domingo, 29 de dezembro de 2013

«Com geada ou calor de abrasar, passaram-se noites inteiras sem sentido. Só os piolhos em nós tinham permissão de movimento. Durante a interminável contagem, podiam encher-se até rebentar e desfilar em parada pelos nossos corpos miseráveis, rastejar horas a fio desde a cabeça até aos pelos da púbis. Na maior parte das vezes, os piolhos já se tinham enchido e deitado a dormir nas costuras dos casacos enchumaçados e nós continuávamos em sentido. O comandante de campo Chichtvanionov ainda continuava a gritar. O seu nome próprio nós não sabíamos. Chamava-se só tavarichtch Chichtvanionov. Era suficientemente longo para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. Ao ouvir o nome tavarichtch Chichtvanionov, vinha-se sempre à memória o ruído da locomotiva de deportação. E o nicho branco lá na terra, na igreja, O CÉU PÕE O TEMPO EM MOVIMENTO. Com certeza fomos obrigados s ficar em sentido contra o nicho branco, horas sem conta. Os ossos ficaram emperrados como ferro. Quando a carne desaparece no corpo, é o carrego dos ossos que se transforma num fardo, empurrando-te pelo chão dentro.»
 
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 28-29
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