sábado, 25 de junho de 2011

A árvore do Curral

        Esta árvore, Platero, esta acácia que eu próprio semeei, verde chama que foi crescendo, Primavera após Primavera, e que agora mesmo nos cobre com a sua abundante e franca folhagem atravessada pelo sol poente, era, enquanto vivi nesta casa, hoje fechada, o melhor suporte para a minha poesia. Qualquer ramo seu, engalanado de esmeralda por Abril ou de ouro por Outubro, me refrescava o rosto, só de olhá-lo um pouco, como a mão mais pura de uma musa. Que delicada, que grácil, que bonita era!
        Hoje, Platero, é senhora de quase todo o curral. Que densa se pôs! Não sei se se lembrará de mim. A mim, parece-me outra. Neste tempo todo em que me tinha esquecido dela, como se não existisse, a Pimavera foi-a moldando, ano após ano, a seu capricho, fora do agrado do meu sentimento.
          Não me diz nada hoje, apesar de ser uma árvore, e uma árvore plantada por mim. Uma árvore qualquer que acariciamos pela primeira vez, enche-nos de sentido o coração, Platero. Uma árvore que amámos tanto, que tão bem conhecemos, não nos diz nada quando a voltamos a ver, Platero. É triste; mas é inútil dizer mais. Não, já não consigo ver, nesta fusão da acácia com o ocaso, a minha lira pendurada. O ramo gracioso já não me traz o verso, nem a iluminação interna da copa o pensamento. E aqui, aonde tantas vezes vim na minha vida, com uma ilusão de solidão musical, fresca e perfumada, sinto-me mal, e tenho frio, e quero ir-me embora, como outrora do casino, da botica ou do teatro, Platero.



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.64

Amizade

   Entendemo-nos bem. Eu deixo-o ir à sua vontade e ele leva-me sempre onde eu quero.
   Platero sabe que, ao chegar ao pinheiro da Coroa, gosto de me aproximar do tronco, acariciá-lo e olhar o céu através da sua enorme e clara copa; sabe que me deleita o caminhito que leva, entre a relva, até à Fonte velha; que é para mim uma festa ver o rio do alto da colina dos pinheiros, evocadora, com seu bosquezinho elevado, de clássicas paragens. Se dormito, confiado, em cima dele, o meu despertar abre-se sempre para um desses amáveis espectáculos.
     Trato Platero como se fosse um menino. Se o caminho se torna fragoso, e lhe custa um pouco, desmonto para aliviá-lo. Beijo-o, engano-o, faço-o afirmar...Percebe bem que o amo e não me guarda rancor. É igual a mim, tão diferente dos outros, que cheguei a pensar que sonha os meus próprios sonhos.
   Platero rendeu-se-me como uma adolescente apaixonada. De nada protesta. Sei que sou a sua felicidade. Até foge dos burros e dos homens....



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.62
« - Platero, não sei se vais ou não perceber o que te digo: mas esse menino tem na sua mão a minha alma.»


Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.61
«(...) a lei é um muro que se dissolve na mais pequena gota de sangue.»



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 94
PRESTIDIGITADOR

Se subires mais um degrau, o homem há-de parecer-te um fio de erva.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 92
ESTUDANTE 4 (Com assombro.)
Mas não te deste conta de que a Julieta que estava no sepulcro era um rapaz disfarçado, um truque do Director, e que a verdadeira Julieta estava amordaçada debaixo dos assentos?

ESTUDANTE 5 (Desatando a rir.)
Pois gostei! Parecia muito bonita, e se era um rapaz disfarçado não me importo nada. E nunca teria ficado com o sapato daquela fulana coberto de pó que gemia como uma gata debaixo das cadeiras.

ESTUDANTE 3
E, no entanto, foi por isso que a mataram.

ESTUDANTE 5
Porque estão loucos. Mas a mim que todos os dias trepo duas vezes à montanha e guardo, depois de acabar as aulas, uma enorme manada de touros, com que tenho de lutar e vencer a cada instante, não me sobra tempo para pensar se é homem ou mulher ou criança, só sei que gosto  com toda a alegria do desejo.

ESTUDANTE 1
Bonito! E se eu me quiser apaixonar por um crocodilo?

ESTUDANTE 5
Apaixonas-te.

ESTUDANTE 1
E se eu me quiser apaixonar por ti?

ESTUDANTE 5 (Atirando-lhe com o sapato.)
Apaixonas-te também, eu deixo, e levo-te em ombros pelos penhascos.

ESTUDANTE 1
E destruímos tudo.

ESTUDANTE 5
Os telhados e as famílias.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 82/3
ESTUDANTE 1

Detestável. Um espectador não deve nunca tomar parte na peça. Quando uma pessoa vai ao aquário não mata as serpentes nem os ratos da água, nem os peixes cobertos de lepra, passa os olhos pelo vidro e aprende.


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 81
NU

Pai, afasta de mim este cálice de amargura.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 70
HOMEM 2
A porta do teatro não se fecha nunca.

JULIETA
Está a chover muito, minha amiga.

(Começa a chover. O homem 3 tira do bolso uma máscara com uma expressão ardente e tapa a cara.)


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 63

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A EXALTAÇÃO DA PELE

Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 69
Só o fruto provado
e a serpente enroscada
na minha solidão.


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 69
Serás a dor que se desloca
no pedido que a boca formula
à voz que na alma canta
e que nunca chega à garganta?



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 48

Fading Away

-''O orgulho só traz desgostos''.
-Não percebi.
-És demasiado orgulhosa. Vais sofrer.



in Film: Coco Avant Chanel
«Sabes a minha mãe foi uma idiota. Casou por amor. Chorou a vida toda. O meu pai enganava-a o tempo todo. Ela ficava para ali, à espera dele... noites inteiras. Uma manhã, ele chegou e...ela lá estava, deitada. Na verdade, estava morta.»


in Film: Coco Avant Chanel
«Sempre soube que nunca viria a ser a mulher fosse de quem fosse. Nem tua. Apenas, por vezes...o esqueço.»


in Film: Coco Avant Chanel

quinta-feira, 23 de junho de 2011

JULIETA

Eu não sou nenhuma escrava para que me cravem estiletes de âmbar nos seios, nem nenhum óraculo para os que tremem de amor à saída das cidades. O meu sonho foi sempre o cheiro da figueira e a cintura do ceifeiro. Ninguém me atravessa! Quem atravessa sou eu!




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 55
JULIETA (Torcendo as mãos.)
Forma e cinza.

CAVALO NEGRO
Sim. Já sabem como degolo as pombas. Quando se diz rocha eu entendo ar. Quando se diz ar eu entendo vazio. Quando se diz vazio eu entendo pomba degolada.»


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 52

The Kiss, 1904

JULIETA
 Cada vez mais gente. Vão acabar por invadir o meu sepulcro e ocupar-me a própria cama. A mim não me interessam nem as discussões sobre o amor nem o teatro. O que eu quero é amar.

