segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

«Ergueu a toalha. Havia na carreta doze canos de aço azul e frio; na extremidade de cada um deles desabrochava uma bonita rosa branca e fresca, sombreada de bege no côncavo das pétalas aveludadas.
-Oh!... - murmurou Colin. - Como são belas!...
O homem não dizia nada. Tossiu duas vezes.
- Não vale a pena continuar amanhã o seu trabalho - disse hesitante.
Os dedos agarravam-se nervosamente à borda da carreta.
-Posso colhê-las? - perguntou Colin. - Para a Chloé.
-Se as separar do aço murcham - disse o homem. - São de aço, como sabe...
- Não é possível - disse Colin.
Agarrou com delicadeza numa rosa e tentou quebrar-lhe o pé. A um movimento desastrado uma das pétalas fez-lhe um golpe com vários centímetros de comprimento. A mão sangrava com pulsações lentas, grandes golfadas de sangue escuro que ele chupava com um ar absorto. Olhava para a pétala branca, marcada por um crescente vermelho, e o homem bateu-lhe no ombro empurrando-o suavemente em direcção à porta.»


Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 175/6
« - Ó meu rico senhor, tenha dó! Ando mirradinha de fome! Já nem me recorda que engolisse um escravelhinho...
     O bicho não respondeu; mas, sempre à espreita, viu-lhe a Salta-Pocinhas abrir as pálpebras, sacudir as orelhas, soprar, fungar, coriscar lume das pupilas verdes, dando em tudo sinal de incomodado. E renovou a cantilena:
-Ó meu rico senhor!
-Qual rico senhor, nem qual diabo! - regougou afinal D. Salamurdo. - Não tenho nada que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí apodrecerem, não eram para você que vem empestar-me a casa. Apre, quando tiver de pedir esmola a portas de certa teoria, lave-se primeiro, trate de desencardir-se da catinga, que fede à légua!» 



Aquilino Ribeiro. Romance da Raposa. Ilustrações de Benjamim Rabier.21ª edição. Bertrand Editora. Lisboa, 1961. p. 29/30

Salta-Pocinhas

«Cheirando aqui um provável rasto, furando além por uma brenha, por muito breve que fairasse, por mais subtil que andasse, giestas, urgueiras, pinheiros novos sacudiam-lhe o rocio para o focinho, brincadeira dispensável. Cuidadoso e lesto era o seu caçar, tão cuidadoso e lesto que não chegava a acordar o chão em que punha o pé, mas lá de descobrir láparo embezerrado no meio dum tojo, rã a coaxar no charco, besouro, que fosse, a tocar o rabecão, andava com tão pouca sorte que nem que a tivessem enguiçado olhos de feiticeira.»


Aquilino Ribeiro. Romance da Raposa. Ilustrações de Benjamim Rabier.21ª edição. Bertrand Editora. Lisboa, 1961. p. 18/9

domingo, 9 de janeiro de 2011

No Camino de Dios ficou o Chihuila

   «Corremos tudo o que podíamos. No Camino de Dios ficou o Chihuila, acaçapado atrás de um medronheiro, com a manta enrolada no pescoço, como se estivesse a defender-se do frio. Ficou a olhar-nos quando corríamos cada um para seu lado para dividirmos a morte. E ele parecia rir-se de nós, com os seus dentes descarnados, coloridos de sangue.
      Aquele desconcerto que nos aconteceu foi bom para muitos; mas a outros correu-lhes mal. Era raro que não víssemos pendurado pelos pés algum dos nossos em qualquer pau de algum caminho. Ali permaneciam até que se faziam velhos e se retorciam como couros para curtir. Os urubus comiam-nos por dentro, tirando-lhe as tripas, até deixar só a casca. E como os penduravam alto, ali estavam eles bamboleando-se ao sopro do ar durante muitos dias, às vezes meses, às vezes já só as tiras penduradas das calças meneando-se ao vento, como se alguém as tivesse posto a secar ali. E uma pessoa sentia que as coisas agora eram a sério, ao ver aquilo.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 220
«Sentíamos  aqueles seus olhos bem abertos, que não dormiam e que estavam acostumados a ver de noite e a conhecer-nos na escuridão.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 218

German soldier watches Ukrainian civilians drag a Jew down a street in Lvov. Poland, July 1941.

«Mas nós também lhes tínhamos medo. Era digno de se ver como se nos engasgavam os tomates na garganta só com ouvir o barulho das suas guarnições ou as ferraduras dos seus cavalos a golpearem as pedras de algum caminho, onde os esperávamos para lhes armar alguma emboscada. Ao vê-los passar, quase sentíamos que nos olhavam de esguelha como dizendo: «Já os farejamos, apenas nos estamos a fazer dissimulados.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 214
«Muito antes de chegarmos a San Buenaventura demo-nos conta de que os ranchos estavam a arder. Das tulhas da fazenda alçava-se mais alta a labareda, como se se estivesse a queimar um charco de aguarrás. As faíscas voavam e enroscavam-se na escuridão do céu, formando grandes nuvens alumiadas.
   Continuámos caminhando em frente, encandeados pela luminária de San Buenaventura, como se alguma coisa nos dissesse que o nosso trabalho era estar ali, para acabar com o que restasse.
   Mas ainda não tínhamos conseguido chegar quando encontrámos os primeiros a cavalo, que vinham a trote, com a soga amarrada na cabeça da sela e puxando uns homens com os pés atados que, de vez em quando, até caminhavam sobre as mão, e outros homens aos quais já tinham caído as mãos e que traziam a cabeça dependurada.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 212
«Tencionávamos deixar passar os anos para depois voltar ao mundo, quando já ninguém se lembrasse de nós.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 211

sábado, 8 de janeiro de 2011

«Olhavam para as paredes. Em compridas prateleiras de cobre com pátina estavam alinhados frascos que continham espécies simples e medicamentos soberanos. O último frasco de cada fila emitia uma fluorescência compacta. Num recipiente cónico de vidro espesso e corroído, girinos tumefactos rodavam em espiral descendente até atingir o fundo e depois voltavam a subir como uma flecha até à superfície, retomando a rotação excentrada e deixando atrás de si um rasto esbranquiçado de água densa. Ao lado, no fundo de um aquário com vários metros de comprido, o vendedor instalara um banco de ensaio para rãs com órgão de boca, e algumas delas jaziam aqui e além, inutilizáveis, com os quatro corações ainda a bater debilmente.»



Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 116
«Chloé parou para brincar com um montículo de neve.
Suaves e frios, os flocos mantinham-se brancos e não derretiam.
-Vê como é bonita - disse ela a Colin.
Debaixo da neve havia primaveras, miosótis e papoilas.
-Pois é - disse Colin - mas fazes mal em agarrar nela. Vais ter frio.
-Oh! não! - disse Chloé, começando a tossir como um tecido de seda que se rasga.
-Querida Chloé - disse Colin rodeando-a com os braços - não tussas desse modo que me entristeces!
Largou a neve, que caiu lentamente como penugem e voltou a brilhar o sol.
-Não gosto desta neve - murmurou Nicolas.
Emendou logo:
-Peço desculpa, senhor, pela liberdade da linguagem.
Colin descalçou um sapato e atirou-o à cara de Nicolas, que se baixou para esfregar uma pequena nódoa das calças e levantou ao som de um vidro quebrado.
-Oh! Senhor!... - disse com um ar de censura - é a janela do seu quarto!...
- Pois tanto pior! - disse Colin. - Vamos ficar mais arejados....Além disso, talvez te ensine a não falar como um idiota....
Ajudado por Chloé, dirigiu-se a pé-coxinho para a porta do hotel. A vidraça partida começava a crescer. Nas bordas do caixilho ia-se formando uma placa fina e opalescente irisada por vagos reflexos, com tonalidades pálidas, furta-cores.»



Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 88/9

no começo do capítulo XXIV

       O grande automóvel branco, abria, cauteloso, um caminho nos trilhos da estrada. Sentados atrás, Colin e Chloé olhavam para a paisagem com um certo mal-estar. O céu estava baixo, pássaros vermelhos voavam ao rés dos fios telegráficos subindo e descendo como eles, e o seu piar áspero reflectia-se na água plúmbea dos charcos.


Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 82

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

«Durmo, desperto, torno a dormir, torno a despertar, miserável existência.
Quando reflicto sobre isso, é-me preciso confessar que a minha educação foi-me prejudicial em muitas coisas por diversos motivos. Entretanto, não fui educado em qualquer retiro afastado, em qualquer ruína nas montanhas. (...) Essa queixa dirige-se contra uma quantidade de pessoas, a saber: os meus pais, alguns membros de minha família, alguns daqueles que frequentavam a nossa casa, vários escritores, uma determinada cozinheira que, por todo um ano, ia levar-me à escola (...).»


Kafka. Diários, s/data, p. 13
«Ao tacto, o pavilhão da minha orelha parecia fresco, agreste,
 frio e enrugado como uma folha. Escrevo isto com toda
certeza obrigado pelo desespero que me causam o meu corpo
 e o porvir deste corpo. »


Franz Kafka

A longs filets de sang ce lamentable corps

A longs filets de sang ce lamentable corps
Tire du lieu qu'il fuit le lien de son âme,
Et séparé du coeur qu'il a laissé dehors,
Dedans les forts liens et aux mains de sa dame,
Il s'enfuit de sa vie et cherche mille morts.

Plus les rouges destins arrachent loin du coeur
Mon estomac pillé, j'épanche mes entrailles
Par le chemin qui est marqué de ma douleur.
La beauté de Diane ainsi que des tenailles
Tirent l'un d'un côté, l'autre suit le malheur.

Qui me voudra trouver détourne par mes pas,
Par les buissons rougis, mon corps de place en place,
Comme un vaneur baissant la tête contre bas
Suit le sanglier blessé aisément à la trace,
Et le poursuit à l'oeil jusqu'au lieu du trépas.

Diane, qui voudra me poursuivre en mourant,
Qu'on écoute les rocs résonner mes querelles,
Qu'on suive pour mes pas de larmes un torrent,
Tant qu'on trouve séché de mes peines cruelles
Un coffre, ton portrait, et rien au demeurant.

Les champs sont abreuvés après moi de douleurs,
Le souci, l'encolie, et les tristes pensées
Renaissent de mon sang et vivent de mes pleurs,
Et des cieux les rigueurs contre moi courroucées
Font servir mes soupirs à éventer ses fleurs.

Un bandeau de fureur épais presse mes yeux
Qui ne discernent plus le danger ni la voie,
Mais ils vont effrayant de leur regard les lieux
Où se trame ma mort, et ma présence effraie
Ce qu'embrassent la terre et la voûte des cieux. [...]


Théodore Agrippa d' Aubigné

Épitaphe

Il a vécu tantôt gai comme un sansonnet,
Tour à tour amoureux insoucieux et tendre,
Tantôt sombre et rêveur comme un triste Clitandre.
Un jour il entendit qu'à sa porte on sonnait.

C'était la Mort ! Alors il la pria d'attendre
Qu'il eût posé le point à son dernier sonnet ;
Et puis sans s'émouvoir, il s'en alla s'étendre
Au fond du coffre froid où son corps frissonnait.

Il était paresseux, à ce que dit l'histoire,
Il laissait trop sécher l'encre dans l'écritoire.
Il voulait tout savoir mais il n'a rien connu.

Et quand vint le moment où, las de cette vie,
Un soir d'hiver, enfin l'âme lui fut ravie,
Il s'en alla disant : " Pourquoi suis-je venu ? "


Gérard de Nerval

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

É com uma ironia melancólica, avô, que turvadas imagens me chegam aos olhos. Nunca estive tão cansada cá dentro, nunca houve dias em que me sentisse tão fora deste rio (mundo?). Sento-me nas margens, e olho os pássaros que rasgam pelos céus, escurecidos pelas nuvens de fria tempestade. Tenho-os visto, amiúde, sentindo-lhes a vertigem das asas, do voo sem fim (e, sem princípio?). Olho e escureço. E a solidão, passeia, como uivo, preso ao rasgo de um saia com flores primaveris, que sem querer, semeia o movimento de memórias e ruínas. Lembro-me daquele que tinha a palavra no espírito, mas acções tão cegas de afeição; e vejo, sim vejo, aqueloutro que entre arbustos diz esconder-se, mas é apenas caruma nos grandes adornos. Tanto peso do gelo sobre os ramos das árvores; tanto ouro e tantas máscaras ímpias, apenas me entristecem. Fixo o branco das flores de Chloé. Esse branco húmido na prisão onde acordei depois de pensar-me na morte. Foram talvez as lágrimas de sangue que mais me marcaram e, recordo-te, sempre que a madrugada me aleita a insónia. Tantas vezes peço, estremeço, por um eco teu e, entregue aos alguéns e ninguéns de mim mesma, procuro viver com o luto (aqueles que cá ficam presos à infinita espera). E é tudo uma ironia tão amarga!  Permanecer no mundo com a saudade da tua ausência.

