quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tradução

«O tradutor, como aponta Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao livro de Susana Lages, é justamente um mestre das passagens e dos intervalos, aquele que proporciona uma travessia entre as línguas, mas uma travessia que não exclui o carácter de impasse inerente a tal actividade. O tradutor é, então, um novo Ulisses, pois não pode entregar-se totalmente ao texto estrangeiro com o risco de tornar-se mudo, de sucumbir ao canto das sereias. Ele precisará manter-se nesse lugar tenso, em que ouve o canto, o chamado do exterior, mas continua agarrado ao mastro, à sua língua natal.
Assim, a tradução terá sempre que lidar com um carácter intervalar, representado por uma pura diferença, pressupondo, portanto, uma duplicidade e o enfrentamento de uma realidade que é absolutamente estranha, estrangeira, impossível de ser recuperada. Ao realizar a sua obra, enquanto tenta ultrapassar esse intervalo, o tradutor escava o abismo que separa, ao mesmo tempo em que aproxima, o original da tradução, e se, por um lado, algo da língua original se perde, por outro, a língua do tradutor também sofrerá modificações, como assinalamos anteriormente no caso da tradução do poema dos caxinauás. »



Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp.99-100

Universal Mind





I was doing time in the universal mind,/I was feeling fine./I Was turning keys. I Was setting people free, /I Was doing all right.

Then you came along / With a suitcase and a song,/ turned my head along./Now I'm so alone / just looking for a home / in very place I see. / I'm the freedom man. I'm the freedom man./ I'm the freedom man, that's how lucky I am.



Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., p. 85

A Celebração do Lagarto

Leões na rua, vadios
Cães babando raiva e cio
Fera enjaulada dentro da cidade
O corpo da mãe
A apodrecer no asfalto do Verão.
Ele fugiu da cidade.

Desceu para Sul e passou a fronteira
Deixou o caos e a desordem
Tudo para trás das costas.

Acordou um dia numa pensão verde
Com um estranho ser rosnando ao seu lado.
O suor encharcava-lhe a pele luzidia.

Já está toda a gente?
Vamos dar início ao cerimonial.


Desperta!
Não te lembras de onde foi?
O tal sonho terminou?

A serpente era de ouro baço
Vítrea & enroscada.
Receávamos tocar-lhe.
Os lençóis eram prisões mortalmente abafadas
& ela sempre à minha beira.
Velha não era...jovem
De cabelo ruivo escuro
A pele branca e macia.
Corre prà casa de banho e vê-te
ao espelho!

Aí vem ela a entrar
Cada gesto dela é um século lento que eu não sei viver.
Deixo-me cair e encosto a cara
Ao cimento gelado.
Sinto a fria doçura do sangue a espicaçar-me,
O brando assobio das serpentes da chuva...

Brinquei em tempos a um jogo
Gostava de regressar rastejando mentalmente
Deves saber de que jogo se trata
É o jogo chamado «fazer de maluco»

Devias tentar brincar a esse jogo
Fechas os olhos esqueces o nome
Esqueces o mundo, esqueces toda a gente
E ambos erguemos uma torre diferente.

(...)


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp. 89-91

4 de Setembro de 1940

No pinheiro são abolidos s suas expansões sucessivas (no pinheiro dos bosques, especialmente) que felizmente corrige, libertando-se da maldição habitualmente sofrida pelos vegetais: ter que viver eternamente com o peso de todos os gestos desde a infância. A essa árvore mais do que a qualquer outra é permitido separar-se dos seus antigos desenvolvimentos. É-lhe permitido esquecer. É verdade que os desenvolvimentos seguintes se assemelham muito aos antigos, caducos. Mas não importa. O prazer está em abolir e recomeçar. E depois é sempre mais acima que isso se passa. Parece que se ganhou qualquer coisa.


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 49

3 de Setembro de 1940

Se os indivíduos da orla (orla ou extremidade: termos a verificar no dicionário) ocultam bastante bem o interior dos olhares do exterior, ocultam muito mal o exterior dos olhares do interior. Funcionam como vitrais, ou melhor (porque não são translúcidos) como um vitral de tecido, ou de pedra, ou de madeira esculpida. Quando o bosque é suficientemente vasto ou espesso, do seu interior não se apercebe a faixa lateral de céu, é preciso avançar em direcção à orla, até ao ponto em que a absoluta espessura do bosque se desvanece. Seria sublime consegui-lo dentro de uma catedral: uma floresta de colunas de tal maneira que se chegaria progressivamente à obscuridade total (cripta).
E no entanto é mesmo mais ou menos isso que acontece no bosque, apesar de não haver afinal nenhum muro, de tal forma que o monumento respira por todos os poros em plena natureza, melhor que um pulmão, como brônquios.
Poderia dizer-se mesmo que esse deveria ser o critério de qualquer acabamento, a condição desse tipo de arquitectura: o ponto onde a obscuridade total se realizaria, tendo em conta por exemplo que entre cada coluna deve ser deixado um espaço de tanto, que permita facilmente um passeio a , etc., etc.




Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., pp.46/7

terça-feira, 18 de maio de 2010

Tudo o que disso se recolher servirá de alimentação. Quer dizer:
podemos devorar a nossa biografia, podemos ser antropófagos,
canibais do coração pessoal. Aquilo que se escreva conservará
cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o
nosso rosto filmado no abismo do mundo.

Herberto Helder

As musas cegas

(...)

Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.


Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.76.
«É preciso criar palavras, sons, palavras / vivas, obscuras, terríveis. / É preciso criar os mortos pela força / magnética das palavras.»


Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004.
«E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles,como jactos / para fora da terra.»


Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004., p. 48

Morte no brilho


« (...)antologia de poesia portuguesa organizada por Herberto Helder, a saber: Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. A presença das "vozes comunicantes" reveladas nesse livro atesta que um poeta nunca está sozinho, por mais que a sua obra pareça destacar-se do cenário em que se insere, ou seja, por mais que ela nos dê a impressão de ser totalmente inovadora quando comparada à tradição. Entretanto, esse "solipsismo extremado" – para evocar um termo de Harold Bloom – que alguns poetas parecem apresentar, e até mesmo desejar, é ilusório, uma vez que todo poeta está sempre submetido a uma relação dialéctica com outros poetas, seja ela de afirmação ou negação, de repetição ou adulteração.»

Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., p. 16
.................E sobre a solidão das casas,
entre o sono e o vinho derramado,
curvam-se os cascos do demónio -
ágeis, frágeis.
E o sonâmbulo desejo do nosso coração
tudo absorve ao alto, como uma tenebrosa
vertigem.


(pequeno excerto retirado do poema IV de 'Fonte')


Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.64.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Perfumados prados do meu peito

Perfumados prados do meu peito,
Colho as vossas folhas, escrevo, para melhor as estudar depois,
Folhas dos túmulos, folhas do corpo crescendo sobre mim, so-
bre a morte,
Raízes vivas, altas folhas, oh o inverno não vos enregelará, delicadas
folhas.
De novo floresceis todos os anos, de novo saindo do vosso
retiro;
Eu não sei se muitos ao passar vos hão-de descobrir ou aspirar
tão suave aroma, mas sei que alguns o farão;
Oh delicadas folhas! Flores do meu sangue! Falai à vossa maneira
do coração que por baixo tendes,
Eu não sei qual o vosso subterrâneo sentido, não sois felicidade,
Sois muitas vezes tão cruéis que não vos posso suportar, queimais-
me e feris-me,
E, todavia, que bela sois aos meus olhos, raízes levemente colo-
ridas, fazendo-me pensar na morte,
A julgar por vós a morte é bela, (enfim, que haverá de mais belo
senão a morte e o amor?),
Oh creio que não é em louvor da vida que aqui canto o meu
canto de amantes, creio que é em louvor da morte,
Pois, como é sereno, como floresce solenemente ao elevar-se à
atmosfera dos amantes!
Vida ou morte, tanto me faz, a minha alma recusa-se a escolher,
(Talvez a alma sublime dos amantes prefira a morte,)
Na verdade, ó morte, penso que estas folhas significam o mesmo
que tu,
Crescei, doces folhas, para que vos possa ver! Crescei sobre o
meu peito!
Abandonai o coração que aí se oculta!
Não vos enredeis, tímidas folhas, em vossas rosadas raízes!
Não vos quedeis aí, envergonhadas, ervas do meu peito!
Vinde, estou decidido a desnudar este amplo peito, tanto tempo
o reprimi e sufoquei;
Emblemáticas e caprichosas folhas, deixo-vos, pois já não me
sois úteis,
Sem rodeios direi o que tenho a dizer,
Só a mim e aos companheiros hei-de cantar, jamais atenderei
outra voz que não a sua,
Despertarei ecos imortais em todos os estados do meu país,
Aos amantes darei um exemplo que seja para sempre forma e
vontade em todos os estados do meu país,
Pronunciarei as palavras que exaltem a morte,
Dá-me então a tua música, ó morte, para estarmos em harmonia,
Dá-te a mim porque agora sei que acima de tudo me pertences e
que tu e o amor estão inseparavelmente unidos,
Não permitirei que me enganes mais com isso a que chamava
vida,
Porque enfim compreendo que és os conteúdos essenciais,
Que, por qualquer razão, te escondes nestas mutáveis formas de
vida, e que elas existem sobretudo para ti,
Que, para além delas, surges e permaneces, tu, realidade real,
Que, sob a máscara das coisas materiais, aguardas pacientemente,
não importa quanto tempo,
Que, talvez um dia, tudo dominarás,
Que talvez dissipes todo este imenso desfile de aparências,
Que talvez seja para ti que tudo existe mas não perdura,
Mas tu perdurarás.


Walt Whitman.
Cálamo. Edição bilingue. Versão de José Agostinho Baptista. Lisboa, Assíro&Alvim, 1999., pp. 19-23.
A propósito de um início de leitura (viagem), pelo livro Cálamo de Walt Whitman, encontra-se às tantas, uma opinião crítica (algumas, que se diziam na altura) que me deixou estupefacta, a olhar e a reler a 'bosta', com alguma incredulidade:

«O autor devia ser corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas. Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio» (Intelligencer, Boston, 1855)

domingo, 16 de maio de 2010

Aquele que não ama permanece na morte.


(1ª Carta de São João:1603)
«Nas cordas do peito sopra uma profunda nostalgia. Em gotas de orvalho me quero deixar afundar e misturar-me com a cinza. Longes da memória, anelos da juventude, sonhos da infância e os breves regozijos e esperanças vãs de toda uma vida tão longa vêem, com as suas vestes cinzentas como a névoa da tarde após o sol posto. A luz descerrou noutros espaços os seus álacres panais. Pois não havia ela de regressar para junto dos seus filhos, que a esperavam há muito com a fé da inocência?
O que é que, de repente, pleno de pressentimentos, brota de sob o coração e sorve a doce aragem de melancolia? Também em nós te comprazes, obscura Noite. O que é que tu guardas debaixo do teu manto, que me toca a alma com uma força invisível? Um bálsamo precioso goteja da tua mão, de um molho de papoilas. Elevas as pesadas asas do nosso ânimo. Sentimo-nos obscuramente, inexprimivelmente comovidos. Vejo, numa crispação de alegria, um rosto grave, que para mim se inclina suave e pensativo, e até mim traz, por entre infinitas madeixas ondeadas, a tão doce juventude materna.»

Novalis. Os hinos à noite. Prefácio e Trad. Fiama Hasse Pais Brandão. 2ªed. Lisboa, Assírio&Alvim, 1998., p 19

A rã da paz

Há sangue pelas ruas, chega-me aos tornozelos.
Há sangue nas ruas, chega-me ao joelho.
Sangue nas ruas de Chicago cidade,
maré de sangue na minha peugada.

Ela apareceu ao romper do dia,
apareceu e partiu com o sol nos cabelos.

Corre o sangue nas ruas, enxurrada de dor.
Sangue nas ruas, a dar-me pelas pernas.
Rio a passar entre as pernas da cidade,
choram as mulheres rubros rios de lágrimas.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., p. 71



foda-se, há dias em que as nossas almas, se prostam diante os desígnios: talvez a auto-percepção do 'caminho individual' nasça dentro de um útero forrado de labirínticas iluminações - o inferno é um lago luminoso.

