domingo, 19 de janeiro de 2014

A mulher de branco, Lisboa, 1956


«Quando não havia pesca, nem biscates, nem uma galinha ingénua, quando, enfim, a vida começava a significar uma azeda melancolia, o Barbaças abria então o peito aos grandes sacrifícios, aceitando uma empreitada qualquer, ceifa ou colheita de azeitona, cortes de lenha, etc. - a que ele se entregava com uma gana de quem tinha pressa em voltar ao repouso.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 13

vomecê

os meus remorsos de Deus infernam-me,
                                                          [atormentam-me.
A mim nada me espanta ser escuma,
a salsugem da noite na madrugada infinita,
o que me escancara o espanto, o que me assusta
é saber o não saber, é adivinhar com a vista,

(...)»



Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 57


"Deer Stop"

And I long to go
Love started here
Shoot your star
Be a light
Is that

Don't you call
Deer stop bottle in a shell
Shoot a thousand stars over me
Love to come home
You've arrested a knight

Say my name
Whisper it, don't ever turn
I'm deliciously wired
I'm falling in a cloud

Deer stop bottle in a shell
Shoot a thousand stars over
Say my name
Whisper it
as bibliotecas ardem, as gerações
enchem o corpo-santo do mundo,
e nesta fila sei que agora sou eu,
e somos todos tão iguais, todos tão medonhos,
a habitar os sonhos uns dos outros
no pesadelo de nos metermos medo.
A voz das coisas habita-me de nada,
a minha nau chamou-se esquecimento,
quantas mãos seguraram este crânio vivo,
escuto-me na noite a noite sem manhã,
a voz das coisas faz o silêncio do mundo,
o vento atravessa as pedras com frio,
a sucessão dos dias é isenta de mim mesmo,
mas ataca-me de frio como o vento às pedras.


3.00, 22/7/87, Funchal.


Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 53

A ideia do silêncio onde me guardo.


«(...)

perder o amor ao desviar a cara,
perder tudo, enfim, que já perdido
nasci, mas indagando sempre
cara, pedra, rumor, bátega, folha,
nas peças do processo em que me julgo
por não acreditar no que mais amo.


28/06/1987, Stonehenge, Londres.




Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 29

andar de charola

andar aos ombros de alguém

A TRANÇA TORTA

Para todas as mulheres Ogdala da Nação Lakota


1
    Ele queria sair.
    Ele disse-me «Tu ficas em casa»
    Eu disse «Eu queria sair»
    Ele disse´«Tu tens de tomar conta do bebé»
    Eu disse «O bebé é dos dois»
    Eu deitei o bebé
    Provavelmente sentiu a minha inquietação
    Porque choramingava
    Ergui o olhar
    E ele deu-me uma bofetada,
    o meu marido
    Não um murro que põe um olho negro.
    Isso foi mais tarde.
    Foi uma bofetada,
    Uma bofetada forte.
    Ele olhou para mim.
    Sorria.
    Era inacreditável.
    Ele estava a sorrir.
    Deu-me outra bofetada.
    O pai dele maltratava a mãe.
    Vi-o sorrir.
    O que se estava a passar?
    Ele era muito simpático.
    Tinha cabelo preto comprido.
     Dantes
    quando fazíamos amor
    ele soltava o cabelo.


2

Fomos jantar fora,
Queria que eu saísse com o seu patrão.
Eu não queria.
Deu-me um pontapé debaixo da mesa,
Disse-me que fingisse estar feliz
Disse-me que sorrisse.
Eu sorri.
Ele deu-me outro pontapé,
Perguntou-me quem é que eu queria foder,
disse-me que parasse
de me atirar a toda a gente.
Parei de sorrir.
Ele deu-me outro pontapé.
Continuou a agredir-me.
Lá fora
puxou-me os cabelos
e arrastou-me até eu estar caída na estrada.
Tinha nevado.
Ele enterrou-me na neve.
Deu-me socos na sarjeta.
A neve derretia.
Eu estava suja.
Tinha a sensação de que o meu cabelo
sangrava.


3
Ele bebia.
Eu também.
Devo ter desmaiado.
Acordei no hospital
Depois de cinco operações ao cérebro.
Não tinha cabelo.
Raparam-no.
Tive que aprender outra vez a falar
e a mexer os braços.
Demorei quatro meses
a lembrar-me como se prepara
o pequeno-almoço.
Lembro-me de pôr
o ovo na frigideira
com o bacon.
Eu sabia que era um ovo
só não me lembrei
de o partir.
Apenas o ovo com casca
na frigideira.
Não tinha cabelo.