Le malheur

Suivi du Suicide impie,
A travers les pâles cités,
Le Malheur rôde, il nous épie,
Prés de nos seuils épouvantés.
Alors il demande sa proie ;
La jeunesse, au sein de la joie,
L'entend, soupire et se flétrit ;
Comme au temps où la feuille tombe,
Le vieillard descend dans la tombe,
Privé du feu qui le nourrit.

Où fuir ? Sur le seuil de ma porte
Le Malheur, un jour, s'est assis ;
Et depuis ce jour je l'emporte
A travers mes jours obscurcis.
Au soleil et dans les ténèbres,
En tous lieux ses ailes funèbres
Me couvrent comme un noir manteau ;
De mes douleurs ses bras avides
M'enlacent ; et ses mains livides
Sur mon coeur tiennent le couteau.

J'ai jeté ma vie aux délices,
Je souris à la volupté ;
Et les insensés, mes complices
Admirent ma félicité.
Moi-même, crédule à ma joie,
J'enivre mon coeur, je me noie
Aux torrents d'un riant orgueil ;
Mais le Malheur devant ma face
A passé : le rire s'efface,
Et mon front a repris son deuil.

En vain je redemande aux fêtes
Leurs premiers éblouissements,
De mon coeur les molles défaites
Et les vagues enchantements :
Le spectre se mêle à la danse ;
Retombant avec la cadence,
Il tache le sol de ses pleurs,
Et de mes yeux trompant l'attente,
Passe sa tête dégoûtante
Parmi des fronts ornés de fleurs.

Il me parle dans le silence,
Et mes nuits entendent sa voix ;
Dans les arbres il se balance
Quand je cherche la paix des bois.
Près de mon oreille il soupire;
On dirait qu'un mortel expire :
Mon coeur se serre épouvanté.
Vers les astres mon oeil se lève,
Mais il y voit pendre le glaive
De l'antique fatalité.

Sur mes mains ma tête penchée
Croit trouver l'innocent sommeil.
Mais, hélas ! elle m'est cachée,
Sa fleur au calice vermeil.
Pour toujours elle m'est ravie,
La douce absence de la vie ;
Ce bain qui rafraîchit les jours ;
Cette mort de l'âme affligée,
Chaque nuit à tous partagée,
Le sommeil m'a fui pour toujours

Ah ! puisqu'une éternelle veille
Brûle mes yeux toujours ouverts,
Viens, ô Gloire ! ai-je dit ; réveille
Ma sombre vie au bruit des vers.
Fais qu'au moins mon pied périssable
Laisse une empreinte sur le sable.
La Gloire a dit : "Fils de douleur,
"Où veux-tu que je te conduise ?
"Tremble ; si je t'immortalise,
"J'immortalise le Malheur."

Malheur ! oh ! quel jour favorable
De ta rage sera vainqueur ?
Quelle main forte et secourable
Pourra t'arracher de mon coeur,
Et dans cette fournaise ardente,
Pour moi noblement imprudente,
N'hésitant pas à se plonger,
Osera chercher dans la flamme,
Avec force y saisir mon âme,
Et l'emporter loin du danger ?


Alfred de Vigny

Le Mont des Oliviers

I


Alors il était nuit et Jésus marchait seul,
Vêtu de blanc ainsi qu'un mort de son linceul ;
Les disciples dormaient au pied de la colline.
Parmi les oliviers qu'un vent sinistre incline
Jésus marche à grands pas en frissonnant comme eux ;
Triste jusqu'à la mort; l'oeil sombre et ténébreux,
Le front baissé, croisant les deux bras sur sa robe
Comme un voleur de nuit cachant ce qu'il dérobe ;
Connaissant les rochers mieux qu'un sentier uni,
Il s'arrête en un lieu nommé Gethsémani :
Il se courbe, à genoux, le front contre la terre,
Puis regarde le ciel en appelant : Mon Père !
- Mais le ciel reste noir, et Dieu ne répond pas.
Il se lève étonné, marche encore à grands pas,
Froissant les oliviers qui tremblent. Froide et lente
Découle de sa tête une sueur sanglante.
Il recule, il descend, il crie avec effroi :
Ne pouviez-vous prier et veiller avec moi !
Mais un sommeil de mort accable les apôtres,
Pierre à la voix du maître est sourd comme les autres.
Le fils de l'homme alors remonte lentement.
Comme un pasteur d'Egypte il cherche au firmament
Si l'Ange ne luit pas au fond de quelque étoile.
Mais un nuage en deuil s'étend comme le voile
D'une veuve et ses plis entourent le désert.
Jésus, se rappelant ce qu'il avait souffert
Depuis trente-trois ans, devint homme, et la crainte
Serra son coeur mortel d'une invincible étreinte.
Il eut froid. Vainement il appela trois fois :
MON PÈRE ! - Le vent seul répondit à sa voix..
Il tomba sur le sable assis et, dans sa peine,
Eut sur le monde et l'homme une pensée humaine.
- Et la Terre trembla, sentant la pesanteur
Du Sauveur qui tombait aux pieds du créateur.

II

Jésus disait : " Ô Père, encor laisse-moi vivre !
Avant le dernier mot ne ferme pas mon livre !
Ne sens-tu pas le monde et tout le genre humain
Qui souffre avec ma chair et frémit dans ta main ?
C'est que la Terre a peur de rester seule et veuve,
Quand meurt celui qui dit une parole neuve ;
Et que tu n'as laissé dans son sein desséché
Tomber qu'un mot du ciel par ma bouche épanché.
Mais ce mot est si pur, et sa douceur est telle,
Qu'il a comme enivré la famille mortelle
D'une goutte de vie et de Divinité,
Lorsqu'en ouvrant les bras j'ai dit : FRATERNITE !

- Père, oh ! si j'ai rempli mon douloureux message,
Si j'ai caché le Dieu sous la face du Sage,
Du Sacrifice humain si j'ai changé le prix,
Pour l'offrande des corps recevant les esprits,
Substituant partout aux choses le Symbole,
La parole au combat, comme au trésor l'obole,
Aux flots rouges du Sang les flots vermeils du vin,
Aux membres de la chair le pain blanc sans levain ;
Si j'ai coupé les temps en deux parts, l'une esclave
Et l'autre libre ; - au nom du Passé que je lave
Par le sang de mon corps qui souffre et va finir :
Versons-en la moitié pour laver l'avenir !


