segunda-feira, 21 de julho de 2014

"Da águia diz-se que nunca tem tanta fome que não deixe parte da sua presa às aves que andam à sua volta; as quais, não se podendo alimentar por si, é necessário que sejam cortejadoras dessa águia, porque assim se nutrem."...


 Leonardo Da Vinci. Bestiário, Fábulas e Outros Escritos.
 

domingo, 20 de julho de 2014

MANUEL DA SILVA
 
   Tinha-se-te metido na cabeça que, se fechasses os olhos, nunca mais os poderia abrir e, durante dezassete dias e dezassete noites, ninguém teve um momento de sossego nesta casa.
 
LEONOR
 
  E afinal, graças a Deus, tens adormecido e acordado centenas de vezes desde então ... (Um pequeno silêncio.)
 
 
Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 39
MANUEL SILVA
 
   A tua mãe adorava-te, estava sempre a temer que um sopro te levasse...Quando eras pequeno, tinhas um feitio infeliz... Não sabias brincar como as outras crianças e choravas em silêncio, como um homem. Foi tudo isto, com certeza, que a inquietou e lhe deu ideias absurdas...No fundo, creio que tinha pena de ti por ver que sofrias, como ela, dum excesso de sensibilidade. Como vês, nada disto tem a mínima importância.
 
 
Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 38/9

Fritz Kahn (1888–1968)

 

«A tua única doença é a imaginação. Essa é que precisa de regime e de médico assistente...»

Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 37
«...És por natureza um nevropata, um exaltado, e a verdade é que fazes tudo para agravar esta característica do teu temperamento.»


Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 13

«Sou caprichosa, exigente, inadaptável;»

Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 25
ISABEL

   Enganas-te: ficou também um certo cansaço, um certo mal-estar, que, apesar de tudo, nos separa. Estou farta de combater eternamente os seus demónios, aquele gosto do sofrimento que é para ele uma espécie de segunda natureza. Tu bem sabes que detesto complicações, que só tenho uma ambição na vida: ser feliz, viver simplesmente, sem histórias, sem dramas. Ele, pelo contrário, adora a tragédia, as discussões inúteis, as reconciliações momentâneas que não remedeiam nada. Ah, Clara, estou farta, farta!




Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 15

ISABEL

  Pois bem, seja! Aliás, o que tenho a dizer-te é muito simples: o teu irmão está doido, completamente doido!

CLARA

Isso já nós sabemos há muito. E depois?

ISABEL

Depois?! Achas que é pouco?!

CLARA

 A loucura dele é mansa...No fundo, não é capaz de fazer mal a uma mosca


Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 13

''Vai formosa, e não segura.''

«Maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!»


Roi Fernandez de Santiago

sobre Eugénio de Andrade


«(...), viveu sempre extremamente distanciado do que se chama vida social, literária ou mundana, avesso à comunicação social, arredado de encontros, colóquios, congressos, etc., e as suas raras aparições em público devem-se a ''essa debilidade do coração, que é a amizade''.»

''da catadupa verbal''

Romance de Peter Handke: ''Die Stunde da Wir nichts voneinander wussten (A hora em que não sabíamos nada uns dos outros.)

Romance de Peter Handke: ''Der Kurze Brief zum langen Abschied (Uma Breve Carta para um Longo Adeus), 1972

escrita rilkiana

«O teatro de Handke sempre teve mais ligações com os modelos estruturais e as obsessões temáticas da sua prosa do que com a tradição (ou as tradições) do teatro.»


João Barrento. O arco da palavra. Peter Handke, dramaturgo. in A Palavra Transversal. Literatura e Ideias no Século XX. Lisboa, Livros Cotovia, 1996

quinta-feira, 17 de julho de 2014


Solidão

Solidão de quem tremeu
A tentação do céu
E dos encantos, o que o céu me deu
Serei bem eu
Sob este véu de pranto


Sem saber se choro algum pecado
A tremer, imploro o céu fechado
Triste amor, o amor de alguém
Quando outro amor se tem
Abandonado, e não me abandonei
Por mim, ninguém
Já se detém na estrada

Grito



Silêncio!
Do silêncio faço um grito
O corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco.

De sombra a sombra
Há um Céu...tão recolhido...
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido.

Ao céu!
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais
Quando se vive atrás dela.

E eu,
A quem o céu esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora.

Solidão!
Que nem mesmo essa é inteira...
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura.

Ai, solidão
Quem fora escorpião
Ai! solidão
E se mordera a cabeça!

Adeus
Já fui para além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada a uma parede.

Adeus,
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai, como dói
A solidão quase loucura.

segunda-feira, 14 de julho de 2014



Entra Helena.

Os olhos traz ela doentes de amor; ...e agora o noto.



