« Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49