4

Ele batia-me
há dezoito anos.
De manhã
ele era outra vez muito amável
eu penteava-lhe o cabelo comprido
e fazia-lhe uma trança.
Entrançava os cabelos devagar
como se gostasse muito dele
Fazia uma trança torta.
Os cabelos ficavam espetados
como os penteados dos doidos.
Depois ele esquecia-se de que
as nódoas negras no meu
rosto eram as marcas das suas mãos.
Ele pavoneava-se pela rua
todo machão na estrada
mas a sua trança estava muito torta
e dava-lhe um ar muito estúpido.
Eu devia ter ficado feliz.
Muito feliz.

5

Soube que ele estava
com outra mulher
e que faziam amor e que ela lhe despenteava
o cabelo quando ele estava louco
em cima dela.
Ele chegou a casa
muito mais tarde
e tinha a trança bem feita
e apertada.
Ele desmaiou
por causa da bebida
Depois eu levantei-me
com a tesoura na mão
enquanto ele ressonava
e aproximei-me lentamente dele
e cortei a trança
bem rente
e poisei-a na mão dele
e quando acordou ele gritou
«Que raio! Vou matar-te!»
e pôs-se de pé
num salto
mas eu atara-lhe
os sapatos um ao outro
por isso ele não conseguia correr.
Só voltei
para ele três anos depois
quando soube que tinha o cabelo comprido.


6

Eu não queria ir para a cama com ele.
Ele estava bêbado.
Para ele
eu não passava de um pedaço de carne,
de um buraco.
Fingi
que estava a dormir.
Ele deu-me uma cotovelada, sacudiu-me
puxou-me.
Lembro-me de ter pensado despacha-te.
Ele estava mole e continuava continuava
até eu estar dorida.
Eu disse: «Não foi bom.»
Ele disse: «Com quem estiveste?»
Ele era maior do que eu? Gostaste?»
É como a história do rato e do leão.
Tinha de fugir depressa.
Ele pegou em mim
como se eu fosse um trapo.
Tinha um olhar vazio.
Eu ouvia o meu filho gritar
a pleno pulmões...e
as amígdalas,
eu conseguia ver as suas amígdalas.
O meu marido espancou-me
enrolou o meu cabelo preto comprido à volta
    da sua mão,
sacudiu-me a cabeça.
Tentei pegar no meu filho
«Ele não é teu filho», disse ele,
prendendo o meu cabelo na sua mão.
«Já não é teu filho.»

Agora ele chama por mim a meio
da noite
e chora.
Arrepende-se de ter batido na mulher.
Arrepende-se de a ter espancado.
Quer suicidar-se.
Sabe aquilo por que a mãe passou.
Mas ele não consegue parar - o meu filho.
Eles tiraram-nos a nossa terra.
Tiraram-nos o nosso modo de vida.
Tiraram-nos os nossos homens.
Nós queremo-los de volta.

(Este monólogo baseia-se em entrevistas a mulheres índias da Reserva a Pine Ridge.)


Eve Ensler. Os Monólogos da Vagina. Publicações Europa-América, 2008., p. 133-138

sábado, 18 de janeiro de 2014

 

Viagem

QUEM sabe, quem sabe,
               ah, quem sabe
se fui eu que fugi
ou se me abandonaram
à beira de qualquer estrada.
Que terras meus olhos desbravaram,
que mundos vi,
para ser esta saudade de tudo,
uma dor de tudo,
de tudo morrer e renascer em mim!
em que porto estes músculos
suaram à sombra de guindastes,
que terra áspera e quente a minha enxada rasgou,
de que barco fui piloto
e de que pátria emigrante
para sentir as dores que estão fora de mim?
Quem me deu a alma de cigano
e me lançou ao vento
à espera do festim?

Homens de terra e do mar,
duro, de dentes vidrados,
gritando o futuro
e sempre crescendo;
-quem me pôs à frente da guerra,
ébrio de uma luta
que não aprendo?
Homens de longe, estranhos,
esmagando as larvas do celeiro;
- onde vos animei
embora com a pobreza das palavras?
Em que pátria fui vosso companheiro?

Ah, quem sabe
porque esta minha voz enrouqueceu,
esta minha voz que provou o amargo das escarpas
- e gostou!
Quem sabe se um encanto me fez nómada,
nu, faminto e descalço como os mais
ou se todas as almas
esta minha alma penada violou?