Père Libérateur ! jette aujourd'hui, d'avance,
La moitié de ce Sang d'amour et d'innocence
Sur la tête de ceux qui viendront en disant :
"Il est permis pour tous de tuer l'innocent."
Nous savons qu'il naîtra, dans le lointain des âges,
Des dominateurs durs escortés de faux Sages
Qui troubleront l'esprit de chaque nation
En donnant un faux sens à ma rédemption. -
Hélas ! je parle encor que déjà ma parole
Est tournée en poison dans chaque parabole ;
Eloigne ce calice impur et plus amer
Que le fiel, ou l'absinthe, ou les eaux de la mer.
Les verges qui viendront, la couronne d'épine,
Les clous des mains, la lance au fond de ma poitrine,
Enfin toute la croix qui se dresse et m'attend,
N'ont rien, mon Père, oh ! rien qui m'épouvante autant !
- Quand les Dieux veulent bien s'abattre sur les mondes,
Es n'y doivent laisser que des traces profondes,
Et si j'ai mis le pied sur ce globe incomplet
Dont le gémissement sans repos m'appelait,
C'était pour y laisser deux anges à ma place
De qui la race humaine aurait baisé la trace,
La Certitude heureuse et l'Espoir confiant
Qui dans le Paradis marchent en souriant.
Mais je vais la quitter, cette indigente terre,
N'ayant que soulevé ce manteau de misère
Qui l'entoure à grands plis, drap lugubre et fatal,
Que d'un bout tient le Doute et de l'autre le Mal.

Mal et Doute ! En un mot je puis les mettre en poudre ;
Vous les aviez prévus, laissez-moi vous absoudre
De les avoir permis. - C'est l'accusation
Qui pèse de partout sur la Création !
- Sur son tombeau désert faisons monter Lazare.
Du grand secret des morts qu'il ne soit plus avare
Et de ce qu'il a vu donnons-lui souvenir,
Qu'il parle. - Ce qui dure et ce qui doit finir ;
Ce qu'a mis le Seigneur au coeur de la Nature,
Ce qu'elle prend et donne à toute créature ;
Quels sont, avec le Ciel, ses muets entretiens,
Son amour ineffable et ses chastes liens ;
Comment tout s'y détruit et tout s'y renouvelle
Pourquoi ce qui s'y cache et ce qui s'y révèle ;
Si les astres des cieux tour à tour éprouvés
Sont comme celui-ci coupables et sauvés ;
Si la Terre est pour eux ou s'ils sont pour la Terre ;
Ce qu'a de vrai la fable et de clair le mystère,
D'ignorant le savoir et de faux la raison ;
Pourquoi l'âme est liée en sa faible prison ;
Et pourquoi nul sentier entre deux larges voies,
Entre l'ennui du calme et des paisibles joies
Et la rage sans fin des vagues passions,
Entre la Léthargie et les Convulsions ;
Et pourquoi pend la Mort comme une sombre épée
Attristant la Nature à tout moment frappée ;
- Si le Juste et le Bien, si l'Injuste et le Mal
Sont de vils accidents en un cercle fatal
Ou si de l'univers ils sont les deux grands pôles,
Soutenant Terre et Cieux sur leurs vastes épaules ;
Et pourquoi les Esprits du Mal sont triomphants
Des maux immérités, de la mort des enfants ;
- Et si les Nations sont des femmes guidées
Par les étoiles d'or des divines idées
Ou de folles enfants sans lampes dans la nuit,
Se heurtant et pleurant et que rien ne conduit ;
- Et si, lorsque des temps l'horloge périssable
Aura jusqu'au dernier versé ses grains de sable,
Un regard de vos yeux, un cri de votre voix,
Un soupir de mon coeur, un signe de ma croix,
Pourra faire ouvrir l'ongle aux Peines Eternelles,
Lâcher leur proie humaine et reployer leurs ailes ;
- Tout sera révélé dés que l'homme saura
De quels lieux il arrive et dans quels il ira. "

III

Ainsi le divin fils parlait au divin Père.
Il se prosterne encore, il attend, il espère,
Mais il renonce et dit : Que votre Volonté
Soit faite et non la mienne et pour l'Eternité.
Une terreur profonde, une angoisse infinie
Redoublent sa torture et sa lente agonie.
Il regarde longtemps, longtemps cherche sans voir.
Comme un marbre de deuil tout le ciel était noir.
La Terre sans clartés, sans astre et sans aurore,
Et sans clartés de l'âme ainsi qu'elle est encore,
Frémissait. - Dans le bois il entendit des pas,
Et puis il vit rôder la torche de Judas.

Le silence

S'il est vrai qu'au Jardin sacré des Ecritures,
Le Fils de l'Homme ait dit ce qu'on voit rapporté ;
Muet, aveugle et sourd au cri des créatures,
Si le Ciel nous laissa comme un monde avorté,
Le juste opposera le dédain à l'absence
Et ne répondra plus que par un froid silence
Au silence éternel de la Divinité.


Alfred de Vigny

Artémis

La Treizième revient... C'est encor la première ;
Et c'est toujours la Seule, - ou c'est le seul moment :
Car es-tu Reine, ô Toi! la première ou dernière ?
Es-tu Roi, toi le seul ou le dernier amant ? ...

Aimez qui vous aima du berceau dans la bière ;
Celle que j'aimai seul m'aime encor tendrement :
C'est la Mort - ou la Morte... Ô délice ! ô tourment !
La rose qu'elle tient, c'est la Rose trémière.

Sainte napolitaine aux mains pleines de feux,
Rose au coeur violet, fleur de sainte Gudule,
As-tu trouvé ta Croix dans le désert des cieux ?

Roses blanches, tombez ! vous insultez nos Dieux,
Tombez, fantômes blancs, de votre ciel qui brûle :
- La sainte de l'abîme est plus sainte à mes yeux !


Gérard de Nerval

Le Temps

Ode

I

Le Temps ne surprend pas le sage ;
Mais du Temps le sage se rit,
Car lui seul en connaît l'usage ;
Des plaisirs que Dieu nous offrit,
Il sait embellir l'existence ;
Il sait sourire à l'espérance,
Quand l'espérance lui sourit.

II

Le bonheur n'est pas dans la gloire,
Dans les fers dorés d'une cour,
Dans les transports de la victoire,
Mais dans la lyre et dans l'amour.
Choisissons une jeune amante,
Un luth qui lui plaise et l'enchante ;
Aimons et chantons tour à tour !

III

" Illusions ! vaines images ! "
Nous dirons les tristes leçons
De ces mortels prétendus sages
Sur qui l'âge étend ses glaçons ; "
" Le bonheur n'est point sur la terre,
Votre amour n'est qu'une chimère,
Votre lyre n'a que des sons ! "

IV

Ah ! préférons cette chimère
A leur froide moralité ;
Fuyons leur voix triste et sévère ;
Si le mal est réalité,
Et si le bonheur est un songe,
Fixons les yeux sur le mensonge,
Pour ne pas voir la vérité.

