quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

« Falar-te-ei da minha luta, para me sentir aliviado, expulsarei de mim a virtude, o pudor, a verdade, para me sentir aliviado»

«(...) Ouvia, dia e noite, a tua ordem. Esforçava-me, tanto quanto podia, para chegar onde não podia chegar, e se o consegui ou não, só tu mo dirás. Estou diante de ti, e espero.
       Meu general, a batalha está a acabar, presto as minhas contas. Eis onde me bati; fui ferido, senti medo, mas não desertei. Os dentes batiam-me de medo, mas apertava a testa com um lenço vermelho para que se não visse o sangue e partia ao assalto.
       Uma a uma, diante de ti, arrancarei as penas da minha alma, a gralha fúnebre, até que ela já não seja ela, como um pequeno punhado de terra amassada com lágrimas, suor, e sangue. Falar-te-ei da minha luta, para me sentir aliviado, expulsarei de mim a virtude, o pudor, a verdade, para me sentir aliviado.Tal como tu criaste Toledo na tormenta, é assim, carregada de nuvens negras, rodeada de raios amarelos, lutando sem esperança e sem desfalecimento com a luz e as trevas - é assim a minha alma. Vê-la-ás, avaliá-la-ás com o teu olhar penetrante como flechas, e julgá-la-ás. Lembras-te daquelas palavras terríveis que nós, os cretenses, costumamos dizer: «Volta aonde fracassaste; foge do lugar onde venceste!» Se fracassei e me sobrar ainda uma hora de vida, recomeçarei; se venci, abrirei a terra para vir deitar-me ao pé de ti.
       Aqui tens, pois, o meu relato, general, e julga.
       Escuta, Avô, o relato da minha vida; e se na verdade combati contigo, se fui ferido sem que ninguém se apercebesse que sofria, se nunca voltei as costas ao inimigo - dá-me a tua bênção.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 16/7

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