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 96/7
«(...)

Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela erva menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
- e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 94

7

Que a tua boca amaldiçoe, companheiro,
as súplicas que o Céu negou.
Navalhas clandestinas furaram-me o dorso,
o desengano fez-me o monte de cacos
que nenhum santo recompôs!
Mas eu me erguerei dos meus pedaços,
nu e verdadeiro,
babado da espuma do meu ódio,
e gritarei a força do meu dia
e o vosso arrepia de medo!



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.85

Caiam estrelas nos meus olhos

4

Operário que a manhã despertou no sono necessário,
mão que ficaste nua ao bater na porta fechada,
caminheiro de que a estrada deserta aceitou o cansaço,
mulher de corpo usado e alma desflorada,
todos a quem negaram o pão,
todos a quem negaram amor,
eu vos recebo, embora proscrito como vós!


Nem as carícias de Olívia se fizeram para os nossos
                                                                             [corpos
nem os deuses nos reconheceram como sua obra,
nada, nada a vida nos concedeu.
Mas conquistaremos a fé dos espezinhados,
o clamor das faces cuspidas,
e esta força será maior que as carícias e os deuses,
ó companheiros que desconheceis as preces!
Seremos aquela planta selvagem que se ergueu renovada
depois de o arado a mutilar.

Heróica arrogância da alma desprezada!




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.82
«(...)
mas sempre chega a hora de um amanhecer que nos
                                                                                    [encontra
afagando o perdido.


E eu nasci para morder as saudades
de quem nada tem a recordar.




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.79

neurastenia


nome feminino

1. MEDICINA estado caracterizado pela debilidade física e psíquica, acompanhada de perturbações psíquicas (tristeza, insónia, angústia, indecisão) e funcionais (digestivas, cardiovasculares, sexuais), e dores em diversos locais do corpo
2. coloquial mau humor acompanhado de irritabilidade
3. coloquial estado de depressão acompanhado de tristeza

(Do grego neũron, «nervo» +asthéneia, «fraqueza»)
«Levei sessenta anos a construir este velho que agora agoniza cheio de ódio. Sou o que sou e não outro. Oh, Deus, Deus se de facto existisses!»
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 113

"Nymphomaniac"

«Porque não me falas? Porque nunca me falas? Talvez uma palavra tua me abrisse o coração! Esta noite, até me parece não ser tarde demais para recomeçarmos a nossa vida. Se eu não esperasse pela minha morte para te entregar estas páginas? Se te suplicasse, em nome do teu Deus, que as lesses até ao fim? Se te pudesse observar depois de terminares a leitura? Se te visse entrar no meu quarto, banhada em lágrimas? Se abrisses os braços para me pedir perdão? Se caíssemos de joelhos, um e outro?»
 
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 79

Oh!, não imagines que me tenho em grande conta.

«Oh!, não imagines que me tenho em grande conta. Conheço o meu coração, este pobre coração: um nó de víboras. Sufocado por elas, saturado do seu veneno, continua a bater debaixo de tanta agitação. Este nó de víboras, impossível de desatar, que seria necessário cortar com uma faca ou com uma espada: não vim trazer a paz, mas a espada
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 78

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

«A minha vagina era a minha aldeia», monólogo de uma mulher bósnia violada

a mastigada dor de não poder
com os dedos tocar o Sol e a Lua,
a mágoa vil de me apodrecer
rumor e cócega dos vermes que me tomam
até ficar apenas dos meus ossos
a mais ímpia e crua gargalhada,
quanto mais só me fico e demoro
os ombrais do destino aproximando,
choro, Senhor, de rastos choro,
miserando, Senhor, tão miserando,
que no côncavo do ventre do meu nada
o meu eco tornasse, em Vós tocando.



24/6/87, Herdade do Sobrado.


Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 21

''folha ligeira que na água treme,"

LUPANAR

BASTAM-ME esses braços descarnados,
         essas úlceras de carmim!
Quero o cheiro do teu corpo barato,
o enjoo dos teus seios,
a náusea de quem nos vê.

Ah, esquecer o mundo lá de fora
e ter versos violentos!
Esquecer mulheres honestas, amigos, livros,
o falso dos risos,
a mentira dos prantos.
Acordar os meus sentidos perdidos
em vícios procurados pelos cantos!