V

Aimons au printemps de la vie,
Afin que d'un noir repentir
L'automne ne soit point suivie ;
Ne cherchons pas dans l'avenir
Le bonheur que Dieu nous dispense ;
Quand nous n'aurons plus l'espérance,
Nous garderons le souvenir.

VI

Jouissons de ce temps rapide
Qui laisse après lui des remords,
Si l'amour, dont l'ardeur nous guide,
N'a d'aussi rapides transports :
Profitons de l'adolescence,
Car la coupe de l'existence
Ne pétille que sur ses bords !

(1824)


Gérard de Nerval

L'enfance

 Qu'ils étaient doux ces jours de mon enfance
Où toujours gai, sans soucis, sans chagrin,
je coulai ma douce existence,
Sans songer au lendemain.
Que me servait que tant de connaissances
A mon esprit vinssent donner l'essor,
On n'a pas besoin des sciences,
Lorsque l'on vit dans l'âge d'or !
Mon coeur encore tendre et novice,
Ne connaissait pas la noirceur,
De la vie en cueillant les fleurs,
Je n'en sentais pas les épines,
Et mes caresses enfantines
Étaient pures et sans aigreurs.
Croyais-je, exempt de toute peine
Que, dans notre vaste univers,
Tous les maux sortis des enfers,
Avaient établi leur domaine ?


Nous sommes loin de l'heureux temps
Règne de Saturne et de Rhée,
Où les vertus, les fléaux des méchants,
Sur la terre étaient adorées,
Car dans ces heureuses contrées
Les hommes étaient des enfants.


(1822)


Gérard de Nerval

A victim of the Nazi Euthanasia Program hospitalized in a psychiatric ward for her nonconformist beliefs and writings, she was murdered on January 26, 1944. Germany, date uncertain.

«- Não tenhas ilusões, eu desfarei as tuas leis, perturbarei a tua ordem, destruir-te-ei; eu sou o Caos!»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 20
«A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 18

« Falar-te-ei da minha luta, para me sentir aliviado, expulsarei de mim a virtude, o pudor, a verdade, para me sentir aliviado»

«(...) Ouvia, dia e noite, a tua ordem. Esforçava-me, tanto quanto podia, para chegar onde não podia chegar, e se o consegui ou não, só tu mo dirás. Estou diante de ti, e espero.
       Meu general, a batalha está a acabar, presto as minhas contas. Eis onde me bati; fui ferido, senti medo, mas não desertei. Os dentes batiam-me de medo, mas apertava a testa com um lenço vermelho para que se não visse o sangue e partia ao assalto.
       Uma a uma, diante de ti, arrancarei as penas da minha alma, a gralha fúnebre, até que ela já não seja ela, como um pequeno punhado de terra amassada com lágrimas, suor, e sangue. Falar-te-ei da minha luta, para me sentir aliviado, expulsarei de mim a virtude, o pudor, a verdade, para me sentir aliviado.Tal como tu criaste Toledo na tormenta, é assim, carregada de nuvens negras, rodeada de raios amarelos, lutando sem esperança e sem desfalecimento com a luz e as trevas - é assim a minha alma. Vê-la-ás, avaliá-la-ás com o teu olhar penetrante como flechas, e julgá-la-ás. Lembras-te daquelas palavras terríveis que nós, os cretenses, costumamos dizer: «Volta aonde fracassaste; foge do lugar onde venceste!» Se fracassei e me sobrar ainda uma hora de vida, recomeçarei; se venci, abrirei a terra para vir deitar-me ao pé de ti.
       Aqui tens, pois, o meu relato, general, e julga.
       Escuta, Avô, o relato da minha vida; e se na verdade combati contigo, se fui ferido sem que ninguém se apercebesse que sofria, se nunca voltei as costas ao inimigo - dá-me a tua bênção.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 16/7
«Olhaste-me e, mal me tinhas visto, senti que este mundo é uma nuvem carregada de trovada e de ventos, que a alma do homem está carregada de trovoada e de ventos, que Deus sopra sobre ela e que não há salvação.
Ergui os olhos, fitei-te. Ia dizer-te:
- Avô, é verdade que não há salvação? - Mas a língua prendeu-se-me. E quando tentei aproximar-me de ti, os joelhos fraquejaram.
  Então, estendeste a mão, como se eu me afogasse e quisesses salvar-me. Agarrei-me àvidamente: ela estava salpicada de manchas multicolores; queimava. Toquei-lhe, ela deu-me força, um impulso, e pude falar.
-Avô - disse -, dá-me as tuas ordens.
  Tu sorriste, puseste a mão sobre a minha cabeça. Não era mão, era um fogo multicolor. E esse fogo derramou-se até às raízes do meu espírito.
-Vai até onde puderes, meu filho...»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 15
«-Ora vejam lá como vocês são - disse Colin. - Tenho a certeza de que todo o vosso dinheiro continua a ser gasto nessas coisas.
Chick e Alise baixaram o nariz.
- A culpa é minha - disse Chick. - A Alise já não gasta nada com o Partre. Desde que vive comigo, quase não se ocupa dele.
A voz continha uma censura.
-Gosto mais de ti do que do Partre - disse Alise.
Estava prestes a chorar.
-És encantadora - disse Chick. - Não te mereço. Mas o meu vício é coleccionar Partre, e um engenheiro não pode infelizmente dar-se ao luxo de ter tudo.»


Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 59
«Agarrou Colin pelo braço.
-Dê-me o braço. Hoje não o vejo muito expedito!...
-No último encontro a coisa correu melhor - confessou Colin.
Ela voltou a rir, olhou-o, riu outra vez e melhor ainda.
-Está a troçar de mim - disse Colin, compungido. - Não é caridoso.
-Não sente prazer em ver-me? - perguntou Chloé.
-Sinto... - disse Colin.
Uma nuvem cor-de-rosa descia do alto e aproximava-se deles.
-Já aí vou! - era a sua proposta.
-Vem - dizia Colin.
E a nuvem envolveu-os. O seu interior estava quente e cheirava a açúcar com canela.
-Já ninguém nos vê! - disse Colin. - Mas nós vemo-los!...
-É um pouco transparente - disse Chloé. - Desconfie.
-Não faz mal - disse Colin. - Seja como for, sentimo-nos melhor assim. O que é que quer fazer?...
-Exactamente passear...Fica aborrecido?
-Diga-me então coisas...
-Não sei muito a respeito de coisas - respondeu Chloé. - Podemos ver montras. Olhe aquela!...É interessante!
    Na montra havia uma mulher bonita deitada  numa cama desmontável. Tinha o peito nu, um aparelho escovava-lhe os seios de baixo para cima, como escovas compridas de pêlos brancos, finos, sedosos. O cartaz dizia: «Economize o calçado usando o Antípoda do Reverendo Charles».
  -É boa ideia - disse Chloé.
  -Mas não faz nenhum sentido!...-disse Colin. - Com a mão é muito mais agradável.
Chloé corou.
-Não diga coisas dessas. Não gosto dos rapazes que dizem horrores à frente das raparigas.
-Peço desculpa....-  disse Colin. - Não queria...
Mostrava um ar tão desolado, que ela sorriu e abanou-o para provar que não estava zangada.»



Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 54/5

Colin e Chloé

«Colin sentou-se e Chloé aninhou-se comodamente ao pé dele.
-Esta menina é simpática, não é? - disse Chick.
Chloé sorriu. Colin não disse nada mas passou o braço à volta do pescoço de Chloé e começou a brincar distraidamente com o primeiro botão do seu vestido, que abotoava no peito. Alise voltou para junto deles.
-Chega-te para lá, Chick, quero encaixar-me entre ti e o Colin.
Tinha escolhido bem o disco. Era o Chloe no arranjo de Duke Ellington. Colin mordiscava perto da orelha os cabelos de Chloé. Murmurou:
-És precisamente tu.
E antes de Chloé conseguir responder, os outros vieram dançar; depois de todo aquele tempo tinham reparado que não era, de forma nenhuma, momento para estarem à mesa.
-Oh!...- disse Chloé. - Que pena!...»



Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 48/9

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

''Na verdade não há processo de aceder à consciência senão estar, viver, tê-la presente, sê-la: talvez a filosofia dependa em última análise, como queria Fichte, «da qualidade de homem que se é».''


Eduardo Lourenço. Da Permanência no Mundo do Espírito in Heterodoxia I e II. Assírio&Alvim, Lisboa, 1987, p. 25
«Um homem pode recusar-se a trocar qualquer objecto insignificante (testemunho de amor, recordação familiar, fetiche absurdo mesmo) sobre que concentrou uma intenção infinita, pelo maior tesouro da terra. Quer dizer, pode recusar vender a alma.»


Eduardo Lourenço. Da Permanência no Mundo do Espírito in Heterodoxia I e II. Assírio&Alvim, Lisboa, 1987, p. 25

«É fácil ver a que espécie de homens pertencem os aproveitadores de mortos...»

«É fácil ver a que espécie de homens pertencem os aproveitadores de mortos: aos fanáticos de todas as religiões, metafísicas, morais, estéticas, políticas. Fanáticos, entenda-se, não crentes que testemunham da sua fé como fé, sem a querer impor aos outros como certeza demonstrável. O que é raro.»


Eduardo Lourenço. Da Permanência no Mundo do Espírito in Heterodoxia I e II. Assírio&Alvim, Lisboa, 1987, p. 21
«On peut  compter l'âge du corps,
Mais trouverais-je un autre champ
Entre mon enfance et ma mort?»


Patrice de la Tour du Pin, Poèmes de Calsehenne

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Dora Diamant and her infant daughter in Berlin, 1934

«Que tenho eu em comum com os judeus?
 Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo,
e deveria meter-me num canto, em completo silêncio,
contente por poder respirar. »


Franz Kafka
"There is always something unaccounted for."


--Franz Kafka, Conversations with Kafka

DORA'S PAPERS

Dora's cahier, or diary, missing for almost 50 years, was uncovered, along with 15 letters to Marthe Robert, Kafka's French translator, written between 1951-1952, in Paris. Two years later, a second diary was discovered by Klaus Wagenbach, which had laid forgotten in archive in Berlin. These diaries, written in the last year of her life, represent Dora's attempt to "say once what is necessary to say about Kafka. Everything. Without reservation." In January 2000, working with professional archival researchers, Dora's secret 35-page file from the Comintern in the Central Archives of the Communist Party in Moscow was obtained





Page 9 of Dora's cahier, her Kafka diary, begun on her birthday in 1951, when she learned she was dying. © Diamant Family

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A quem devo pedir a dívida deste meu severo destino?


Eu que sempre fiz das leis uma ameaça e das árvores o deslumbramento divino,
avanço para a coroa de espinhos com um travo amargo, que floresce dentro de mim,
em corroída nudez.

ekstasis


« (...) um termo comummente utilizado na Grécia antiga para descrever
estados mentais para além da razão (logos).»


Ned O’Gorman, 2004

um entusiasmo triste

Leonce - Oh, meu caro Valério! Não poderia eu também dizer: "Isto é uma floresta de moitas de plumas, com algumas rosas bem cheias, junto a meus pés..." Acho que eu o disse bem melancolicamente. Graças a Deus! Começo a descer junto com a melancolia. O ar já não está tão claro e frio, o céu desce sobre mim brilhando e caem pesadas gotas de chuva. Oh, esta voz: "Será tão longo o caminho?" Muitas vozes falam nesse mundo e nós pensamos que falam de outras coisas. Mas esta voz, eu a compreendi. Descansa sobre mim como o espírito, já que este pairava sobre as águas antes de ser feita a luz. Que fermentação nas profundezas, como se fazem as coisas dentro de mim, como a voz se derrama pelo espaço! Será tão longo o caminho? (Sai.)

Leonce - Pois seja. (Deita-se no gramado.) Impediste meu mais belo suicídio! Em toda minha vida jamais tornarei a encontrar momento tão adequado. E um clima tão excelente. Agora, já me passou a vontade. Com teu colete amarelo e tuas calças azul-celeste, estragastes tudo. Que o céu me conceda um sono bem sadio e pesado
 
 
Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

a própria identidade se perde

Peter  - Quem sois?
Valério - Será que sei? (Vagarosamente, retira várias máscaras. uma após outra.) Sou esse? Ou este? Na realidade tenho medo de poder descascar-me ou desfolhar-me assim.


 Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Smoking

(...)

«Assim pensa sorrindo: « A ti, indestrutível, tem
De pôr-te à prova outra palavra», e di-la alto,
A jovem águia, olhando Germânica:
«És tu, eleita,
Tu que tudo amas, e para carregares um fardo
Pesado de ventura te fizeste forte,


Desde o tempo em que tu, escondida na floresta e ébria
De doce sono da papoila em flor, não atentavas
Em mim, muito antes que outros mais humildes
sentissem,
O orgulho da virgem e espantadas perguntassem de quem e
donde tu eras,
Mas tu mesma o não sabias. Eu é que te reconheci,
E em segredo, enquanto sonhavas, deixei-te
Ao partir ao meio-dia um sinal amigo,
A flor da boca, e sozinha te puseste a falar.
Mas expediste também profusão de palavras em ouro
Ó afortunada, com os rios, e eles correm inesgotáveis
Pra todas as regiões. Pois quase como o da Santa
Que é a mãe de tudo o traz ao abismo,
A quem os homens chamam a Oculta,
O teu peito está cheio
De amor e dor
E de presságios e de paz.»





Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 393-395
«Porém insensato é
Perante o Destino o desejar.
Mas os mais cegos
São os filhos dos deuses. Pois o homem conhece
A sua casa, e ao animal foi dado saber onde
Deve construir a sua, mas àqueles coube-lhes
Na alma inocente o defeito
De não saberem para onde hão-de ir.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 373
(...)

Ó terra de Homero!
Debaixo da cerdeira purpúrea, ou quando
Na minha vinha os jovens pessegueiros,
Vindos de ti, reverdecem,
E a andorinha vem de longe e contando muitas coisas
Faz a casa nas minhas paredes, nos
Dias de Maio, também sob as estrelas
Eu penso em ti, ó Iónia! Mas os homens
Amam o que têm presente. Por isso eu
Vim ver-vos, ó Ilhas, e a vós,
Ó fozes dos rios, ó vós palácios de Tétis,
E a vós, ó bosques, e a vós, ó nuvens do Ida!

Mas não penso em ficar.
Descortês e difícil de conquistar é
A Mãe reservada que abandonei.
Dos filhos um, o Reno,
Quis à força atirar-se ao seu seio, e repelido,
Desapareceu na distância, ninguém sabe onde.
Mas eu não quereria partir dela assim,
E apenas pra vos convidar
Vim eu ter convosco, ó Graças da Grécia,
Ó filhas do céu,
Pra vos pedir, se a viagem não for longa de mais,
Que venhais a nossa casa, ó benignas!

Quando os ares sopram mais suaves,
E a manhã dispara sobre nós,
Pacientes de mais, setas de amor,
E nuvens leves florescem
Por sobre os nossos olhos tímidos,
Então diremos: Como é que vós,
Ó Cárites, vindes ter c 'os bárbaros?
Mas as servas do céu
São caprichosas
Como tudo o que nasce dos deuses.
Faz-se sonho àquele que queira
Apoderar-se dele com astúcia, e castiga aquele
Que à força se lhe queira igualar;
Muitas vezes surpreende aquele
Que nele mal tinha pensado.






Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 367-369
«BENV. - (...) Mais vale morrer de dor, que viver desonrado.


Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.113
« BENV.- Será a minha honra. Espada, sê certeira!
É a cabeça dele pelos cornos que me pôs.

Entra Fausto com uma cabeça postiça.

MARTINO- Aí vem ele! Aí vem ele!
BENV.- Silêncio! Um só golpe, e pronto!
O corpo cai na terra e a alma no Inferno.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107
«BENV.- Pesa-me agora menos a cabeça,
Mas tenho mais oprimido o coração,»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

New York (Boys Fighting on Door Frame), 1942 early 1950s

Olhai, Alteza, que animal esquisito ali está com a cabeça
fora da janela.
IMPER. - Oh, que cena espantosa, Duque de Saxónia!
Vede. Um estranho par de cornos espetado
Na cabeça do jovem Benvolio.
DUQUE DA SAX. - Mas ele está morto ou a dormir?
IMPER. - Que belo divertimento! Vamos acordá-lo.
Eh, Benvolio!
BENVOL. - Diabos vos levem! Deixai-me dormir.
IMPER. - Não te censuro por dormires tanto; com uma cabeça
dessas...
DUQUE DA SAX. - Levanta os olhos, Benvolio, é o Imperador
quem te chama.
BENVOL. - Imperador? Onde? Oh, raios me partam, a minha cabeça!
IMPER.- Deixa lá a cabeça, segura mas é nos cornos, que a
cabeça está bem armada.
FAUSTO. - Então e agora, senhor cavaleiro, pendurado pelos
cornos, não é? Que coisa feia! Uma vergonha! Metei a cabeça
para dentro, senão vai toda a gente ficar pasmada a olhar para vós.
BENVOL. - Raios vos partam, doutor! Esta patifaria é vossa?
FAUSTO.- Não digais tal, senhor, que o doutor não tem saber,
Nem arte, nem engenho, para brindar estes nobres,
Ou para trazer à presença do Imperador
O poderoso rei, o bravo Alexandre.
Fausto conseguiu-o. E vós o quisestes:
Transformar-vos, como Acteon, em veado;



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.103

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências. [...]
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido”



Alberto Caeiro, no poema VIII de O Guardador de Rebanhos

concepção pessimista

«Julgada na perspectiva judaico-cristã, a religião grega parece constituir-se sob o signo do pessimismo: a existência humana é, por definição, efêmera e sobrecarregada de preocupações.[...] Essa concepção pessimista impôs-se irremediavelmente quando o grego tomou consciência da precariedade da condição humana.»


Mircea Eliade. História das Crenças e das Idéias Religiosas; Tomo I, Da Idade da Pedra aos Mistérios de Eleusis, Volume 2, pp. 91e 94.

Exortação por uma voz feminina, O Trovão – Intelecto Perfeito

Pois eu sou a primeira: e a última
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. [...]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome


Layton. As Escrituras Gnósticas. pgs. 96/97.

'O velho mito germânico de Migdar'

« Tudo isso é Migdar e o reconhecimento de Migdar como essência da realidade, chama-se Heterodoxia. Ou traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com a certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de Ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo.»



Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

domingo, 26 de dezembro de 2010

«Como a leoa, tu te queixaste,
Ó Mãe, quando tu,
Natureza, os perdeste, os filhos.
Pois tos roubou, ó Amantíssima,
O teu inimigo, quando o recebeste
Quase como os próprios filhos,
E a sátiros associaste os deuses.
Assim construíste muita coisa,
E muita coisa enterraste,
Pois te odeia
O que tu, ó Vigorosíssima,
Deste à luz antes do tempo.
Agora o conheces, agora desistes disto;
Pois de bom grado repousa, insensível,
Até que amadurece, lá em baixo o que actua medroso.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 359
«Brisas de hálito leve
Vos anunciam já,
Anuncia-vos o vale fumegante
E o solo que ainda ressoa da tempestade,
Mas a Esperança enrubesce as faces,
E em frente da porta da casa
Está sentada a mãe com o filho,
E contempla a Paz
E poucos parecem morrer;
Um presságio detém a alma,
Enviada pela luz de ouro
Uma promessa detém os mais velhos.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 375

Os mortos

Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
   Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe.
E no entanto, vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do
[peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos
                                                                         [rejuvenesce.

