“Aquilo que levianamente se denomina história também era para cada um da minha família, desde o nazismo, passando pelos anos 1950, o lado noturno da garganta. Cada um deles foi convocado pela história, tinha de alistar-se junto à história como vilão ou como vítima. E da dispensa da história nenhum deles saiu incólume. Meu pai anestesiava seu tempo como soldado da SS na bebedeira. Minha mãe se debatia com a careca morta de fome que ela fora como deportada, minha avó venerava a mala do acordeão, meu avô não largava seus blocos de recibos. Em cada um deles colidiam coisas na cabeça que jamais deveriam encontrar-se. Só fui realmente compreender como esses meus familiares se ressentiam desses danos quando eu mesma havia topado com a falta de saída. Só então eu sabia que com um assalto profundo demais todos os nervos ficam sobrecarregados para sempre. Que essa sobrecarga se afirma nos dias posteriores, que até mesmo recorre ao tempo anterior a ela. Ela não muda somente as coisas posteriores, mas também as anteriores que não teriam nada a ver com a fenda na vida, caso não houvesse a fenda. Tudo é magnetizado por essa ruptura, na cabeça toda e na vida toda nada mais se separa dela. O que havia antes da fenda se apresenta depois como se já tivesse estado aí escondido e por isso não fora reconhecido, já então um prenúncio inequívoco da perda posterior, um prólogo levianamente ignorado.''
(Herta Müller. Se nos calamos, tornamo-nos incômodos- se falamos, tornamo-nos ridículos. In: O rei se inclina e mata, p.99-100)
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