E tu, por exemplo,
serás a minha amante.
Atira-me beijos da janela
quando eu passar na rua
e ao sábado espera-me
para dormir contigo.
Aos outros dias, não, que eu tenho a minha vida...

(...)»




Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.41
 

«Errei, errei sem descanso...»

'melancolia espessa'

«(...)

Noite...
(apetece-me repetir o teu nome)
alagaram a cidade com mistério
- que brutos! que brutos os deuses!,
sinto mãos viscosas, aranhiços
a bajularem-me os braços,
andam fantasmas à solta, pelas ruas,
ossos de uma brisa
de voz cava.

É noite.
Quem saberá distinguir
o teu e o meu grito,
a febre e o arrepio,
as carícias e os punhais?

Noite.
Nesta rua onde me deslasso,
filósofo estremunhado,
há uma luz baça
que, ébria, tropeça
na calçada.

(...)»



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.28

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

...Quero-me só, a sofrer e arrastar
a minha cruz.


Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.26

PAISAGEM

Naquela nesga de paisagem andam vagabundos sem
                                                                                    [destino
aos encontrões à Lua.
Há segredos que rugem de calmaria.
Rochas que se deslocam e vão dormir lá ao fundo
no regaço soluçante dos juncos.


Chorar para quê?
...Acordaria o silêncio da trovoada.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.24

A OUTRA CANÇÃO PERDIDA


Das mulheres
     que na minha vida passaram
ficou-me aquela lembrança
de um fio de areia
sobre o regato sedento,
de qualquer frase
que se ficou no tinteiro,
de um cigarro caro
que não se fumou além do meio,
de um grito rouco
gorado nos ouvidos,
de folhas de um diário inacabado
que o tempo desbotou
de vinho
que não deixou nódoa no soalho

Sinto a alma ávida
como sempre
e um cansaço inútil
de bater a tantas portas.

Apenas, do logro,
me resta o travo
dos desejos amargos,
...e ainda às vezes
aquela esperança enganosa
de que passe
quem nunca no meu caminho passou.



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5

cabotino


nome masculino

 1. cómico ambulante
2. actor pouco competente na sua profissão
3. figurado indivíduo que alardeia qualidades que não tem

MAR MANSO

Quando o mar amansa,
    brando, mansamente,
um bocejo adormece a natureza.
Tudo dorme, o desespero e a esperança
e o mar,
manso,
tecendo palavras mansas,
é um realejo pérfido
burlando a vida.

Se o menino abre os olhos,
estremunhado,
ou a noiva desperta de um sonho escuro,
o mar
passa os seus dedos brandos por novelos de algas
e as suas histórias mansas
burlam a vida.

Tudo dorme, vento, noivas, crianças.
E o mar
é um monstro manso sem entranhas
escondendo os rugidos
em solidões de areia.






Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5
«(...)


(Não há moças nem risos às janelas.)

Cães uivam dentro da noite
despertando faces opadas
para lá dos vidros foscos.
Roupa já no fio baloiça
nos enxugadoiros das janelas
olhando os gatos e as peixeiras que passam na calçada
- figurantes de sempre para completar a nota...



Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.12

Mar de Sargaços

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014



«Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.

O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.

Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.

Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.

Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.

Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.

Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.

Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.

Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.

Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.»
 
António Lobo Antunes

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Moscow. 1962.


«Porque o cheiro mais forte da minha infância é o fedor pútrido dos grãos de milho a germinar.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 65
«Nas brincadeiras com o Tur, ela tinha de ser sempre o cavalo e o Tur é que conduzia a carruagem. E ela caiu e partiu o pé, mas só mais tarde é que se veio a descobrir. O Tur espicaçou-a com o chicote e afirmou que ela estava a fazer fitas, porque já não queria ser o cavalo. Era numa rua íngreme, disse ela, quando se brincava com o Tur, ele comportava-se sempre como um sádico. E eu conto-lhe do jogo da centopeia. As crianças são divididas em duas centopeias. Uma tem de puxar a outra para o seu campo, por cima de uma linha de giz, porque a quer comer. Em cada uma das centopeias, as crianças têm de se agarrar pela barriga e puxar com toda a força. A gente fica toda partida, eu até tive pisadelas nas ancas e um ombro deslocado.»




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

domingo, 12 de janeiro de 2014

Ernst Bloch. Lady with Mushrooms, 1912


«Diz-se que são olhos de mar, tão profundos que o seu fundo tem comunicação com o Mar Negro.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64

cismarento

«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.

(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.