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 293
«Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
Os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra
Pareço eu: feito para amar, para sofrer.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 177
«Tal como os deuses andam com pés de lã
Antes de punirem os homens com mãos de ferro,
Assim acorda agora nossa vingança adormecida
Para condenar à morte teus execráveis actos.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.81
«FAUSTO:  - Mas tu tens dores, tu, que outros atormentas?
MEFIST.     - Dores tão grandes como as almas dos homens.
       Mas diz-me, Fausto, dás-me a tua alma?
       Se ma deres, serei um escravo ao teu serviço,
       E dar-te-ei mais do que o teu engenho saberá pedir.»

Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.55

Secret lives, 1937

   « E Natália esqueceu-se de mim desde então. Eu sei como lhe brilhavam antes os olhos como se fossem charcos alumiados pela lua.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 191

'Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália...'

«Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo: sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam Natália para que o continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 189

Talpa

«Nem depois, nem no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego, andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas sobre a sepultura de Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma lágrima.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187

O homem

«(...) Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite, sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»
   «Não devia tê-los matado a todos», ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais do que os vivos; esmagam-nos. Devia tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse...No fim de contas, é melhor assim: ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem para sair daqui antes que me agarre a noite.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 173
«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não quero regressar.»
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

O homem

«Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que tinha de matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais...No fim de contas, sendo tantos custar-lhes-á menos o enterro.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

sábado, 25 de dezembro de 2010

«Falhada ou triunfante, toda a escrita é um exercício de imortalidade. Mas ninguém sabe o que o perde ou o que o salva.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

«Não sabíamos então que a futura sobrevivência seria também partilhada entre a nostalgia sem redenção da pouca vida humanamente respirável dos nossos jovens anos e a decepção que espera sempre que acordam tarde sobre sonhos precocemente sonhados. É neste lugar de um crepúsculo que se esvai como um rio entre a decepção de outrora carregada de sonho e o sonho de hoje sonhado pela memória dessa decepção que vêm reinscrever-se páginas que porventura melhor conviria deixar no seu tempo próprio, aquele em que a agonia mesma nos sabia a vida.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

[xviii]

em tempo de narcisos ( que sabem
 o sentido da vida é crescer)
esquecendo porquê, recorda como

em tempo de lilases que proclamam
o desígnio da vigília é sonhar,
recorda assim (esquecendo parece)

em tempo de rosas (que assombram
o nosso agora e aqui com o paraíso)
esquecendo se, recorda sim

em tempo de todas as doçuras para além
do que quer que a mente possa entender,
recorda busca (esquecendo acha)

e num mistério a haver
(quando o tempo do tempo nos livrar)
esquecendo-me, recorda-me



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.65

[i]

pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face do outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficaram desamparadamente diante do espírito vozeando;

se assim for, eu digo se assim for...
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Hei-de então voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.25

Smoking in Bed

Na sua introdução aos Collected Poems (1938), o poeta escreve:

« The poems to come are for you and for me and are not
for mostpeople

...You and I are human beings; mostpeople are
snobs.»



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.14

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

«Uma parte da nossa geração não se viveu enquanto se ia vivendo.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'

«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
   Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
 - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
  - Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
    Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
      «Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
    Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145

Sentenças

 “A verdadeira vida é uma enfermidade do espírito”
Novalis

 

 “A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo”
Rimbaud

Cadáver do guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Bolívia, 1967.

“Este é o mundo em que vivemos, banal e delirante, mas onde se torna cada dia mais clara a
necessidade de despertar e cultivar o que há de humano no homem”


 escreve-nos Ferreira Gullar (1989, p.15).

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

«O homem não é senão um navio pesado, um pássaro
pesado, sobre o abismo.»



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 135
*


      Por felicidade, contudo, o que é o ser? - Não há senão maneiras de ser, sucessivas. Há tantas quanto objectos. Tantas quantos os batimentos de pálpebras.
      Tanto quanto, tornando-se nosso regime, um objecto nos concerne, também o nosso olhar o cerca, o discerne. Trata-se, graças aos deuses, de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.
      Sim, só o artista, então, sabe como fazer.
      Deixa do olhar, atira ao alvo.
      O objecto, é certo, acusa o golpe.
      A verdade afasta-se em voo, indemne.
      A metamorfose aconteceu.
    


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 133

domingo, 19 de dezembro de 2010

«Olhas juvenil em tua beleza, e não és inda
Por demais magnífico e orgulhoso;
Bem podias correr, pudesse eu,
Divino Vagabundo, ir contigo! Mas tu sorris»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 139

O SOL FLOR FASTIGADA

TODOS OS DIAS AO CIMO DO MUNDO
EIS QUE SOBE UMA FLOR FASTIGADA.
O SEU ESPLENDOR APAGA O SEU CAULE
QUE VAI TREPANDO POR ENTRE OS DOIS OLHOS
DA DEMASIADA ESTREITA NATUREZA
P'RA LHE DIVIDIR SEPARAR A FRONTE.
A RAIZ 'STA EM NOSSOS CORAÇÕES.

A raiz do que nos deslumbra está nos nossos corações.



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 109
«A sombra tem sempre uma forma, a do corpo que a deita.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 99

In between

O sol colocado em abismo

9

Assim, mergulhado na desordem absurda e de mau gosto do mundo, no caos inaudito das noites, o homem pelo menos conta os sóis.


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 95

O sol colocado em abismo

«O sol anima um mundo que primeiro consagrou à morte: é pois apenas a animação da febre ou da agonia.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 87
«Fugirão como se foge diante da espada, perseguidos
pelo barulho de uma folha que cai, cairão sem ninguém os
perseguir, e tropeçarão uns nos outros como quem foge da
espada, sem que ninguém os persiga.»


(Levítico 26: p. 168)
«Quem matar um animal pagá-lo-á,
e quem matar um homem deverá morrer.»


(Levítico 25: p. 165)

As lâmpadas

«Ordena aos filhos de Israel que te tragam azeite puro,
de azeitonas trituradas, para a luminária, a fim de alimentar
permanentemente as lâmpadas.»


(Levítico 24: p. 164)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Fantasia do Anoitecer

(...)

«Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?

No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece
O mundo áureo; oh! levai-me pra lá,
Nuvens purpúreas! e que lá em cima

Em luz e ar se dissolvem meu amor e dor! -
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro. -

Vem tu agora, sono suave! demasiada cobiça
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice.



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 133/135

Deuses andaram outrora...

Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas
[magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.

Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 119
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