Mostrar mensagens com a etiqueta autores mexicanos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta autores mexicanos. Mostrar todas as mensagens

domingo, 9 de janeiro de 2011

No Camino de Dios ficou o Chihuila

   «Corremos tudo o que podíamos. No Camino de Dios ficou o Chihuila, acaçapado atrás de um medronheiro, com a manta enrolada no pescoço, como se estivesse a defender-se do frio. Ficou a olhar-nos quando corríamos cada um para seu lado para dividirmos a morte. E ele parecia rir-se de nós, com os seus dentes descarnados, coloridos de sangue.
      Aquele desconcerto que nos aconteceu foi bom para muitos; mas a outros correu-lhes mal. Era raro que não víssemos pendurado pelos pés algum dos nossos em qualquer pau de algum caminho. Ali permaneciam até que se faziam velhos e se retorciam como couros para curtir. Os urubus comiam-nos por dentro, tirando-lhe as tripas, até deixar só a casca. E como os penduravam alto, ali estavam eles bamboleando-se ao sopro do ar durante muitos dias, às vezes meses, às vezes já só as tiras penduradas das calças meneando-se ao vento, como se alguém as tivesse posto a secar ali. E uma pessoa sentia que as coisas agora eram a sério, ao ver aquilo.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 220
«Sentíamos  aqueles seus olhos bem abertos, que não dormiam e que estavam acostumados a ver de noite e a conhecer-nos na escuridão.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 218
«Mas nós também lhes tínhamos medo. Era digno de se ver como se nos engasgavam os tomates na garganta só com ouvir o barulho das suas guarnições ou as ferraduras dos seus cavalos a golpearem as pedras de algum caminho, onde os esperávamos para lhes armar alguma emboscada. Ao vê-los passar, quase sentíamos que nos olhavam de esguelha como dizendo: «Já os farejamos, apenas nos estamos a fazer dissimulados.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 214
«Muito antes de chegarmos a San Buenaventura demo-nos conta de que os ranchos estavam a arder. Das tulhas da fazenda alçava-se mais alta a labareda, como se se estivesse a queimar um charco de aguarrás. As faíscas voavam e enroscavam-se na escuridão do céu, formando grandes nuvens alumiadas.
   Continuámos caminhando em frente, encandeados pela luminária de San Buenaventura, como se alguma coisa nos dissesse que o nosso trabalho era estar ali, para acabar com o que restasse.
   Mas ainda não tínhamos conseguido chegar quando encontrámos os primeiros a cavalo, que vinham a trote, com a soga amarrada na cabeça da sela e puxando uns homens com os pés atados que, de vez em quando, até caminhavam sobre as mão, e outros homens aos quais já tinham caído as mãos e que traziam a cabeça dependurada.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 212
«Tencionávamos deixar passar os anos para depois voltar ao mundo, quando já ninguém se lembrasse de nós.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 211

domingo, 26 de dezembro de 2010

   « E Natália esqueceu-se de mim desde então. Eu sei como lhe brilhavam antes os olhos como se fossem charcos alumiados pela lua.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 191

'Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália...'

«Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo: sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam Natália para que o continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 189

Talpa

«Nem depois, nem no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego, andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas sobre a sepultura de Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma lágrima.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187

O homem

«(...) Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite, sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»
   «Não devia tê-los matado a todos», ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais do que os vivos; esmagam-nos. Devia tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse...No fim de contas, é melhor assim: ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem para sair daqui antes que me agarre a noite.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 173
«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não quero regressar.»
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

O homem

«Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que tinha de matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais...No fim de contas, sendo tantos custar-lhes-á menos o enterro.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'

«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
   Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
 - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
  - Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
    Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
      «Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
    Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Em contrapartida...

« Em contrapartida, ela, habituada à liberdade e ao ambiente aberto das feiras, sentia-se abatida na desolação daquela casa imensa, e elanguescia de prostração. Pois Dionizio Pinzón mantinha-a sempre prostrada no canto da sala, onde permanecia noite após noite, presenciando os jogadores, afastada do sol e da luz do dia, pois a partida terminava ao amanhecer e começava ao cair da tarde. Deste modo, escureciam-se-lhe os dias e em vez de respirar ares diferentes, sorvia fumo e vapores alcoólicos.
   Antes de Dionisio Pinzón ter transformado a sua humildade em soberba, ela colocara as suas condições e impusera a sua vontade. Agora, porém, já decaída a sua voz, mortas as suas forças. não lhe restava senão obedecer a uma vontade alheia e esquecer a própria existência.
   - Ouve-me bem, Dionisio - dissera-lhe quando este lhe propusera casamento, - eu estou habituada a que ninguém mande em mim. Por isso escolhi esta vida...e também sou eu quem escolhe os homens que quero e deixo-os quando me dá na gana. Tu és como os outros, nem mais nem menos. Desde já to digo.
    - Está bem, Bernarda, far-se-á aquilo que tu mandares.
    - Isso também não. Aquilo que eu preciso é de um homem. Não da sua protecção, que eu sei proteger-me sozinha; mas, isso sim, que saiba responder por mim e por ele diante de quem for...E que não se espante se eu lhe der má vida.
     Mas na realidade foi ele quem lha deu a ela. Assim que sentiu o poder que o dinheiro lhe dava, o seu carácter  mudou. Subiu de condição e procurou demonstrá-lo em todas as suas relações. E mesmo quando ela lutou por todos os meios que tinha ao seu alcance para não perder a sua liberdade e independência de vida, ao fim e ao cabo não o conseguiu e teve de se submeter. Mas lutou. (...)»
 
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 349

Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer...

«Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer, numa aldeia qualquer, honrando assim a sua promessa de nunca mais se separar dela.
      Ela não queria matrimónio; mas algo no fundo lhe dizia que aquele homem não era como os outros, e movida pela conveniência de se associar a alguém, sobretudo a um fulano como Dionisio Pinzón, cheia de codícia e do qual estava certa que continuaria com ela, a andar de um lado para o outro, enquanto batessem as asas dos seus galos, concordou em casar, pois assim teria, ao menos, em que apoiar a sua solitária vida.
     Aldeias, cidades, ranchos, tudo percorreram. Ela, pelo seu próprio gosto. Ele, movido pela ambição: por um afã ilimitado de acumular riqueza.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 344
Powered By Blogger