«Tornar-te-ás só quem tu sempre foste
O que te os Deuses dão, dão no começo »


Ricardo Reis. Poesia. Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa, Assírio&Alvim, 2000., p.79

Fábula(s)

«(...) enquanto na fábula tradicional há um processo de humanização dos animais, na fábula contemporânea acontece o contrário: os homens são animalizados.»


Enrique Turpin Avilés. «El género de la fábula en los noventa: inflexiones y propuestas», 2001.
«Eu, como qualquer outro poeta imagino, vivo materialmente o que escrevo. Quer dizer, não há nenhuma emoção ou pensamento nos meus poemas que eu não tenha realmente sentido ou pensado.» (António Franco Alexandre, 2002: 24)
«Toda a poesia é luminosa, até/ a mais obscura.»


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Fim

É o fim, amigo querido,
é o fim, amigo único, o fim
dos planos que forjámos, o fim
de tudo o que era firme, o fim
sem apelo ou surpresa, o fim.
Nem mais te olharei nos olhos.
Vê se imaginas o que vai ser de nós,
limitados e libertos,
desesperadamente necessitados da mão dum estranho
num mundo desesperado?

Perdidos num romano deserto de mágoas,
com todas as crianças atacadas pela loucura,
todas as crianças atacadas pela loucura,
à espera da chuva de Verão.

É perigoso passar ao pé da cidade,
segue a direito pela estrada real.
Cenas mágicas dentro da mina de ouro;
segue pela estrada do oeste, amor.

Vai, vai a cavalo na serpente
até ao lago de antigamente.
A serpente mede sete longas milhas:
põe-te a cavalo na serpente, que é velha
e tem a pele frígida.
O Oeste é óptimo, óptimo é o Oeste,
vem até cá, nós faremos o resto.
O autocarro azul chama por nós,
o autocarro azul chama por nós.
Aonde nos leva, senhor condutor?

O assassino acordou antes da aurora,
calçou as botas,
retirou uma cara da galeria antiga,
e seguiu pelo átrio adiante.
Foi até ao quarto onde a irmã vivia,
foi seguidamente visitar o irmão,
e dali seguiu pelo átrio fora.
E chegou a uma porta
e olhou lá para dentro.
-Pai!
-Sim, meu filho?
- Eu quero matar-te.
Mãe eu quero que...


Entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,
opera-me nas traseiras do autocarro azul...


É o fim, amigo querido,
é o fim, amigo único, o fim.
Custa-me deixar-te, mas
nunca irás pra onde eu for.
O fim da risada e das doces mentiras,
o fim das noites em que fizemos por morrer,
é o fim.



Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.23/5

Aceita O Que Vier

Tempo pra viver, tempo pra mentir,
tempo pra rir, tempo pra morrer.

Toma cuidado querida, aceita o que vier.
Não te precipites se queres que o amor dure.
Tens-te precipitado demais.

Tempo pra andar, tempo pra comer
tempo pra vibrares os dardos ao sol.

Vai devagar, verás que te sabe cada vez melhor,
aceita o que vier, tira a especialidade do prazer.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.22

As Pessoas São Estranhas

As pessoas são estranhas quando nós o somos,
feias são as caras quando nos vemos só.
Toda a mulher que nos rejeita nos parece perversa,
as ruas são torturosas quando estamos em baixo.
Quando nos sentimos estranhos, surgem-nos caras através da chuva,
quando nos sentimos estranhos, ninguém se lembra do nosso nome,
quando nos sentimos estranhos, quando nos sentimos estranhos,
quando nos sentimos estranhos.


Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.33

quarta-feira, 12 de maio de 2010




O mar é uma das referências mais constantes do universo lírico de Luís Miguel Nava. O mar e todos os elementos que naturalmente lhe estão associados: ondas, rebentação, falésias, etc.

À volta do campo semântico gerado pelo mar, gravitam dois temas essenciais: a infância e o amor. Logo no poema inaugural de Películas se pode ler “… isto explode e entra/nesta página o mar da minha infância, meigo/no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender um texto na memória”.Numa poesia tão ostensivamente corporal, o mar também entra no corpo e mistura-se com ele. O mar ora é objecto motor que arrasta consigo, deflagrando, os lugares e as presenças mais impressivas da infância, ora é objecto movido. Em qualquer dos casos, é o mar uma força inexpugnável: “…às vezes extravio-me, ao enfiar pela memória/as ondas saem-me ao caminho”, ou “..o mar de que deflagram/as ondas por acção da memória”. A estreita relação existente entre o mar e as recordações parece ser bem clara, pois “..disponho alguns retratos junto ao mar, o mar/rebenta-lhes em cima e atravessa-os, fica dentro/deles”. É ainda a energia do mar que traz consigo a figura da mãe, e também, embora com muito menos força, a figura do pai, duas das presenças mais relacionadas com a infância.

Como representação da pele, o mar conduz-nos ao domínio dos afectos.


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas, p. 129

terça-feira, 11 de maio de 2010

…Mergulho às vezes as mãos na minha esperança, mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem em raízes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade - penso, olhando o redemoinho - assim correm os afectos, que, depois de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar, se escoam sem regresso em direcção ao caos.


Luís Miguel Nava. O Céu Sob as Entranhas. Porto, Limiar,1989, p.53.

«Não foi sem dificuldades que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converterse nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá- Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objectos cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente se divide entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer que ele esteja já dentro de ti - e algo de mim com ele. Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos.»


Luís Miguel Nava. Vulcão. Lisboa, Quetzal, 1994, p.63.
Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.



Luís Miguel Nava. Poemas.Porto, Limiar, 1987, p.79.

Luís Miguel Nava: até à raiz da alma

Nava abriu um caminho: um percurso estranho e contudo reconhecível, que conduz ao interior menos visitado do homem, alargando, ao mesmo tempo, as formas de comunicação com o quotidiano, ao aprofundar intensamente os vínculos que nos unem ao nosso próprio corpo. Habituados a um lirismo muitas vezes feito de metáforas domesticadas pelo uso reiterado, invade-nos uma sensação de desconforto ao entrarmos pela primeira vez no universo de uma poesia, que faz do corpo o centro de irradiação de todos os sentidos e de todas as demandas. É a partir do corpo que se organiza, de forma meticulosa e obsidiante, o mundo habitável e habitado desta poesia. Não se trata, no entanto, de um corpo solar e epidérmico, símbolo gasto de devaneios eróticos, reconhecidos por uma tradição de séculos. Trata-se de um corpo radiculado, cavernoso, húmido e exposto, desde o labirinto dos nervos, até às janelas que a memória abre sobre a pele. (pp.125)


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas
Não há nada mais profundo que a pele.