CAVALO BRANCO 1 (Aparecendo. Traz uma espada na mão.)
Amar!

JULIETA
Sim. Com amor que dura um só momento.

CAVALO BRANCO 1
Esperei-te no jardim.

JULIETA
Queres dizer no sepulcro.

CAVALO BRANCO 1
Continuas tão louca como sempre. Julieta, quando poderás dar-te conta da perfeição de um dia? Um dia com manhã e com tarde.

JULIETA
E com noite.

CAVALO BRANCO 1
A noite não é o dia. E num dia poderás despir a angústia e afastar as impassíveis paredes de mármore.

JULIETA
Como?

CAVALO BRANCO 1
Sobe para a minha garupa.

JULIETA
Para quê?

CAVALO BRANCO 1 (Aproximando-se.)
Para te levar.

JULIETA
Para onde?

CAVALO BRANCO 1
Para o escuro. No escuro há ramas suaves. O cemitério de asas tem mil superfícies de espessura.

JULIETA (Tremendo.)
E lá, o que me vais dar?

CAVALO BRANCO 1
Vou dar-te o mais calado do escuro.

JULIETA
O dia?

CAVALO BRANCO 1
O musgo sem luz. O tacto que devora pequenos mundos com as pontas dos dedos.

JULIETA
E eras tu quem ia mostrar-me a perfeição de um dia?

CAVALO BRANCO 1
Para te levar para a noite.

JULIETA (Furiosa.)
E que tenho eu a ver com a noite, cavalo idiota? Que tenho eu a aprender com as suas nuvens ou com os seus bêbados? Vou precisar de veneno dos ratos para me ver livre dos maçadores. Mas eu não quero matar os ratos. Trazem-me pianinhos e pincelinhos de verniz.

CAVALO BRANCO 1
Julieta, a noite não é um monumento, mas um monumento pode durar toda a noite.

JULIETA (Chorando.)
Chega. Não te quero ouvir mais. Para que queres levar-me? É o engano a palavra de amor, o espelho quebrado, o passo na água. Depois deixavas-me no sepulcro outra vez, como todos fazem quando tratam de convencer quem os ouve de que o verdadeiro amor é impossível. Já estou cansada e levanto-me a pedir auxílio para escorraçar do meu sepulcro todos os que teorizam sobre o meu coração e todos os que me abrem a boca com pequenas pinças de mármore.

CAVALO BRANCO 1
O dia é um fantasma que se senta.

JULIETA
Mas eu conheci mulheres mortas pelo sol.

CAVALO BRANCO 1
Entende bem um só dia para amares todas as noites.


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 47-49

XIV

    Andam palavras na noite
Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.

Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 48

do dever de deslumbrar

A inútil tragédia da vida
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.

As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.

Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 37/8

quarta-feira, 22 de junho de 2011

The Maypole (1899)


HOMEM 2

  Esqueceste-te de que sou forte quando quero. Era eu menino e já jungia os bois do meu pai. Tenho os ossos cobertos de minúsculas orquídeas, mas tenho uma capa de músculos que utilizo quando quero.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 46
FIGURA DE PARRAS
    Toma um machado e corta-me as pernas. Deixa que venham os insectos da ruína e vai-te. Porque te desprezo. Queria que me talhasses até ao fundo. Cuspo-te.


FUGURA DE GUIZOS
  Queres? Adeus. Ainda bem. Se for andando pelas ruínas hei-de encontrar amor e mais amor.



FIGURA DE PARRAS (Angustiado.)
Onde vais? Onde vais?


FIGURA DE GUIZOS
Não queres que eu vá?



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 30
FIGURA DE GUIZOS  (Tremente.)
E se eu me transformasse em peixe-lua?


FIGURA DE PARRAS (Levantando-se.)
Eu transformava-me em faca. Numa faca afiada durante quatro longas primaveras.



FIGURA DE GUIZOS
  Leva-me ao banho e afoga-me. Será a única maneira de me poderes ver nu. Pensas que tenho medo do sangue? Sei como dominar-te. Julgas que não te conheço? Dominar-te tanto, que se eu dissesse «Se eu me transformasse em peixe-lua?», tu respondias-me «Eu transformava-me numa bolsa de ovas pequeninas.»




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.29
FIGURA DE PARRAS

  Sigo-te quando rondas a cama e as coisas da casa, mas não te sigo para os sítios para onde tu, subtilmente, queres levar-me. Se tu te transformasses em peixe-lua, eu abria-te com uma faca, porque sou um homem, porque nada mais sou do que isso, um homem, mais homem que Adão, e quero que tu sejas ainda mais homem do que eu. Tão homem que as ramas se calem quando passares. Mas tu não és um homem. Se eu não tivesse esta flauta tu fugias para a lua, para a lua coberta de paninhos com rendas e gotas de sangue de mulher.




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.28

O Demónio

    De súbito, como um firme e solitário trote, duplamente sujo numa alta nuvem de pó, pela esquina do Trasmuro, aparece o burro. Um momento depois, ofegantes, puxando as calças andrajosas caídas, que lhes deixam ao léu as barrigas escuras, os garotos atiram-lhe paus e pedras...
    É preto, grande, velho, ossudo - outro arcipestre -, tanto, que parece que a pele sem pêlo em todo o lado se vai esburacar. Estaca e, mostrando uns dentes amarelos como grandes favas, zurra ferozmente para o ar com uma energia que não se enquadra com a sua desgraciosa velhice...É um burro perdido? Não o conheces, Platero? Que quererá? De quem virá ele a fugir, com aquele trote desigual e violento?
    Ao vê-lo, Platero faz um corno, primeiro, com as duas orelhas numa única ponta; depois, deixa uma em pé e a outra caída; e vem para o pé de mim, e quer esconder-se na valeta, e fugir - tudo ao mesmo tempo. O burro preto passa ao lado dele, dá-lhe um encontrão, puxa-lhe a albarda, cheira-o, zurra contra o muro do convento e vai-se embora, trotando, Transmuro abaixo...
    ...É, no calor, um momento estranho de arrepio - meu, de Platero? - em que as coisas parecem transtornadas, como se a sombra baixa de um pano negro diante do sol ocultasse, subitamente, a solidão deslumbrante do cotovelo da viela, onde o ar, subitamente quieto, asfixia...Pouco a pouco, a vida distante faz-nos voltar ao real. Ouve-se, lá em cima, a vozearia incerta da praça do peixe, onde os vendedores que acabam de chegar da Ribeira apregoam as suas azevias, os seus salmonentes, as suas bogas, o seu goraz, os seus caranguejos; o dobrar do sino, que anuncia o sermão da manhã; a gaia do amolador...
   Platero treme ainda, de vez em quando, olhando-me, amedrontado, na quietude muda em que ficámos os dois, sem saber porquê...
   - Platero, a mim parece-me que esse burro não é um burro...
   E Platero, mudo, treme de novo todo ele num só tremor, brandamente ruidoso, e olha, desconfiado, para a valeta, carrancudo e cabisbaixo.



