«O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via sacra começou na loja do correio.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
Miguel Torga in Contos da Montanha. 7ª. Edição. Gráfica de Coimbra. pp 21-23.
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