telhados de chapa ferrugenta.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 60

''voltou a arrumar os alfinetes na caixa de costura.''

«O algodão encharcava-se de chuva e de neve e ficava ensopado durante semanas.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 51

Madeira e Algodão

     « Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
     Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
     Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49
«Havia muitos dias em que tinha de rir para dentro de mim. Havia muitos outros em que o hotel desabava redondo por dentro, quer dizer, por dentro de mim, e vinham-me as lágrimas aos olhos. Queria voltar a erguer-me, mas já não me reconhecia.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 48
«Porque estávamos cegos de fome e doentes de saudades de casa, apeados do tempo e de nós próprios e desavindos com o mundo. Ou seja, o mundo connosco.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 46/7
«O barbeiro estava a aparar-lhe os pêlos do nariz com uma tesoura enferrujada. Terminada que foi também a segunda narina, escovou-lhe os pelinhos que ficaram no queixo, como formigas, e voltou-se um pouco de costas para o espelho, para o Prikulitsch não o ver piscar o olho. Estás satisfeito, perguntou ele. Disse o Tur: Com o meu nariz, sim.»
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 45

domingo, 29 de dezembro de 2013

«De forma tão incompreensível como o cimento desaparece, crescem também as paredes. A gente recebe ordens para aqui e para ali, começa uma coisa e é enxotada do lugar. Apanha bofetadas e pontapés. Torna-se teimosa e melancólica por dentro e por fora servil e cobarde. O cimento carcome as gengivas até fazer ferida. Quando se abre a boca, os lábios rasgam como papel dos sacos de cimento. A gente cala a boca e obedece.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 38
«Sou obrigado a lembrar-me contra minha vontade. E mesmo quando não sou obrigado, mas quero, preferia não ser obrigado a querer.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 35
«Com geada ou calor de abrasar, passaram-se noites inteiras sem sentido. Só os piolhos em nós tinham permissão de movimento. Durante a interminável contagem, podiam encher-se até rebentar e desfilar em parada pelos nossos corpos miseráveis, rastejar horas a fio desde a cabeça até aos pelos da púbis. Na maior parte das vezes, os piolhos já se tinham enchido e deitado a dormir nas costuras dos casacos enchumaçados e nós continuávamos em sentido. O comandante de campo Chichtvanionov ainda continuava a gritar. O seu nome próprio nós não sabíamos. Chamava-se só tavarichtch Chichtvanionov. Era suficientemente longo para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. Ao ouvir o nome tavarichtch Chichtvanionov, vinha-se sempre à memória o ruído da locomotiva de deportação. E o nicho branco lá na terra, na igreja, O CÉU PÕE O TEMPO EM MOVIMENTO. Com certeza fomos obrigados s ficar em sentido contra o nicho branco, horas sem conta. Os ossos ficaram emperrados como ferro. Quando a carne desaparece no corpo, é o carrego dos ossos que se transforma num fardo, empurrando-te pelo chão dentro.»
 
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 28-29
«O que é que se pode dizer da fome crónica. Pode-se dizer que há uma fome que te põe doente de fome. Que se vem juntar sempre mais faminta à fome que já se tem. A fome sempre nova, que cresce insaciável e se lança em salto mortal para dentro da fome eternamente velha, a custo dominada. Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue pensar noutra coisa. O céu-da-boca é maior que a cabeça. alto e de ouvido aguçado até ao cocuruto do crânio, uma cúpula. Quando já não se aguenta a fome, o céu-da-boca retesa-se como se nos estivessem esticado atrás da cara uma pele de lebre recente a secar. As faces murcham e cobrem-se de pálida penugem.
   Nunca soube, será que deve acusar-se a erva-armola azeda de já não a podermos comer, porque fica lenhosa e se nos recusa. Saberá a erva que já não nos serve a nós e à fome, mas ao anjo da fome. »
 


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 26-27
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