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 48/9
«- Alma minha, lírio na sombra! - disse.
E pensei, de repente, em Platero, que, embora por baixo de mim, como se fosse o meu corpo, eu esquecera.»



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 38

Paisagem escarlate

   O cume. Aí está o ocaso todo empurpurado, ferido pelos seus próprios cristais, que lhe fazem sangue em toda a parte. Perante o seu esplendor, o pinhal verde exacerba-se, vagamente afogueado; e as ervas e as florzinhas, incendiadas e transparentes, embalsamam o instante sereno de uma essência molhada, penetrante e luminosa.
   Eu fico extasiado no crepúsculo. Platero, com os seus olhos negros, escarlates de ocaso, vai, manso, a um charco de águas carmesim, cor-de-rosa, violeta; mergulha suavemente a boca nos espelhos, que parece tornarem-se líquidos quando os toca; e há pela sua enorme garganta como que um passar profuso de sombrias águas de sangue.
   O lugar é conhecido, mas o momento transforma-o e fá-lo estranho, desolado e monumental. Dir-se-ia, a cada instante, que vamos descobrir um palácio abandonado...A tarde prolonga-se para além de si mesma, e a hora, contagiada de eternidade, é infinita, pacífica, insondável...
    -Vamos, Platero...


Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 34
Pilar de fogo esculpido em triste espera
   HELENA


  Podias continuar a bater cem anos que eu não acreditava em ti. (O homem 3 dirige-se a Helena e aperta-lhe os pulsos.) Podias continuar a esmagar-me os dedos cem anos e não me havias de fazer soltar um único gemido.

HOMEM 3

Veremos quem pode mais!

HELENA

Eu e sempre eu.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.24/5
HOMEM 3

Porque apareceste, Helena? Porque apareceste se não me vais amar?



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.23

HOMEM 1 (Lentamente)

   Vou ter que dar um tiro em mim próprio, para inaugurar o verdadeiro teatro, o teatro debaixo da areia.


DIRECTOR

Gonçalo


HOMEM 1

Como?...

(Pausa)


DIRECTOR (Reagindo)


   Mas não posso. Seria a ruína. Seria deixar cegos os meus filhos e depois que faço com o público?
   Que faço com o público se tiro o parapeito da ponte? A máscara viria devorar-me. Vi uma vez um homem devorado pela máscara. Os jovens mais fortes da cidade, com lanças ensanguentadas, metiam-lhe pelo traseiro grandes bolas de jornais deitados fora, e na América houve uma vez um rapaz a quem a máscara enforcou pendurado pelos próprios intestinos.


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.19

terça-feira, 21 de junho de 2011

«Creio que existem em cada vida períodos em que um homem existe realmente, e outros em que não é mais que um aglomerado de responsabilidades, de fadigas e, para as cabeças fracas, de vaidade.»



Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 120
«Naturezas como Conrad são frágeis, e nunca se sentem melhor do que no interior duma armadura. Abandonadas ao mundo, às mulheres, aos negócios, aos êxitos fáceis, a sua dissolução sorrateira fez-me sempre pensar no repugnante emurchecer dos lírios, essas sombrias flores com forma de ponta de lança cuja viscosa agonia contrasta com a consumação heróica das rosas.»



Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 116

Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos.

    «Movido pela ridícula necessidade de clareza dum cérebro ainda não adulto, continuava a perguntar a mim próprio se amava aquela mulher. Além de que faltava até agora a esta paixão a prova de que os menos  grosseiros de nós se servem para autenticar o amor, e sabe Deus o rancor que eu tinha a Sofia pelas minhas próprias hesitações. Mas o que fazia a desgraça desta rapariga abandonada a todos era que não se podia pensar em comprometermo-nos para com ela que não fosse para a vida inteira. Numa época em que todos desertam, dizia a mim mesmo que ao menos aquela mulher seria sólida como a terra, sobre a qual podemos construir ou deitarmo-nos. Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos.»



Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 91

    «Além disso, a minha Sofia era tímida - o que explicava os seus acessos de coragem. Era demasiado jovem para ter ideia que a existência não é feita de arrebatamentos súbitos e de obstinada constância, mas de compromissos e de esquecimentos. Deste ponto de vista, ela teria ficado sempre muito jovem, mesmo que morresse aos sessenta anos.»

(...)

   «Tinha sofrido porque o amor se não erguera ainda sobre a paisagem da sua vida, e esta falta de luz aumentava a aspereza dos maus caminhos que o acaso dos tempos a fizera trilhar. Agora que ela amava, desfazia-se uma por uma das suas últimas hesitações, com a simplicidade dum viandante enregelado que despe ao sol a roupa encharcada, e apresentava-se diante de mim nua como mulher alguma o esteve. E talvez que, tendo horrivelmente esgotado duma só vez todos os seus terrores e resistências contra o homem, não pudesse ela oferecer doravante ao seu primeiro amor senão a encantadora graça dum fruto que se propõe igualmente à boca e à faca.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 59

«(...); pode-se confiar no fogo, desde que se saiba que a sua lei é morrer ou queimar.»

Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 57
    «Éramos ambos demasiado jovens para sermos inteiramente simples, mas havia em Sofia uma rectidão desconcertante que multiplicava as probabilidades de errar.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 55

(como eu compreendo o pobre Piskariov...)


   «Oh, era demais!, já se tornava impossível de suportar. Piskariov precipitou-se para fora, de cabeça e sentidos vazios. Turvou-se-lhe a mente: sem atentar no caminho, sem tino, sem ver, sem ouvir, vagueou todo o dia. Ninguém sabe se dormiu ou não dormiu em qualquer sítio; só no dia seguinte o instinto cego o levou ao seu apartamento, pálido, com um aspecto medonho, o cabelo desgranhado, sinais de loucura no rosto. Fechou-se no quarto, sem deixar entrar ninguém, sem pedir nada. Quatro dias se passaram e o quarto fechado nenhuma vez se abriu; ao cabo de uma semana, o quarto continuava fechado. Chamaram por ele à porta, mas não houve resposta; por fim, arrombaram-na e encontraram o seu cadáver com a garganta cortada. A lâmina ensaguentada estava no chão. Pelos braços convulsamente abertos e pela cara terrivelmente desfigurada podia concluir-se que a sua mão fora certeira e que sofreu ainda muito antes de a sua alma pecadora lhe abandonar o corp
    Assim pareceu, vítima de louca paixão, o pobre Piskariov, quedo, tímido, modesto, ingénuo como um menino, que transportava em si a chispa do talento que talvez, com o correr do tempo, viesse a atear um fogo grande e brilhante. Ninguém chorou a sua morte; ninguém estava ao lado do seu corpo inanimado para além da figura vulgar do chefe de esquadra do bairro e do indiferente médico municipal. Levaram o caixão despercebidamente, sem ao menos as cerimónias religiosas, para o cemitério de Okhta; atrás do féretro apenas um guarda-soldado chorava, e mesmo esse porque bebera uma garrafa de vodca a mais.»


Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 50/1

Durante semanas...

   «Durante semanas, Sofia passou por todas as angústias das apaixonadas que se julgam incompreendidas, e se exasperam com isso; depois, irritada por aquilo que tomava por falta de inteligência minha, cansou-se duma situação em que só se comprazem os corações romanescos, coisa que esta rapariga, tanto quanto uma faca, estava bem longe de ser. Recebi confissões que se supunham completas, e que eram sublimes de subentendidos.»



Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 54

«Porque é que as mulheres se apaixonam precisamente pelos homens que lhes não estão destinados, não lhes deixando, assim, outra escolha que não seja desnaturarem-se ou odiá-las?»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 51
«O ar de enfado de Sofia ia desaparecendo a pouco e pouco, sem nada lhe roubar da sua graça bravia e esquiva, como aquelas regiões que conservam uma aspereza invernal mesmo quando volta a Primavera.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 48

heroína ibseniana desgostada de tudo

  «O seu rosto tristonho apresentava uma ruga amarga na comissura dos lábios; deixara de ler, e passava agora os serões a remexer furiosamente nas brasas do fogão da sala, suspirando ao mesmo tempo de tédio como uma heroína ibseniana desgostada de tudo.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 45

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Che Guevara


     Estou velha, cansada, sem retorno. A morte, por certo, chegar-me-á tarde. Mas, é bem verdade, como dizes, estrela eterna: «E, comecei a morrer muito antes de ter vivido.».
     Dou por mim, com uma dor que dói em toda a parte, em todo o corpo, sem dela conseguir arrancar lágrimas. Pairas sobre o meu sangue como uma sombra, uma sombra que concede aos lábios um amargo reprimir. Insónias, noite após noite, cavando, bem fundo, um vazio temerário. Guia-me, somente, o peso duma mão sobre o ombro e, nela, sei que tenho que suportar o continuar do caminho. Ardem-te tão duramente os olhos e, o fogo parece extinguir-se, a pouco e pouco, num pálido sopro, na vela...

A amizade

  «A amizade é, acima de tudo, certeza - é isso o que a distingue do amor. É também respeito, e aceitação total dum outro ser. Que o meu amigo me tenha reembolsado até ao último soldo as somas de estima e de confiança que eu registara sob o seu nome, foi o que ele me provou com a sua morte.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 43
  «Atingia-se aquela hora de lusco-fusco em que os mais sensíveis fazem confidências, em que os criminosos confessam, em que mesmo os mais silenciosos lutam contra o sono à força de histórias e  de recordações


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 33

«O que faz falta à minha felicidade é saber usar dela com parcimónia.»

Telémaco
   

   «Os sonhos acabaram por se tornar a vida dele e, desde então, a sua existência tomou um rumo estranho; pode dizer-se que dormia acordado e estava de vigília no sono. Se alguém o visse sentado em silêncio diante da mesa vazia, ou a andar pela rua, decerto o tomaria por um sonâmbulo, ou por um indivíduo destruído pelas bebidas fortes; o seu olhar estava privado de sentido, a sua distracção natural ampliou-se e, autoritariamente, expulsava da cara todos os sentimentos e movimentos. Apenas se animava com a chegada da noite.»


Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 45

Penn Station, New York City, 1948.

A senhora

«A senhora passou o olhar em volta de todo o círculo de pessoas que ansiavam por atrair a sua atenção, mas logo o desviou, cansada e desatenta, e cruzou os olhos com os de Piskariov. Oh, que céu!, que paraíso!, dá-me forças, Criador, para o suportar!, pois isto não caberá na vida, destruirá, arrebatará a minha alma! Ela fez-lhe sinal, mas não com o gesto de mão ou um aceno de cabeça, não: o sinal relanceou pelos seus olhos demolidores, tão fino e imperceptível que ninguém o pôde ver, tirando Piskariov, que o viu e compreendeu.»




Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 41
«Aquela miscelânea incrível de rostos deixou-o completamente aturdido; parecia-lhe que um demónio qualquer esmigalhara todo o mundo reduzindo-o a mil fragmentos variados e que, depois, misturara sem critério e sem ordem todos esses fragmentos.»




Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 38
«Ficou-lhe retida no peito a respiração, tudo nele se converteu num tremor indefinido, todos os seus sentidos ardiam em fogo, tudo diante dele se vestiu de um nevoeiro.»



Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 32

American Woman in Italy (1951)

«O inimigo externo poderia ser esmagado, mas o interno - é impossível de vencer, disse um antigo filósofo chinês. No seu rosto apareceu um sorriso amargo.»



Miyamoto Masao. Da arte e da morte. Tradução de Manuel Seabra. Editorial Futura, Lisboa, 1ª edição, 1973, p.157
«Aqui é a primeira estação do inferno e nada te pode ajudar (...).»


Miyamoto Masao. Da arte e da morte. Tradução de Manuel Seabra. Editorial Futura, Lisboa, 1ª edição, 1973, p.134

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Novembro

Quando o esbirro se aborrece, torna-se perigoso.
O céu constrói-se, em chamas.
Sinais de pancadas ouvem-se de cela em cela.
E do solo, coberto de neve, o espaço jorra.
Algumas pedras brilham como luas cheias.

Tomas Tranströmer

Histórias de Marinheiros

Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.

Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, más ténues que fumo de cachimbo.

(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.

Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).

(1954)


Tomas Tranströmer

A Culpa é Sentirmo-nos Culpados

« A culpa é sentirmo-nos culpados, e não um resultado dos crimes cometidos; o ser inocente é alegre, feliz, e não deixa, seja em que caso for, que os acontecimentos perturbem a sua calma e a sua paz. É por isso que considero que a justiça erra quando executa os menos em vez dos mais culpados, quer dizer quando executa os criminosos e não aqueles que sentem que têm no coração a culpa do mundo. Isso equivale a executar crianças por acções que cometeram no escuro quando ignoravam tudo acerca do escuro e das reacções que provoca no funcionamento dos corpos. Uma vez que são culpados apenas os que se sentem culpados, seria necessário suprimir a justiça distribuitiva de castigos e substituí-la por uma justiça executora, porque ao fim de algum tempo aquele que a culpa mortifica já só aspira a morrer, a morrer pelas faltas do mundo como pelas suas próprias faltas, e pode sem a mínima hesitação, sim, sem a menor angústia de morte, uma vez que nada tem a esperar agora que tocou finalmente o fundo do mundo, pedir à justiça a sua pena de morte - e nunca outra cabeça se curvará mais graciosamente do que a sua por baixo da guilhotina, nunca colar algum terá acariciado a garganta de uma mulher com tanta delicadeza como a da corda ao aflorar-lhe o pescoço.»