(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
«Para lá das quintas dos subúrbios, começava uma pequena cidade de casas amarelo-ocre, de estuque esfarelado e telhados de chapa ferrugenta.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 60

''chaveninhas rosa-pálido''


''ginástica para mutilados''

''voltou a arrumar os alfinetes na caixa de costura.''

«O algodão encharcava-se de chuva e de neve e ficava ensopado durante semanas.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 51

Madeira e Algodão

     « Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
     Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
     Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »




Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49

«Havia muitos dias em que tinha de rir para dentro de mim. Havia muitos outros em que o hotel desabava redondo por dentro, quer dizer, por dentro de mim, e vinham-me as lágrimas aos olhos. Queria voltar a erguer-me, mas já não me reconhecia.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 48
«Porque estávamos cegos de fome e doentes de saudades de casa, apeados do tempo e de nós próprios e desavindos com o mundo. Ou seja, o mundo connosco.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 46/7
«O barbeiro estava a aparar-lhe os pêlos do nariz com uma tesoura enferrujada. Terminada que foi também a segunda narina, escovou-lhe os pelinhos que ficaram no queixo, como formigas, e voltou-se um pouco de costas para o espelho, para o Prikulitsch não o ver piscar o olho. Estás satisfeito, perguntou ele. Disse o Tur: Com o meu nariz, sim.»
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 45

''o sal dos olhos e o adocicado do céu-da-boca''


pé-de-meia

''tília prateada''

«Para mim, nesse dia, o importante foi ter tocado no único assunto que te punha fora de ti, te obrigava a sair da tua indiferença e a dares-me atenção, embora só para me odiares. »
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 50

...Sim, nesse ano conheci o amor.

«...Sim, nesse ano conheci o amor. Foi a minha insaciabilidade que deitou tudo a perder. Não me bastou tê-la na penúria, quase na miséria. Queria que estivesse sempre à minha disposição, sem ver ninguém. Tinha de estar presa, ou livre, conforme os meus caprichos ou os momentos de disponibilidade. Era minha. O meu gosto de possuir, usar e abusar estende-se aos seres humanos. Gostaria de ter tido escravos. Desta vez, pensei ter encontrado uma vítima à medida das minhas exigências. Vigiava-lhe até os olhares...Mas...lá estou a esquecer a promessa de não falar nisto. Ela partiu para Paris, não aguentou.»
 
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48
 

Eu esperei



Eu esperei
Mas o dia não se fez melhor
E o sujo não se quis limpar,
Inventou mais flores em meu redor
Como se eu não fosse olhar!
Enfeitou as ruas para cobrir
Terra seca de não semear
Deram-me água turva a beber
Dizem cura e força e solução
Como se eu não fosse olhar!

Eu esperei
Mas o fumo não saiu da estrada
Arde o sonho em troca de nada
Dizem festa, mas é solidão
Como se eu não fosse olhar!
A mentira não se fez verdade
E a justiça não se fez mulher
A revolta não se fez vontade
Braços novos sem educação
Sangue velho chora de saudade!

Eu esperei
Dizem luta mas não há destino
Dão-me luzes mas não é caminho
Dizem corre mas não é batalha
Como quem não quer mudar!
Esta corda não nos sai das mãos
Esta lama não nos sai do chão
Esta venda não deixa alcançar.
Cantam "armas" mas não é amor
Mão no peito mas não é amar
Fato justo mas sem lealdade
Cavaleiro mas já sem moral
Braços sujos que se vão esconder
Braços fracos não são de lutar
Braços baixos não se querem ver
Como se eu não fosse olhar!

Eu esperei
Pelo tempo transparente em nós
Pelo fruto puro de escolher
Pela força feita de alegria
Mas o povo dorme na ilusão!
E a tristeza é forma de sinal
Liberdade pode ser prisão...
Meu deus, livra-nos do mal
E acorda portugal...
«Tornei-me perito na arte de destruir os sentimentos na altura exacta em que a vontade desempenha papel decisivo no amor; no momento em que, à beira da paixão, ainda estamos livres e conscientes para retrocedermos ou nos abandonarmos.»
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48

«...Mas eu perdi a fé nas pessoas, ou, antes, na possibilidade de agradar a alguém.»

 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 47

sábado, 11 de janeiro de 2014

O parasita


“Perhaps I really regard myself as an intelligent man only because throughout my entire life I've never been able to start or finish anything.”


Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground

domingo, 5 de janeiro de 2014

Colapso do Desejo

«sente-se a solidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;»



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 173
«(...)