Valery

segunda-feira, 10 de maio de 2010

1

I

por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,

enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo


a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível


II

depois, ameias entre os venenos,
os versos:

carótida, laringe, fuligem, falange


os versos: um secreto combate, os versos

tantas vezes não mais que sombras

entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra



III

em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes

o que há dentro de um nome?

em verdade falo apenas de um imóvel caminho

um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio


Luís Felício
ter-se-á acordado? (o pássaro de olho negro vê o sangue deslizar pela orla do sonho.)



9/11/2009
«Se ao menos eu tivesse tido tempo! Mas já não tinha. E agora já nada havia para roubar! Que bom seria estar numa prisão aconchegada, dizia para comigo, onde as balas não passam! Onde nunca passam! Eu conhecia uma pronta a servir, ao sol, ao calor! Como num sonho, a de Saint-Germain precisamente, tão perto da floresta, eu conhecia-a bem, antigamente passava muitas vezes por lá. Como nós mudamos! Nessa altura eu era uma criança e fazia-me medo, a prisão. É que ainda não conhecia os homens. Nunca mais vou acreditar no que eles dizem, no que eles pensam. Dos homens e só dos homens devemos ter sempre medo. »


Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.28
«Há bastantes maneiras de sermos condenados à morte.»




Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.28

Fragmentos


O Pinhal

Fábrica alpina de escovas rodeada por espelhos
De cabos de madeira púrpura com frondosos pêlos verdes
Na tua penumbra quente manchada de sol
Veio pentear-se Vénus ao sair da banheira
Marinha ou lacustre fumegante na parte inferior...
Daí a espessura no solo elástico e vermelho
Dos ganchos de cabelo odoríferos
Para ali sacudidos por tantos cimos negligentes
-E o meu prazer também de aí saborear o sono


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 33

domingo, 9 de maio de 2010

Em Agosto: É, totalmente rodeada por espelhos, uma praça de ganchos de cabelos odoríferos, por vezes soerguidos pela curiosidade doentia e prudente dos cogumelos; uma fábrica de escovas de longos cabos de madeira púrpura esculpidos, com pêlos verdes, escolhida pela ruiva nobre e selvagem que sai da banheira lacustre ou marinha fumegante na parte inferior.


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 29
«Viver rodeado por outros, abriga o pinheiro a libertar-se de todos os seus desenvolvimentos laterais, dos primeiros rebentos: Ponge elabora então, antropomorficamente, e em termos de obrigatoriedade social, (o que a tornaria perfeita), uma utópica felicidade: «a permissão de esquecer...o peso de todos os seus gestos desde a infância».


Nota introdutória de Leonor Nazaré ao livro:


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 9

quinta-feira, 6 de maio de 2010

i suddenly became interested in another kind of sound and pulse


daqui (um blogue, para noite de insónias)
«Numa história destas não há nada a fazer, só pormo-nos a cavar», dizia a mim próprio, apesar disso...
Por cima das nossas cabeças, a dois milímetros, talvez a um milímetro das têmporas, um após outro vinham vibrar esses longos fios de aço traçados pelas balas que nos queriam matar no ar quente do Verão. Nunca eu me sentira tão inútil por entre essas balas todas e as luzes daquele sol. Uma imensa, uma universal zombaria.




Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.25

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Si l'on devait citer le poète qui a exercé l'influence la plus profonde sur la poésie du début du xx siècle, il fraudait nommer Rimbaud. Avec plus de hardiesse encore que Baudelaire, il a étendu le champ d'exploration de la poésie. [...] C'est qu'il n'a pas hésité à se mettre en communication avec la part inconnaissable de lui-même. Il y a découvert un grand jeu d'images, fleurs éclatées, filles à lèvres d'orange, déluges et miracles, un jeu dont chaque figure ressemble à un message marqué d'un sceau incompréhensible et sacré.



Kléber Haedens. Rimbaud Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche.

domingo, 2 de maio de 2010


excerto do texto: 'Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira)'

« (...)na poesia de Luís Miguel Nava o movimento consiste, exactamente, em aproximar de tal modo o corpo do olhar, que doravante só é possível uma visão parcelar que reduz o todo a imagens fragmentadas. Assim tratado como objecto, o corpo evocado pela escrita despoja-se da sua espiritualidade. O olhar é aqui desfigurador porque irremediavelmente próximo (ou à distância, mas como se estivesse próximo por meio de uma poderosa lente de ampliação). Talvez esta distância tão próxima seja também tão íntima que não se pode ser observador sem se tomar simultaneamente observado. A desfiguração atinge, assim, o sujeito poético e a ferida aberta propaga-se ao espírito, ou talvez aconteça exactamente o contrário: é a desfiguração do espírito que contagia o corpo e se estende à pele.

Em Vulcão podemos ler:

O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…

De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.


Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.

Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]

Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:

Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior

e ainda:

graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..

Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele

Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:

A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.

No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]

Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]

A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.

Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:

Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…

Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:

Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…


Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:

…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.

Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:

Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!

O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:

A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.

Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.

Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler

Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..

É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.

Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:

Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…

Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:

…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,

Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:

O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.

E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:

O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,

Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:

ir imitando o céu assim como podia.

No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.

Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.

Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:

pois no teu corpo existe o mundo todo.


Rosa Alice Branco. Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira) - texto publicado na Agulha,revista de cultura # 38 - fortaleza, são paulo - abril de 2004 .

Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.



Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.

A noite

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.



Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.
* «Porventura com a consciência de que se tratava de uma obra de interesse universal - parece ter Fernando Pessoa encarado a hipótese de traduzir ou reescrever em francês O Marinheiro. Entre os seus manuscritos inéditos encontrou-se um fragmento - encabeçado com a indicação «O Marinheiro-drama estático n'um quadro» e datado de 20- XI-24 - que se afigura dever pertencer a uma das veladoras (provavelmente a segunda):


Aussi loin que possible de la vie
je vis ma vie
Et je m'emerveille aux [changements]
De mes instants.
Quel est l'enfant que tu aportes
Par la main; et qui pleure
Comme si tout le monde [n'allait] pas
Vers sa demeure?
Oh, l'automne s'en ira peut-être
Et ce sera l'aube



Fernando Pessoa. Poemas Dramáticos. Edições Ática., p.61

sábado, 1 de maio de 2010

Os Adeuses

«E, tal como as estações, também vós, no vosso inverno, negais a vossa
primavera, no entanto, a primavera que repousa em vós, sorri meio adormecida e
não fica ofendida.

(...)

Os vossos pensamentos e as minhas palavras são ondas de uma memória
selada que mantém registados os nossos ontens, e os dias antigos quando a terra
não nos conhecia nem se conhecia a si própria, e as noites em que a terra estava
mergulhada em caos. »


Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.70

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Sobre o Bem e o Mal

«Vós sois bons de inúmeras formas e não sois maus quando não sois bons.
Sois apenas vagabundos e ociosos.
É pena que o veado não possa ensinar a rapidez à tartaruga.
Mas o vosso desejo pelo vosso eu gigante reside na vossa bondade: e essa
bondade está no todo de vós.
Mas em alguns de vós esse desejo é uma corrente que se dirige para o mar,
levando os segredos das encostas e as canções da floresta.
E noutros é um ribeiro sereno que se perde nos ângulos e nas curvas antes de
chegar à costa.»


Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.53

Bill Fay : Camille

«Pois se fizerdes o pão com indiferença, estareis a fazer um pão tão amargo
que só saciará metade da fome.

E se esmagardes as uvas de má vontade, essa má vontade contaminará o
vinho com veneno.»


Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923

Gibran Khalil Gibran, 1908

Sobre o Amor

Quando o amor vier ter convosco,
Seguros embora os seus caminhos sejam árduos e sinuosos.
E quando as suas asas vos envolverem, abraçai-o, embora a espada oculta sob
as asas vos possa ferir.
E quando ele falar convosco, acreditai,
Embora a sua voz possa abalar os vossos sonhos como o vento do norte
devasta o jardim.
Pois o amor, coroando-vos, também vos sacrificará. Assim como é para o
vosso crescimento também é para a vossa decadência.
Mesmo que ele suba até vós e acaricie os mais ternos ramos que tremem ao
sol,
Também até às raízes ele descerá e abaná-las-à
Enquanto elas se agarram à terra.
Como molhos de trigo ele vos junta a si.
Vos amanha para vos pôr a nu.

Vos peneira para vos libertar das impurezas.
Vos mói até à alvura.
Vos amassa até vos tomardes moldáveis;
E depois entrega-vos ao seu fogo sagrado, para que vos tomeis pão sagrado
para a sagrada festa de Deus.
Toda estas coisas vos fará o amor até que conheçais os segredos do vosso
coração, e, com esse conhecimento, vos tomeis um fragmento do coração da
Vida.
Mas se, receosos, procurardes só a paz do amor e o prazer do amor,
Então é melhor que oculteis a vossa nudez e saiais do amor,
Para o mundo sem sentido onde rireis, mas não com todo o vosso riso, e
chorareis mas não com todas as vossas lágrimas.
O amor só se dá a si e não tira nada senão de si.
O amor não possui nem é possuído;
Pois o amor basta-se a si próprio.



Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923

A chegada do Navio

«Muitos foram os dias de dor que passei dentro das suas muralhas, e muitas
foram as noites de solidão; e quem pode separar-se da dor e da solidão sem
mágoa?

Espalhei demasiados fragmentos do espírito por estas ruas, e muitos são os
filhos da nostalgia que caminham nus por estas colinas, e não posso afastar-me
deles sem peso nem dor.

Não é a roupa que hoje dispo, mas uma pele que arranco com as minhas
próprias mãos.»


Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
Quando vos secar a fome na boca, procurai o deserto.

*



J´étais un foetus.
Ma mère me réveillat quand il lui arrivait de penser à M. de Riez.
En même temps, parfois se trouvaient éveillés d´autres foetus, soit de
mères battues ou qui buvaient de l´alcool ou occupées au confessional.
Nous étions ainsi, un soir, soixante-dix foetus qui causions de ventre à
ventre, je ne sais trop par quel mode, et à distance.
Plus tard nous ne sommes jamais retrouvés.
J´étais une parole qui tentait d´avancer à la vitesse de la pensée.
Les camarades de la pensée assistaient.
Pas une ne voulut sur moi tenir le moindre pari, et elles étaient bien là
six cent mille qui me regardaient en riant.



Eu era um feto.
Minha mãe me despertava quando chegava a pensar no Senhor de Riez.
Ao mesmo tempo, às vezes outros fetos acordavam, filhos de
mães espancadas ou que bebiam álcool ou ocupadas no confessionário.
Uma noite, éramos em torno de setenta fetos que conversavam de ventre a ventre, e à distância, não sei muito bem de que maneira.
Nunca mais voltamos a nos encontrar.
Eu era uma palavra que tentava avançar à velocidade do pensamento.
As companheiras do pensamento assistiam.
Nenhuma quis fazer a menor aposta em mim, e elas eram mais
de seiscentas mil, que me observavam, rindo.


Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.
Le temps plus propice pour naître
n´était pas
n´est pas aujourd´hui


La Tour de la Mort s´élève
se voit déjà de partout
n´aura pas sa pareille

En un cercle, un cercle immensément large
des cycles s´achèvent
Des victimes sans tarder, seront là, présents.
Simultanéité toujours si remarquable
des sacrifiés et des armés.


*

O tempo mais propício para nascer
não era
não é hoje

A Torre da Morte se ergue
já se vê de todos os lugares
não haverá semelhante

Em um círculo, um círculo imensamente amplo
os ciclos acabam
As vítimas estarão lá, sem tardar, presentes.
Simultaneidade sempre tão notável
dos sacrificados e dos armados.


Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Violentíssimo degrau alto que espera pelo pezinho pequeno. Quando crescerá o homem?