Stig Dagerman, in "A Ilha dos Condenados"

O Medo como Orientador da Nossa Vida

      Uma vez que estamos sós no mundo, ou pelo menos não tão sós como gostaríamos de estar, temos o dever de dominar as nossas explosões, de fazer com que as explosões inevitáveis da nossa maldade ou da nossa bondade paradoxais vão aproximativamente no sentido do fim aproximativo. Quanto ao fim, talvez não seja lá muito importante determiná-lo com a precisão sádica que encontramos no sistema do mundo e no destino quando ambos se associam para determinar a posição do homem no espaço e no tempo.
       Devemos evidentemente batermo-nos contra os dois, e como o mais importante é manter a direcção justa do fim talvez errado, é-nos necessário aguçar a nossa lucidez a fim de a tornarmos cortante como uma lâmina, acerada como uma seta, percuciente como uma punção. É graças a essa lucidez que funciona a nossa consciência, que não passa afinal de uma transcrição idílica do nosso medo, porque o medo lembra-nos infatigavelmente a direcção justa, e se sufocarmos o nosso medo, perderemos a possibilidade de nos orientarmos numa direcção determinada e daremos aqui e ali lugar a uma série de estúpidas explosões privadas, causando os piores estragos para um mínimo de resultados. É por isso que devemos conservar dentro de nós o nosso medo como um porto sempre livre de gelos que nos ajude a passar o Inverno, e também como uma corrente submarina vibrando por baixo da superfície gelada dos rios.



Stig Dagerman, in 'A Ilha dos Condenados'

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Rodin. 1902.

    «Nunca esquecerei, Platero, aquela noite de Setembro. A trovoada palpitava sobre a aldeia havia uma hora, como um coração doente, descarregando água e pedra entre a desesperadora insistência do relâmpago e do trovão.»


Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 32

terça-feira, 14 de junho de 2011

ANGELUS!

  Olha, Platero, quantas rosas caem por todo o lado: rosas azuis, cor-de-rosa, brancas, sem cor...Dir-se-ia que o céu se desfaz em rosas. Olha como se enchem de rosas o rosto, os ombros, as mãos...Que farei com tantas rosas?
    Saberás por acaso de onde vem esta branca flora, que eu não sei de onde é. que enternece em cada dia a paisagem e a deixa docemente rosada, branca e azul - mais rosas, mais rosas -, como um quadro de Fra Angelico, o que pintava o céu de joelhos?
    Dir-se-ia que das sete galerias do Paraíso lançam rosas para a terra. Como um nevão ténue e vagamente colorido, ficam as rosas na torre, no telhado, nas árvores. Vê: tudo o que é forte se torna, com seu adorno, delicado. Mais rosas, mais rosas, mais rosas...
    Parece, Platero, enquanto soam as Ave-Marias, que esta nossa vida perde a sua força quotidiana, e que outra força de dentro, mais elevada, mais constante e mais pura, faz com que tudo, como em repuxos de graça, suba às estrelas, que se acendem já entre as rosas...Mais rosas...Os teus olhos, que tu não vês, Platero, e que ergues mansamente para o céu, são duas belas rosas.



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 23

«Há grandes raivas feitas de cansaços.»

Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 50
«Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?»


Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 44

CLEARY NON-CAMPOS!

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido,
Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
      Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
      Nem o último, e acabam.


Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 40
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.


Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 36

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!



Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 26

segunda-feira, 13 de junho de 2011

4.

Não devo atrever-me a defender os meus depravados costumes
    e a terçar falsas armas em defesa dos meus vícios.
Confesso - se alguma utilidade tem confessar os pecados;
   mas logo depois de confessar, caio, de cabeça perdida, nos meus erros.
Odeio e não sou capaz de não desejar o que odeio.
   Pobre de ti! Aquilo que porfias por deixar, quão penoso é carregá-lo!
Faltam-me forças e poder para me governar a mim mesmo;
   sou arrastado, como proa baldeada pela força das ondas.
Não é uma beleza, em especial, que estimula o meu amor;
   cem são as razões para eu estar, sempre, a amar:
se há uma que baixa os olhos com recato,
   deixo-me inflamar, e aquele pudor é para mim cilada;
se há outra que é provocante, sou cativado por não ser simplória
   e por me dar esperança de ser bem viva na doçura do leito;
se me pareceu agreste e a imitar as severas Sabinas,
   ela quer, mas, na sua sobranceria, finge, eis o que eu penso;
se és culta, agradas-me pelos teus dotes - tão raros - para as artes;
   se és rude, agradas-me pela tua própria simplicidade.
 Há uma que afirma que, ao pé dos meus, são toscos os versos
   de Calímaco?Pois se lhe agrado, de pronto ela me agrada;
há, também, a que me condena, como poeta, e condena os meus versos;
   e eu desejaria suportar o peso das coxas daquela que me condena.
Uma caminha com elegância - o seu movimento cativa-me; outra é bronca
- mas poderia tornar-se bem mais elegante no contacto com um homem.
Esta, porque canta com doçura e com ligeireza faz evoluir a sua voz,
    quereria eu dar beijos arrebatados àquela que está a cantar;
estoutra percorre, com a agilidade do polegar, as queixosas cordas,
    tão sabedoras mãos, quem não seria capaz de as amar?
Aquela tem um rosto aprazível e faz mil movimentos com os seus longos
                                                                                                                braços
    e com a elegância e arte bamboleia o peito delicado;
para não falar de mim mesmo, que me deixo tocar por qualquer motivo,
   coloca ali Hipólito: tornar-se-ia um outro Priapo.
Tu, por seres tão alongada, emparceiras com as antigas heroínas
   e és capaz, com o teu corpo, de ocupar o leito inteiro;
esta é elegante na sua pequenez: por uma e outra sou arrebatado;
   ambas, a alta e a pequena, caem bem ao meu desejo.
Não é elegante - e vem-me à ideia que elegância poderia acrescentar-se-lhe;
   está cheia de enfeites - que ela mostre as suas próprias prendas.
A alvura da sua pele há-de seduzir-me, há-de seduzir-me a mulher bem rosada;
   e até com cores baças é prazenteiro o amor;
se tombam, de uma fronte branca como a neve, cabelos negros,
    Leda fazia-se admirar pela sua negra cabeleira;
se são ruivos, a Aurora era aprazível pelos seus cabelos cor de açafrão.
   A todas as histórias o meu amor é capaz de adaptar-se.
Uma idade jovem seduz-me, uma idade mais madura toca-me;
   aquela por ter mais beleza de corpo, esta por possuir sabedoria.
Enfim, as mulheres que podem apreciar-se em toda a cidade de Roma,
   a todas elas pode o meu amor abranger.»




Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 70/1

« - Só se calam e gostam da solidão, as pessoas muito orgulhosas, continuou Niúta tirando-lhe a mão da testa. Porque me olha assim por baixo das sobrancelhas? Olhe-me de frente, por favor! Vamos, não seja grosseiro!»




Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Volódia (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 191

A mulher do farmacêutico

  «Que infeliz eu sou» disse consigo a mulher do farmacêutico, olhando com cólera para o marido que se despia a toda a pressa, para se tornar a meter na cama. «Oh! Como eu sou infeliz!» repetiu ela, começando subitamente a chorar... «E ninguém o sabe...»




Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 184
«-Não gosto de ouvir tolices...
«-Que tolices?...Pelo contrário, não é nenhuma tolice...até Shakespeare disse: Feliz daquele que foi jovem na mocidade.»


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 182
«De repente, por trás dos longínquos caniçados, emerge inesperadamente uma lua de larga cara. Era vermelha (geralmente a lua, quando emerge de trás das sebes parece que vem corada).


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 176

sábado, 11 de junho de 2011

«Oh, quantas vezes, diante de alguém que te admira os cabelos, hás-de corar
      e dizer: ''agora, é graças a mercadoria comprada que me elogiam;
não sei que sicambra está este, agora, a gabar, em vez de mim;
      mas lembro-me bem de como era assim a minha falam.''
Pobre de mim! A custo sustém as lágrimas e, com a mão, protege
      o rosto, a face altiva corada de vermelho;
segura no regaço os cabelos de outrora e contempla-os.
     Triste sorte! Não eram eles merecedores de estar naquele lugar!
Repõe, com as forças do rosto, as do coração! É dano que podes reparar;
     em breve, hás-de ser contemplada com os teus cabelos naturais.»




Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 59
«foram feitos por tua mão e tua culpa os prejuízos que padeces;
     tu mesmo servias à tua cabeça uma mistura de veneno.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 59
« Agora, todo o medo se desvaneceu, no meu coração está sarada a loucura,
     e essa beleza não cativa já os meus olhos.
Porque assim mudei? - perguntas. Porque reclamas uma paga;
     esse motivo não consente que possas dar-me prazer.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 52

BORBOLETAS BRANCAS

       A noite cai, brumosa já e arroxeada. Vagas claridades rosadas e verdes demoram-se atrás da igreja. O caminho sobe, cheio de sombras, de campainhas, de fragância de erva, de canções, de cansaço e de ânsia. De súbito, um homem escuro, com um gorro e um aguilhão, avermelha um instante a sua cara feia com a luz de um cigarro, desce até nós de um casebre miserável, perdido entre sacos de carvão. Platero assusta-se.
       - Nada a declarar?
       - Veja o senhor...Borboletas brancas...
      O homem quer cravar o aguilhão de ferro na ceirazita e não o impeço. Abro o alforge e ele não vê nada. E o alimento ideal passa, livre e cândido, sem pagar o seu dízimo...




Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 14

PLATERO

      Platero é pequeno, peludo, suave; tão brando por
fora que se diria todo de algodão, que não tem
ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são
duros como dois escravelhos de cristal negro
     Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia debil-
mente com o seu focinhito, roçando-as apenas, as flor-
zinhas cor-de-rosa, azuis e amarelas...Chamo-o
docemente: ''Platero!'', e vem ter comigo num trote-
zinho alegre que parece rir-se, com não sei que som
de guizos ideal...
      Come tudo o que lhe dou. Gosta das laranjas, das
tangerinas, das uvas moscatel, todas de âmbar, dos
figos arroxeados, com a sua cristalina gotinha de
mel...
     É terno e mimoso como um menino, como uma
menina...; mais forte e seco por dentro, como de
pedra. Quando passo em cima dele, aos domingos,
pelas últimas ruelas da aldeia, os homens do campo,
vestidos de lavado e vagarosos, ficam a olhá-lo: -
Tem aço...
   Tem aço. Aço e prata de lua, ao mesmo tempo.



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 13

Eu agora já envelheci

   «Eu agora já envelheci, tornei-me silencioso, rude, severo. Raras vezes rio, e dizem que me pareço com Redka. Como ele, aborreço os operários com os meus sermões inúteis.»



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 169

sexta-feira, 10 de junho de 2011

«Quem, a não ser o soldado ou o amante, suportará o frio da noite
      e nevões misturados com densas chuvadas?»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 50
«Que os deuses te não dêem lar algum, que te dêem uma velhice indigente
    e longas invernias e sede por todo o sempre!»


Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 49
«a beleza, se fechares as portas, acaba por envelhecer, se não for cultivada.»


Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 47

Ela corou

«Ela corou. 'Fica bem o pudor à candura do rosto, mas apenas
      se o fingires te será útil; quando autêntico, costuma ser nefasto.
Quando baixares o olhar com recato e contemplares o teu regaço,
     à medida do que te trouxer, assim deves pôr o olhar em cada homem.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 47

NA MORTE DE CRISTO, CONTRA A NATUREZA DO CORAÇÃO DO HOMEM

      Porque derrama noite o sentimento
por todo o cerco desta chama pura,
e amortecido o sol em sombra escura
dá lágrimas ao fogo e voz ao vento;
       porque da morte o negro encerramento
descobre com tremor a sepultura,
e o monte, que separa da planura
o mar vizinho, divide-se atento,
      de pedra é, homem duro, de diamante
teu coração, pois morte tão severa
não afoga com pranto teu semblante.
      Mas de pedra não é. Sendo-o, qual cera,
de compaixão por ver a Deus amante,
ao rolar entre as pedras se rompera.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.75
«Bebeu a sede nos regatos puros;»




Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.67
     «Não me calo, por mais que com o dedo,
tocando tua boca ou sobre a fronte
silêncio imponhas ou ameaces medo.
       Não há-de haver um espírito valente?
Há-de sempre sentir-se o que se disse?
Nunca se há-de dizer o que se sente?»


Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.63

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Figure Studies, 1895

«Dizem que a mulher é uma ajuda para o marido. Mas terei eu necessidade de ajuda? Ajudo-me a mim mesmo. Sinto muito mais a necessidade de alguém com quem falar, e que não dissesse apenas: ó-ó-ó-ó; de alguém que falasse com raciocínio e entendesse o que se lhe diz. Que é a vida sem uma boa conversa?»


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 122/123

Na vida conjugal não há só alegrias

«Na vida conjugal não há só alegrias; também há sofrimentos. Tem que ser assim.»


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 100

A arte de escravizar

«A escravatura desapareceu mas o sistema capitalista progride. Nesta época de ideias liberais, como nos tempos de Bety, a maioria alimenta-se, veste-se e defende-se, e a minoria, continua cheia de fome, maltrapilha e sem defesa. Um tal estado de coisas só é bom para favorecer todas as correntes, porque a arte de escravizar é também progressivamente cultivada. Já não chicoteamos os criados nas estrebarias, mas damos formas refinadas à escravatura ou pelo menos sabemos achar uma desculpa para cada caso particular.»



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 59

Estranha rapariga! pensei. Estranha rapariga!