                        , nenhum anjo sofreu
as leis reais do nosso peso; nem pode,
por isso, conhecer-nos.»




Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 160

Les Chants de Maldoror (Lautréamont)


III

Para haver rio
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo: antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência.




Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 157

Sobre o lado esquerdo

    «De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
       No segundo caso, o homem que não dorme pensa: « o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 101

Fruto

 
    «Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.»




Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 99


   «Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.»



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 72

' a loucura escurece '

  «Eis o que torna o teu amor mais forte:
    amar quem está tão próximo da morte.»



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 66
Sonetos de Shakespeare
reescritos em português


II

Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Estes dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas;
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
     Mas dia a dia alonga-se a jornada
     e cada noite a noite é mais fechada.


III


Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer de um ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
       Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
        e no temor do inverno desmaiava.



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 64/65
«essa dor sem alívio
que seca as lágrimas antes de as criar.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 45

insepulto

''amarga loucura''

«Andam os mortos enfeitando-se ao frio,
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 40

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Quatro Poemas de Samuel Beckett


1. Dieppe
torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz

 
2.
o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo

a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha


3.
que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha

que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil
 
4.
Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor


Four Poems by Samuel Beckett
1. Dieppe
again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town


2.
my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end

my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts


3.
what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust

what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness


4.
I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me

 
 
Four Poems by Samuel Beckett, translated from the French by the author Hugo Pinto Santos
 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

 

Já escuro e denso o rio da memória
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 36
«E quanto mais estendo as mãos urgentes,
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.»



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 35
«Quando as pedras estalam a gritar
e os cardos sonham as margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.»



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 34

Mais do que penso, sonho; donde vim?

Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 33

«E de repente dou comigo absorto,
as mãos entre papéis de antigos versos,
soprando um lume que supunha morto
e aquece ainda os dias já submersos.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 32

Janine

 
«Janine será, até morrer, o tipo da mulher que sabe tudo, repete o que ouve só para parecer distinta, dá opiniões sobre todos os assuntos, sem compreender nenhum.»
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 39

«Quando sentem os filhos preocupados, as mães obstinam-se em os fazer comer à força, como se isso os ajudasse. Ele descompunha-te, como eu, em tempos, descompunha minha mãe.»
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 39
«Então, começaram os anos de gestações, de acidentes, de partos, que me forneciam mais pretextos que os necessários para me afastar de ti. Afundei-me numa vida de desordens secretas. Muito secretas, porque começava a ser conhecido como advogado. «O negócio corria bem», como dizia minha mãe, e a mim interessava-me salvar as aparências. Adquiri os meus hábitos; tinha as minhas horas. O devasso, numa cidade da província, acaba por adquirir a astúcia e o instinto dos animais de caça. Descansa, Isa, evitarei tudo quanto te faça sofrer. Não tenhas receio que te descreva o inferno onde quase todos os dias eu descia. Foste tu que para lá me atiraste; tu, que dele me tinhas salvo.»
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37

Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.

      «A meio da noite, o meu sofrimento despertava-me. Estava preso a ti, como a raposa na armadilha. (...) Eu não era um monstro. A primeira rapariga que me conhecesse e me tivesse amado teria feito de mim tudo quanto quisesse.» Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.»
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37
 
«Tu estavas à janela, de cabeça inclinada. Com uma das mãos seguravas o cabelo; com a outra, escovava-lo. Não me viste. Olhei-te um instante, possuído de um ódio cujo sabor amargo ainda hoje sinto na boca, passados tantos anos.»
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36

Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.

«O meu coração (choca-te, eu falar no meu coração?), pois o meu coração esteve prestes a estalar. Só me vieram aos lábios palavras hesitantes...Por onde começar? Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.»
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36

«Contemplei a minha imagem como se fosse outro, ou, antes, como se tivesse voltado a ser eu próprio: o homem que ninguém amou, por quem ninguém no mundo sofreu.»
 
 
 
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 35

«O que eu pretendia ouvir da tua boca não o sabia já?»

François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 35

«Nem de longe pressentiste quão profunda era a minha dor, mas preocupou-te o meu silêncio.»

François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 34

Não amava, deixava-se amar.

    «Repetiste-me várias vezes que não estavas arrependida. Contendo a respiração, deixei-te falar. Garantiste-me que não terias sido feliz com esse Rodolfo. Era bonito de mais. Não amava, deixava-se amar. Qualquer outra mulher ter-to-ia roubado facilmente.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 33
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