Pavana Impura:

1. Tu cabello en sus manos; arde en las manos del vigilante
de la nieve.

Son las cebadas, la siesta de las serpientes y tu cabello en el
pasado.

Abre tus ojos para que yo vea las cebadas blancas: tu cabeza
en las manos del vigilante de la nieve.

* * *

2. Todos los árboles se han puesto a gemir dentro de mi espíritu
al recordar tus bragas en la oscuridad, la luz debajo de tu piel,
tus pétalos vivientes.

Atravesando los aniversarios, a veces viajan las palomas ebrias.

Venga desnuda tu misericordia, ah paloma mortal, hija del
campo.

* * *

3. El mirlo en la incandescencia de tus labios se extingue.

Yo siento en ti grandes heridas y te desnudas en mis fuentes.

Se extingue el mirlo en las alcobas blancas donde soy ciego,
donde, algunas veces, suenan en ti grandes campanas.

* * *

4. Busco tu piel inconfesable, tu piel ungida por la tristeza de las
serpientes; distingo tus asuntos invisibles, el rastro frío del
corazón.

Hubiera visto tu cinta ensangrentada, tu llanto entre cristales
y no tu llaga amarilla,

pero mi sueño vive debajo de tus párpados.

* * *

5. La inexistencia es hueca como las máscaras y su visión es
lívida, pero tú oyes el grito de las madres del agua y acaricias
los ojos que vieron la inexistencia.

* * *

6. Nuestros cuerpos se comprenden cada vez más tristemente,
pero yo amo esta púrpura desolada.

Ah la flor negra de los dormitorios, ah las pastillas del amanecer.

* * *

7. Entra otra vez en las alcobas blancas.

Grandes son las jarras de la tristeza en las manos mortales.

Entra otra vez en las alcobas blancas.

* * *

8. Amor que duras en mis labios:

Hay una miel sin esperanza bajo las hélices y las sombras de las
grandes mujeres y en la agonía del verano baja como mercurio
hasta la llaga azul del corazón.

Amor que duras: llora entre mis piernas,

come la miel sin esperanza.

* * *

9. Ha venido tu lengua; está en mi boca

como una fruta en la melancolía.

Ten piedad en mi boca: liba, lame,

amor mío, la sombra.

* * *

10.Llegan los animales del silencio, pero debajo de tu piel arde la
amapola amarilla, la flor del mar ante los muros calcinados
por el viento y el llanto.

Es la impureza y la piedad, el alimento de los cuerpos
abandonados por la esperanza.

* * *

11. He envejecido dentro de tus ojos; eras la dulzura y el exterminio
y yo amé tu cuerpo en sus frutos nocturnos.

Tu inocencia es como un cuchillo delante de mi rostro,

pero tú pesas en mi corazón y, como una miel oscura, yo te
siento en mis labios al ir hacia la muerte.

* * *

12. Eres como la flor de los agonizantes

que es invisible mas su aroma entra

en la sombra nasal y es la delicia,

todo en la vida, durante algún tiempo.

* * *

13. En la humedad me amas

y eres azul en tus pezones. hablas

suavemente en mis labios y regresas

a tu prisión en la melancolía.

* * *

14. Tu cabello encanece entre mis manos y, como aguas silenciosas,
nos abandonan los recuerdos. siento la frialdad de la existencia
pero tu olor se extiende en las habitaciones y tu lascivia vive en
mi corazón y entra mi pensamiento en tus heridas.


* * *

15. Existe el mar en las ciudades blancas,

coágulos en el aire dulcemente sangriento,

sábanas en la serenidad.

Existen los perfumes inguinales, lenguas en las heridas femeninas

y el corazón está cansado.

Entra con tus campanas en mi casa, pastora ciega, sin embargo,

como si no tuviera la dulzura su fin aún en las ciudades blancas.



De "Libro del frío" 1992.
Antonio Gamoneda

Virtuoso, 2007


Mas quem da dor jamais o zelo agarrou, quão pouco
saberia ele agarrar ainda com firmeza
do tempo sereno a sua parte? Ele, a quem um deus
corta os bocados da refeição
que o alimenta consumindo. Que ele sofra, tenha...


[Veneza, princípios do Verão de 1912.]


Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Editorial Inova Limitada., pp. 148

Drama Estático Em Um Quadro

O Marinheiro



«Segunda - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar...A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas...Eu era pequena e bárbara...Hoje tenho medo de ter sido...O presente parece-me que durmo...Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém...O mar era grande de mais para fazer pensar nelas...Na vida aquece ser pequeno...Éreis feliz, minha irmã?»

(...)

Terceira - Tenho horror a de aqui a pouco já o dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais...Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura através do mistério de falar...E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...»


Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos 1º Volume. Edições Ática pp 42/43

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O poeta dramático

Munido desta chave [...] pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir.


Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética, Lisboa, s/d, p. 226/227

domingo, 25 de abril de 2010

sábado, 24 de abril de 2010

«Lembra-te de como recebeste e ouviste a palavra; guarda-a e arrepende-te.»


«Eu repreendo o castigo aos que amo; sê, pois, zeloso e arrepende-te.»


in Apocalipse (p. 1613; 1614)
«Nada temas das coisas que hás-de padecer.»


in Apocalipse (p. 1612)

Holy Virgin, 2003


En soledad. No se siente

En soledad. No se siente
el mundo, que un muro sella;
la lámpara abre su huella
sobre el diván indolente.
Acogida está la frente
al regazo del hastío.
¿Qué ausencia, qué desvarío
a la belleza hizo ajena?
Tu juventud nula, en pena
el blanco papel vacío.


Luis Cernuda

A UN POETA MUERTO (F.G.L.)

Así como en la roca nunca vemos
La clara flor abrirse,
Entre un pueblo hosco y duro
No brilla hermosamente
El fresco y alto ornato de la vida.
Por esto te mataron, porque eras
Verdor en nuestra tierra árida
Y azul en nuestro oscuro aire.

Leve es la parte de la vida
Que como dioses rescatan los poetas.
El odio y destrucción perduran siempre
Sordamente en la entraña
Toda hiel sempiterna del español terrible,
Que acecha lo cimero
Con su piedra en la mano.

