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domingo, 4 de agosto de 2024

sábado, 3 de agosto de 2024

''Eu não via mais minha mãe. A trança ainda queimava. O quarto estava cheio de fumaça. Eles mataram você, disse minha mãe. Nós não nos enxergávamos mais de tanta fumaça que havia no quarto. Eu ouvia seus passos perto de mim. Tateava por ela com os braços esticados. De repente ela enganchou sua mão magra em meu cabelo. Sacudia minha cabeça. Eu gritava. Arregalei os olhos. O quarto girava. Eu estava deitada numa esfera de flores brancas despetaladas e estava presa. Então tive a sensação de que a casa caía e se esfarelava no chão. O despertador tocou. Era sábado de manhã, cinco e meia.''

Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio (2011)

 Herta Müller

''a paisagem dos despossuídos”

 “Aquilo que levianamente se denomina história também era para cada um da minha família, desde o nazismo, passando pelos anos 1950, o lado noturno da garganta. Cada um deles foi convocado pela história, tinha de alistar-se junto à história como vilão ou como vítima. E da dispensa da história nenhum deles saiu incólume. Meu pai anestesiava seu tempo como soldado da SS na bebedeira. Minha mãe se debatia com a careca morta de fome que ela fora como deportada, minha avó venerava a mala do acordeão, meu avô não largava seus blocos de recibos. Em cada um deles colidiam coisas na cabeça que jamais deveriam encontrar-se. Só fui realmente compreender como esses meus familiares se ressentiam desses danos quando eu mesma havia topado com a falta de saída. Só então eu sabia que com um assalto profundo demais todos os nervos ficam sobrecarregados para sempre. Que essa sobrecarga se afirma nos dias posteriores, que até mesmo recorre ao tempo anterior a ela. Ela não muda somente as coisas posteriores, mas também as anteriores que não teriam nada a ver com a fenda na vida, caso não houvesse a fenda. Tudo é magnetizado por essa ruptura, na cabeça toda e na vida toda nada mais se separa dela. O que havia antes da fenda se apresenta depois como se já tivesse estado aí escondido e por isso não fora reconhecido, já então um prenúncio inequívoco da perda posterior, um prólogo levianamente ignorado.''


(Herta Müller. Se nos calamos, tornamo-nos incômodos- se falamos, tornamo-nos ridículos. In: O rei se inclina e mata, p.99-100)

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Colour Grey Poem by Herta Müller

 1.

I grow time, beans, the colour gray
And stitch the shadows of a dying day
They make a woman, rather a girl
Lost in the ocean like a grain of pearl
The swans of Coole fly over me
Will they rest for a while by me!
Maybe it's my turn now.
Deep in the frost where my eyes shall never go
The leopard will print his paw
And with a sudden leap break free
All the chimes of poetry
Maybe it's my turn now.
The rough beast was never born
Though we devised a cage for his morn
Maybe it's my turn now.
I have a tale to tell I shall also ring the bell
When you start believing
When you start hearing
Maybe it's my turn now.

2.
These days I don't think of you
But after the soot covers me
I begin to wonder where those
Evenings have gone, those wanderings
In the spacious lawns of enchantment
That smacked of no design, though
We were bent on making a sense
The early birds get their worms
I lie in the tireless ticking of my old watch
Counting the bits of frozen blood,
Listening to the worms
That are in all of us
Then I begin to crawl towards the womb
That threw me off a long way back
And look for the dark, the black hole
To suck me up.

3.
I was nice to him
He was nice to me
Only
Our doors, our windows
Kept closed
Lest we smell each other.

Translated into English by Roger Woodhouse

A terra das ameixas verdes / Herta Müller

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

«Porque o cheiro mais forte da minha infância é o fedor pútrido dos grãos de milho a germinar.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 65
«Nas brincadeiras com o Tur, ela tinha de ser sempre o cavalo e o Tur é que conduzia a carruagem. E ela caiu e partiu o pé, mas só mais tarde é que se veio a descobrir. O Tur espicaçou-a com o chicote e afirmou que ela estava a fazer fitas, porque já não queria ser o cavalo. Era numa rua íngreme, disse ela, quando se brincava com o Tur, ele comportava-se sempre como um sádico. E eu conto-lhe do jogo da centopeia. As crianças são divididas em duas centopeias. Uma tem de puxar a outra para o seu campo, por cima de uma linha de giz, porque a quer comer. Em cada uma das centopeias, as crianças têm de se agarrar pela barriga e puxar com toda a força. A gente fica toda partida, eu até tive pisadelas nas ancas e um ombro deslocado.»




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

domingo, 12 de janeiro de 2014

«Diz-se que são olhos de mar, tão profundos que o seu fundo tem comunicação com o Mar Negro.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64
«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.

(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.

(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
«Para lá das quintas dos subúrbios, começava uma pequena cidade de casas amarelo-ocre, de estuque esfarelado e telhados de chapa ferrugenta.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 60

''chaveninhas rosa-pálido''

''ginástica para mutilados''

''voltou a arrumar os alfinetes na caixa de costura.''

«O algodão encharcava-se de chuva e de neve e ficava ensopado durante semanas.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 51

Madeira e Algodão

     « Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
     Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
     Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49
«Havia muitos dias em que tinha de rir para dentro de mim. Havia muitos outros em que o hotel desabava redondo por dentro, quer dizer, por dentro de mim, e vinham-me as lágrimas aos olhos. Queria voltar a erguer-me, mas já não me reconhecia.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 48
«Porque estávamos cegos de fome e doentes de saudades de casa, apeados do tempo e de nós próprios e desavindos com o mundo. Ou seja, o mundo connosco.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 46/7
«O barbeiro estava a aparar-lhe os pêlos do nariz com uma tesoura enferrujada. Terminada que foi também a segunda narina, escovou-lhe os pelinhos que ficaram no queixo, como formigas, e voltou-se um pouco de costas para o espelho, para o Prikulitsch não o ver piscar o olho. Estás satisfeito, perguntou ele. Disse o Tur: Com o meu nariz, sim.»
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 45
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