  «Na sua alegria de agora havia qualquer coisa infantil e ingénua, como se a alegria que desde a nossa infância nos tinha sido reprimida e extinta por uma educação severa, acordasse subitamente na sua alma e achasse meio de se libertar.
    Mas quando a noite veio e mandaram vir a carruagem, minha irmã acalmou, encarquilhou-se de novo, e quando se sentou nas almofadas parecia sentar-se no banco dos réus. Partiram. O ruído afastou-se...
     Aniuta Blagovo não me dissera uma só palavra.
      - Estranha rapariga! pensei. Estranha rapariga!
     Veio a quaresma de São Pedro, durante a qual estivemos sempre em jejum. Ocioso, sem ocupação certa. esmagava-me uma tristeza física. Descontente comigo, desleixado, faminto, vagueava pela propriedade, esperando apenas uma disposição de espírito que me permitisse partir.»



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.43/4
MENIPO

    Que amor é esse da morte que se apoderou de ti, de uma coisa que a maioria não ama?



Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 87

Helena

HERMES

   Este crânio aqui é Helena.


MENIPO

    E então, foi por isto que milhares de navios se encheram de homens vindos de toda a Hélade e que tantos caíram, Gregos e Bárbaros, e tantas cidades destruídas!


HERMES

    Mas não viste, ó Ménipo, a mulher viva, porque terias dito, também tu, que era desculpável «por tal mulher sofrer dores por muito tempo», visto como até as flores, quando secas, se alguém as olhar acreditará naturalmente que não têm beleza. Mas quando elas estão em floração e têm as suas cores, são lindíssimas.

MENIPO

   Portanto, aquilo que me surpreende, ó Hermes, é que os Aqueus não tivessem compreendido que sofriam por uma coisa tão efémera e que tão facilmente perde a flor.


HERMES

    Não tenho vagar para filosofar contigo, ó Menipo. E, assim, escolhe o lugar, onde quiseres, deita-te e fica estendido. Eu, por mim, vou imediatamente ao encontro dos outros mortos.




Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 68/9

quarta-feira, 8 de junho de 2011

dizia-se que, não podendo resistir àquele divertimento, tinham enlouquecido.

«O combóio» reunia-se ordinariamente junto das tabernas e no mercado. Bebia, comia, praguejava porcamente e, à passagem das mulheres de porte duvidoso, lançava assobios agudos. Os nossos vendeiros, para distraírem aquela canalha, obrigavam os cães e os gatos a beberem vodka, ou amarravam uma lata de petróleo vazia ao rabo dum cão para depois o açularem. O cão desatava a correr pela rua fora, arrastando a lata, e a ganir de medo, julgando-se perseguido por um monstro; corria pela cidade, pelos campos, até parar completamente exausto. Havia na cidade alguns cães que estavam sempre a tremer, com o rabo metido entre as pernas: dizia-se que, não podendo resistir àquele divertimento, tinham enlouquecido.»



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.26

terça-feira, 7 de junho de 2011

«Os ulmeiros, cobertos de orvalho, enchiam o espaço dum perfume suave. Sentia-me triste; não queria abandonar a cidade...Amava a minha terra! Parecia-me tão bela e tão terna! Gostava da sua verdura, das manhãs soalheiras e calmas, do repicar dos sinos; mas as pessoas com quem convivia na cidade eram-me estranhas, aborreciam-me, chegavam a ser-me repelentes. Não gostava delas nem as entendia. Não era capaz de compreender de que e porque viviam aqueles sessenta e cinco mil homens.»



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.26

sábado, 4 de junho de 2011

XVII MENIPO E TÂNTALO

MENIPO

   Porque choras, ó Tântalo? ou porque te lamentas, de pé, à beira do lago?


TÂNTALO

  Porque, ó Menipo, morro de sede.


MENIPO

  És assim tão preguiçoso que te não abaixas para beber, ou então, por Zeus, para recolher a água na concha da mão?

TÂNTALO
 
   Isso de nada me valeria, se eu me abaixasse, porque a água foge, sempre que me sente aproximar. E se alguma vez a recolho e aproximo dos lábios, não humedeço suficientemente depressa a ponta dos lábios que, escapando-se por entre os dedos, não sei como, ela me não deixe de novo a mão seca.

MENIPO

  É extraordinário o que te acontece, ó Tântalo. Todavia, diz-me cá: porque é que ainda tens a necessidade de beber? Na verdade, não tens corpo, mas está sepultado algures na Lídia aquilo que justamente podia ter fome e ter sede, mas tu, que és alma, como é que ainda podes ter sede?

TÂNTALO

  Isso é exactamente o meu castigo, ter a alma sede como se fosse corpo.



Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 66
DIÓGENES


  «Mas sabes o que hás-de fazer? Vou dar-te um remédio para a tua tristeza. Visto que o eléboro não cresce aqui, ao menos procura a água do Letes e bebe à boca cheia e volta a beber e faz isso muitas vezes. Assim cessarás de aborrecer-te com os bens de Aristóteles.»




Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 57

O heléboro


 
 
 
«Não te fazem sofrer estas coisas, quando te vêm à memória? Porque choras, ó palerma? Não foi isto que o sábio Aristóteles te ensinou, a saber, não acreditar que são estáveis as coisas dependentes da sorte?»



Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 57

«Sinto-me envergonhado de meus anos
a que pudera dar um melhor uso,
buscando a paz e não seguindo enganos.»


Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.49
 «Como de entre meus dedos tu resvalas!
Minha idade, como és fugidia!»


Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.45

Arrependimento e lágrimas devidas ao engano da vida

     Foge sem perceber-se, lento, o dia,
e a hora secreta e recatada
silenciosa chega e, maltratada,
leva consigo a minha louçania.
     A vida nova, que em infância ardia,
a juventude forte e enganada,
no derradeiro inverno sepultada,
jazem em negra sombra e neve fria.
    Não senti resvalar, mudos, os anos;
hoje choro-os passados, bem os vejo
rir-se de minhas lágrimas e danos.
    O meu remorso deva a meu desejo,
pois devem-me a vida os meus enganos,
não creio nem na dor em que latejo.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.33

sexta-feira, 3 de junho de 2011

domingo, 29 de maio de 2011

MENIPO


    Um filósofo, ó Hermes, ou antes, um impostor, pleno de
charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas
coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

HERMES

  Põe de parte a postura, em primeiro lugar, de depois tudo
isso mais! Ó Zéus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta
cretinice e chicanice e gloríola e as perguntas insolúveis e os
discursos espinhosos e as conjecturas intrincadas. E ainda a
grande quantidade de esforço vão e a tagarelice não pequena e
as ninharias e a pequenez de espírito,e, por Zeus, todo esse ouro
que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo
sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por muito
bem que o escondas. Deita fora também a mentira, a  presunção
e o acreditar que és melhor do que os outros, porque se embarcares
com tudo isso, qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?


Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 43/4
HERMES

  E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança
também tudo isso fora!

LAMPICO

Vê lá, estou despido.




Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 42
HERMES


   Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo
aqui dentro, elas farão peso no barco.



Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 41

''In hoc signo vinces''

 "Sob este símbolo vencerás"
CNÉMON

Isto é o que diz o provérbio: o veado caçou o leão.


Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 34

''Io! Foi por um homem valente que uma mulher foi vencida!''

«Caminhe adiante a cativa, triste e de cabelos desgrenhados,
     toda ela resplandecente de brancura, se o consentissem as faces magoadas.
Teria sido bem melhor que estivesse lívida de sinais deixados pelos lábios,
    e que no colo delicado mostrasse marcas dos dentes.
Enfim, se eu estava a deixar-me levar à maneira de uma torrente impetuosa,
    e uma raiva cega me tinha feito presa sua,
não teria bastante praguejar contra uma mulher assustada
    e gritar ameaças bem cruéis
ou mandar-lhe abaixo a túnica, à bruta, do cimo do rosto
   até meio corpo? No meio, a cintura, havia de trazer-lhe ajuda.
Mas não me contive e arrepanhei-lhe os cabelos da testa
   e, com crueldade, marquei-lhe, com as unhas, as faces delicadas.
Ela para ali ficou, desvairada e sem pinga de sangue na palidez do rosto,
   qual pedaço de mármore caído das colinas de Paros;
o corpo inanimado e os membros a tremer, eis o que eu vi,
   tal como a brisa agita a folhagem do choupo,
tal como é sacudido pelo sopro leve do Zéfiro o vime frágil
    ou o cimo da onda é golpeado à passagem morna do Noto.
Largo tempo contidas, começaram as lágrimas a deslizar-lhe pelo rosto,
    como de um manto de neve escorre a água.
Então, comecei eu, primeiro, a sentir-me culpado;
    eram sangue meu as lágrimas que ela derramava.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 45
«(...); não receio sombras, que esvoaçam pela
                                                                noite,
    não receio mãos estendidas para minha perdição;
é a ti, por seres teimoso demais, que eu receio, só a ti quero amansar;
   és tu quem possui o raio com que podes levar-me à perdição.
Vê bem (e, para veres, dá meia folga ao portal)
   como está encharcada a porta com minhas lágrimas.»


Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 41

sábado, 28 de maio de 2011

Significa-se a própria brevidade da vida sem pensar e com padecer, assaltada pela morte

    Foi sonho ontem; será amanhã terra;
pouco antes, nada; pouco depois, fumo;
e destino ambições, até presumo
um só momento o cerco que me encerra.
     Breve combate de importuna guerra,
pr'a defender-me, sou perigo sumo;
quando com minhas armas me consumo,
menos me hospeda o corpo, que me enterra.
     Foi-se o ontem; amanhã é esperado;
hoje passa, e é, e foi com movimento
que me conduz à morte despenhado.
     Enxadas são a hora e o momento;
pagas por minha pena e meu cuidado,
cavam em meu viver meu monumento.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.33
«palavras, hás-de lê-las nos dedos, palavras escritas com vinho puro.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 37

sexta-feira, 27 de maio de 2011

(...)


«Mesmo então, não poucos, se bem te conheço, vais inflamar,
      mesmo então, ao passar, muitas serão as feridas que vais fazer;
não são capazes de descansar, ainda que tu mesmo o queiras, as tuas setas;
o ardor da chama é nefasto a quem lhe está próximo, com o seu bafo.
Assim era Baco, quando dominou as terras do Ganges;
    tu és penoso com os teus pássaros, ele foi-o com seus tigres.
Já que eu posso, portanto, ser parte do teu sagrado triunfo,
    poupa-te e não gastes em mim as tuas forças de vencedor;
contempla os exércitos venturosos do César, teu parente;
    por onde alcançou vitórias, os vencidos ele os protege com sua mão.



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 35
"Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas duramos."

(Padre António Vieira)
« Eu mesmo, a tua presa mais recente, hei-de padecer da ferida sofrida há
                                                                                                           pouco
e suportar no coração cativo novos grilhões.



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 34
Não me falem mais sobre a justiça, porque ela já não se encontra nos homens.

É a minha convicção, de quem tudo fez e, colheu os amargos frutos.

Na antecâmara dos Amores

 «Mas o que é, afinal, o amor para este homem, versejador fácil e amante confesso e compulsivo? Uma espécie de divertimento? A busca do prazer? O culto reiterado do sexo? Um estranho caldear de emoções e afectos?
   E o que significará, para ele, a mulher? O outro parceiro de uma relação a dois? O segundo elemento de uma partilha? O simples objecto do prazer? Um alvo ou uma vítima da perversão masculina? Um mero instrumento da satisfação dos desejos do homem?
    E de que se tece a relação a dois, pois que de relação a dois se trata? Da espontaneidade de sentimentos? Da explosão do desejo e dos sentidos? Do engano? Da lealdade? Da traição? De sementes de um projecto? De jogos de sedução? De arranjos tácticos e ocasionais?
   E qual o ideal de parceiro na relação amorosa? A mulher? O homem? Com um padrão de beleza? Com um perfil de carácter?»


Introdução Carlos Ascenso André



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 9

quarta-feira, 25 de maio de 2011

«Meu caro! Que seria a vida sem esperança? Uma Faísca que salta do carvão e se apaga; e não seríamos nós como uma rajada de vento, que se ouve em estação inóspita, e que por um momento assobia para depois deixar de se ouvir?»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 39

André Ivanoff

«Sofria duma espécie de apatia e, pelo outono e pela primavera, dizia-se sempre que estava às portas da morte. Mas depois de permanecer deitado algum tempo, levantava-se e dizia espantado, logo a seguir: «Ora esta, ainda não morri!»


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.19/20

terça-feira, 24 de maio de 2011

    O director disse-me:
    -Só continua a ser meu funcionário por causa da estima que tenho pelo seu excelente pai. Se não fosse isso já o tinha feito voar há muito pelos ares fora.
    Respondi-lhe:
     -Vossa Excelência lisonjeia-me, senhor director, supondo que eu possa voar pelos ares fora.
    Ouvi-o acrescentar:
     - Ponham lá fora este senhor; mexe-me com os nervos-
    Dois dias mais tarde fui despedido.



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938

quinta-feira, 19 de maio de 2011

The Song of the Lily, 1897

XVII

O dolce sonno
Ingannala ancora tu,
un poco.
Consuma queste ultime ore,
e, inavvertito,
falle valicare la soglia.



Pier Paolo Pasolini
Bisogna bruciare per arrivare
consumati all’ ultimo fuoco.


Pier Paolo Pasolini
Una furiosa luna sulle zolle

Non arate, le secche impalcature,
spande fuoco. Tanto più folle
quanto più calmo il passo mi conduce
verso angoscie che furono pure.


Pier Paolo Pasolini
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