Triste sino nacer
Con algún don ilustre
Aquí, donde los hombres
En su miseria sólo saben
El insulto, la mofa, el recelo profundo
Ante aquel que ilumina las palabras opacas
Por el oculto fuego originario.

La sal de nuestro mundo eras,
Vivo estabas como un rayo de sol,
Y ya es tan sólo tu recuerdo
Quien yerra y pasa, acariciando
El muro de los cuerpos
Con el dejo de las adormideras
Que nuestros predecesores ingirieron
A orillas del olvido.

Si tu ángel acude a la memoria,
Sombras son estos hombres
Que aún palpitan tras las malezas de la tierra;
La muerte se diría
Más viva que la vida
Porque tú estás con ella,
Pasado el arco de tu vasto imperio,
Poblándola de pájaros y hojas
Con tu gracia y tu juventud incomparables.

Aquí la primavera luce ahora.
Mira los radiantes mancebos
Que vivo tanto amaste
Efímeros pasar junto al fulgor del mar.
Desnudos cuerpos bellos que se llevan
Tras de sí los deseos
Con su exquisita forma, y sólo encierran
Amargo zumo, que no alberga su espíritu
Un destello de amor ni de alto pensamiento.

Igual todo prosigue,
Como entonces, tan mágico,
Que parece imposible
La sombra en que has caído.
Mas un inmenso afán oculto advierte
Que su ignoto aguijón tan sólo puede
Aplacarse en nosotros con la muerte,
Como el afán del agua,
A quien no basta esculpirse en las olas,
Sino perderse anónima
En los limbos del mar.

Pero antes no sabías
La realidad más honda de este mundo:
El odio, el triste odio de los hombres,
Que en ti señalar quiso
Por el acero horrible su victoria,
Con tu angustia postrera
Bajo la luz tranquila de Granada,
Distante entre cipreses y laureles,
Y entre tus propias gentes
Y por las mismas manos
Que un día servilmente te halagaran.

Para el poeta la muerte es la victoria;
Un viento demoníaco le impulsa por la vida,
Y si una fuerza ciega
Sin comprensión de amor
Transforma por un crimen
A ti, cantor, en héroe,
Contempla en cambio, hermano,
Cómo entre la tristeza y el desdén
Un poder más magnánimo permite a tus amigos
En un rincón pudrirse libremente.

Tenga tu sombra paz,
Busque otros valles,
Un río donde del viento
Se lleve los sonidos entre juncos
Y lirios y el encanto
Tan viejo de las aguas elocuentes,
En donde el eco como la gloria humana ruede,
Como ella de remoto,
Ajeno como ella y tan estéril.

Halle tu gran afán enajenado
El puro amor de un dios adolescente
Entre el verdor de las rosas eternas;
Porque este ansia divina, perdida aquí en la tierra,
Tras de tanto dolor y dejamiento,
Con su propia grandeza nos advierte
De alguna mente creadora inmensa,
Que concibe al poeta cual lengua de su gloria
Y luego le consuela a través de la muerte.


Luis Cernuda

Dans l'abri-caverne

Je me jette vers toi et il me semble aussi que tu te jettes vers moi
Une force part de nous qui est un feu solide qui nous soude
Et puis il y a aussi une contradiction qui fait que nous ne pouvons nous apercevoir
En face de moi la paroi de craie s'effrite
Il y a des cassures
De longues traces d'outils traces lisses et qui semblent être faites dans de la stéarine
Des coins de cassures sont arrachés par le passage des types de ma pièce
Moi j'ai ce soir une âme qui s'est creusée qui est vide
On dirait qu'on y tombe sans cesse et sans trouver de fond
Et qu'il n'y a rien pour se raccrocher
Ce qui y tombe et qui y vit c'est une sorte d'êtres laids qui me font mal et qui viennent de je ne sais où
Oui je crois qu'ils viennent de la vie d'une sorte de vie qui est dans l'avenir dans l'avenir brut qu'on n'a pu encore cultiver ou élever ou humaniser
Dans ce grand vide de mon âme il manque un soleil il manque ce qui éclaire
C'est aujourd'hui c'est ce soir et non toujours
Heureusement que ce n'est que ce soir
Les autres jours je me rattache à toi
Les autres jours je me console de la solitude et de toutes les horreurs
En imaginant ta beauté
Pour l'élever au-dessus de l'univers extasié
Puis je pense que je l'imagine en vain
Je ne la connais par aucun sens
Ni même par les mots
Et mon goût de la beauté est-il donc aussi vain
Existes-tu mon amour
Ou n'es-tu qu'une entité que j'ai créée sans le vouloir
Pour peupler la solitude
Es-tu une de ces déesses comme celles que les Grecs avaient douées pour moins s'ennuyer
Je t'adore ô ma déesse exquise même si tu n'es que dans mon imagination


Guillaume Apollinaire (1880 - 1918)

Arbre

À Frédéric Boutet.


Tu chantes avec les autres tandis que les phonographes galopent
Où sont les aveugles où s'en sont-ils allés
La seule feuille que j'aie cueillie s'est changée en plusieurs mirages
Ne m'abandonnez pas parmi cette foule de femmes au marché
Ispahan s'est fait un ciel de carreaux émaillés de bleu
Et je remonte avec vous une route aux environs de Lyon

Je n'ai pas oublié le son de la clochette d'un marchand de coco d'autrefois
J'entends déjà le son aigre de cette voix à venir
Du camarade qui se promènera avec toi en Europe
Tout en restant en Amérique

Un enfant
Un veau dépouillé pendu à l'étal
Un enfant
Et cette banlieue de sable autour d'une pauvre ville au fond de l'est
Un douanier se tenait là comme un ange
À la porte d'un misérable paradis
Et ce voyageur épileptique écumait dans la salle d'attente des premières

Engoulevent Blaireau
Et la Taupe-Ariane
Nous avions loué deux coupés dans le transsibérien
Tour à tour nous dormions le voyageur en bijouterie et moi
Mais celui qui veillait ne cachait point un revolver armé

Tu t'es promené à Leipzig avec une femme mince déguisée en homme
Intelligence car voilà ce que c'est qu'une femme intelligente
Et il ne faudrait pas oublier les légendes
Dame-Abonde dans un tramway la nuit au fond d'un quartier désert
Je voyais une chasse tandis que je montais
Et l'ascenseur s'arrêtait à chaque étage

Entre les pierres
Entre les vêtements multicolores de la vitrine
Entre les charbons ardents du marchand de marrons
Entre deux vaisseaux norvégiens amarrés à Rouen
Il y a ton image

Elle pousse entre les bouleaux de la Finlande

Ce beau nègre en acier

La plus grande tristesse
C'est quand tu reçus une carte postale de La Corogne
Le vent vient du couchant
Le métal des caroubiers
Tout est plus triste qu'autrefois
Tous les dieux terrestres vieillissent
L'univers se plaint par ta voix
Et des êtres nouveaux surgissent
Trois par trois


Guillaume Apollinaire (1880 - 1918)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Três Sonetos

I

[A Raul de Campos]


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concedo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.


Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913


Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002 ., p.18

Sensation

Par les soirs bleus d´été, j'irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l'amour infini me montera dans l'âme,
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - heureux comme avec une femme.


Mars 1870



Arthur Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche., p.108
Rimbaud écrit le 24 août à son professeur et confident Georges Izambard qu'il vit dans le «rien».


Pierre Brunel na Introdução ao livro:


Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche., p.8

Carnaval

d


Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,

Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa

Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.

Tenho máscara carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou


Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002., pp.33/4
Depois a trágica retirada para o jazigo ou cova,
E depois o princípio de morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando que faz anos que
morreste;

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.



Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002

olhar fotográfico (sobre trabalho a carvão de Robert Longo)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Maria Lionça

«O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via sacra começou na loja do correio.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
Miguel Torga in Contos da Montanha. 7ª. Edição. Gráfica de Coimbra. pp 21-23.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Era uma vez dois irmãos que partiram para conquistar um lugar no mundo.
No meio do caminho deram com uma grande casa e no letreiro estava escrito que era uma casa de educação e deviam ficar lá sete anos, com a garantia de ficarem educados como deve ser.
«Quero ver o mundo» diz um dos irmãos e seguiu viagem.
«E eu vou para a casa de educação» diz o outro.
«Aqui deve primeiro aprender a estar nas pernas como deve ser. Primeira Posição!» e ele ficou na primeira posição.
«A Palavra é de Prata e o Silêncio é de Ouro» disseram, e ele calou-se para sempre.
«Não deve pensar em si próprio da maneira que se veja. Os olhos só devem olhar para a frente!» e então os olhos passaram só a olhar para a frente.
«Não ponha as pernas assim quando anda» - «É melhor atá-las com uma corda» diz ele e imediatamente foram atadas com cordas.
«Nem os braços devem mover-se assim!» disseram «umas cordas neles também!»
Puxaram então as cordas e ele moveu-se como foi ensinado.
Agora estava educado.


A Educação é aprender a ficar como uma marioneta - parte de uma peça teatral de Hans Christian Andersen.
Hans Christian Andersen(1805-1875) by Franz Hanfstaengl - 1860

«Deixa-me ser quem sou», implorou Hans Christian Andersen repetidamente em criança, jovem e adulto.

Tudo Dança

Toca alegremente o Violino.
Tudo Dança! Dou a minha Palavra!
Olha, a Terra gira à volta do Sol,
E a Lua à volta da Terra;
Dançamos todos, uns com os outros,
Até o coração anseia avançar.
E, se o Vinho sobe à cabeça,
Temos a Sala, também, a dançar.

Hans Christian Andersen, 1832

Annemarie Schwarzenbach












Les poètes

Au siècle qui s'en vient hommes et femmes fortes
Nous lutterons sans maîtres au loin des cités mortes
Sur nous tous les jours le guillotiné d'en haut
Laissera le sang pleuvoir sur nos fronts plus beaux.

Les poètes vont chantant Noël sur les chemins
Célébrant la justice et l'attendant demain
Les fleurs d'antan se sont fanées et l'on n'y pense plus
Et la fleur d'aujourd'hui demain aura vécu.

Mais sur nos cœurs des fleurs séchées fleurs de jadis
Sont toujours là immarcescibles à nos cœurs tristes
Je marcherai paisible vers les pays fameux
Où des gens s'en allaient aux horizons fumeux

Et je verrai les plaines où les canons tonnèrent
Je bercerai mes rêves sur les vastes mers
Et la vie hermétique sera mon désespoir
Et tendre je dirai me penchant vers Elle un soir

Dans le jardin les fleurs attendent que tu les cueilles
Et est-ce pas ? ta bouche attend que je la veuille ?
Ah ! mes lèvres ! sur combien de bouches mes lèvres ont posé
Ne m'en souviendrai plus puisque j'aurai les siennes

Les siennes Vanité ! Les miennes et les siennes
Ah ! sur combien de bouches les lèvres ont posé
Jamais jamais heureux toujours toujours partir
Nos pauvres yeux bornés par les grandes montagnes

Par les chemins pierreux nos pauvres pieds blessés
Là-bas trop [près] du but notre bâton brisé
Et la gourde tarie et la nuit dans les bois
Les effrois et les lèvres l'insomnie et les voix

La voix d'Hérodiade en rut et amoureuse
Mordant les pâles lèvres du Baptiste décollé
Et la voix des hiboux nichés au fond des yeuses
Et l'écho qui rit la voix la voix des en allés

Et la voix de folie et de sang le rire triste
De Macbeth quand il voit au loin la forêt marcher
Et ne songe pas à s'apercevoir des reflets d'or
Soleil des grandes lances des dendrophores


Guillaume Apollinaire

Tristesse d'une étoile

Une belle Minerve est l'enfant de ma tête
Une étoile de sang me couronne à jamais
La raison est au fond et le ciel est au faîte
Du chef où dès longtemps Déesse tu t'armais

C'est pourquoi de mes maux ce n'était pas le pire
Ce trou presque mortel et qui s'est étoilé
Mais le secret malheur qui nourrit mon délire
Est bien plus grand qu'aucune âme ait jamais celé

Et je porte avec moi cette ardente souffrance
Comme le ver luisant tient son corps enflammé
Comme au cœur du soldat il palpite la France
Et comme au cœur du lys le pollen parfumé


Guillaume Apollinaire
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