William Shakespeare. Bem está o que bem acaba. Tradução directa da edição de Collins por Henrique Braga. Lello&Irmão, Porto., p. 33
BOBO

Profeta é que eu sou, senhora, e digo as verdades pelo caminho mais curto»



William Shakespeare. Bem está o que bem acaba. Tradução directa da edição de Collins por Henrique Braga. Lello&Irmão, Porto., p. 20

PAROLLES
 
 «Contra isso pouco se pode dizer; em todo o caso, é contrário às leis da natureza. Defender a virgindade é acusar as vossas mães - o que é desobediência declarada. Aquele que se enforca a si mesmo, é virgem: a virgindade assassina-o; devia ser enterrado nas entranhas públicas, fora de todo o recinto sacrificado, como terrível criminoso contra a natureza. A virgindade gera bichos, muito semelhante ao queijo; consome-se até à côdea, e morre devorando as próprias entranhas. Além disso, a virgindade é impertinente, orgulhosa, preguiçosa, toda ela amor-próprio, que é o pecado mais proibido pela doutrina. Não a conserveis; se lhe dais a preferência, é uma perda certa: fora com ela! dentro de dez anos ter-vos-á produzido dez outras virgindades, o que já é um bonito rendimento; e o próprio capital não estará por isso pior; fora pois com ela!»
 


William Shakespeare. Bem está o que bem acaba. Tradução directa da edição de Collins por Henrique Braga. Lello&Irmão, Porto., p. 17

CONDESSA

Ao ver meu filho desprender-se de mim, enterro um segundo marido.


William Shakespeare. Bem está o que bem acaba. Tradução directa da edição de Collins por Henrique Braga. Lello&Irmão, Porto., p. 9

«Peto, cheio de arrogância, ignorava os perigos e os obstáculos que o rodeavam; tinha a louca presunção dos impotentes.»



Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 114

''vãs especulações e as discussões estéreis não eram alimento suficiente para esses homens de acção''

Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 108
«Um traço característico desta singular fisionomia é que Nero não via bem a não ser ao perto e piscando os olhos. Quando ia ao circo presidir aos jogos, servia-se de uma esmeralda para ver os combates dos gladiadores. Todas as vezes que Nero presidia aos jogos do circo, servia-se de uma destas pedras preciosas como de um espelho, para poupar a vista do sangue que lhe causava horror e para poupar os seus olhos.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 105
«Foi depois de ter empregado inutilmente os meios aconselhados pelos curiões que Nero desceu aos mistérios da magia para se subtrair às obsessões que perturbavam as suas noites. Esforços inúteis: os terrores e os remorsos incessantes foram o suplício de toda a sua vida.»



Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 88
 
«A avareza, a ambição, o amor da guerra que não tinham contrariado esses bons impulsos, não opuseram obstáculo ao lado mau;  e o ódio veio, por sua vez, reinar na sua alma tão absolutamente quanto outrora a bondade tinha dominado. Vencido pelo mal como o tinha sido pelo bem, Nero foi o pior dos homens depois de ter nascido o melhor e as suas paixões levaram-no longe, tão facilmente se deixava arrastar, que tudo se tornou uma fatalidade, até mesmo o assassínio da mãe.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 87

«As mulheres - diz tácito - convencem-se facilmente com o que as lisonjeia.»

«Nero, que não queria ser um tirano, tomou precauções para chegar até Popeia, recorreu a atenções, quase organizou uma conspiração. A Sálvio Otão, seu amigo, foi pedida a intervenção neste assunto delicado, sem escândalo e sem barulho. Logo que Popeia se viu requestada pelo príncipe, serviu-se de todos os seus artifícios para desenvolver essa paixão nascente. Primeiramente, fingiu uma emoção misturada com surpresa, era a perturbação e o espanto de uma mulher surpreendida por um amor involuntário; não quer voltar a encontrar-se diante Nero; se o volta a ver está perdida. Desde esse momento, afectou evitar a sua presença, mesmo em público. Depois de muitas hesitações, muitas recusas e muitas premeditadas imprudências, voltaram a encontrar-se por fim e, desta vez, a palidez e as lágrimas de Popeia provaram a Nero o amor violento de que era alvo.»
 


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 71
«Perguntamos a nós próprios a razão porque Nero, que tinha amado Acteia tão apaixonadamente ao ponto de querer colocá-la no trono, foi tão violentamente arrastado para Popeia, que ocupou então o primeiro lugar no seu coração. Por muito generosa que fosse a paixão de Nero por Acteia, por mais sólida que fosse a teia de ideias e de sentimento desse amor, depois de ter arrastado as discórdias de Agripina e de seu filho, o envenenamento de Britânico e as desordens para as quais os amigos arrastavam o Jovem César, o retalho de púrpura não era mais do que um farrapo. Junto de Popeia, Nero vai sofrer a servidão dos sentidos e conhecer a fatalidade das paixões.»
 

Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 70/71

What Can I Do For You? by Bob Dylan

I know all about poison, I know all about fiery darts
I don’t care how rough the road is, show me where it starts
Whatever pleases You, tell it to my heart
Well, I don’t deserve it but I sure did make it through
What can I do for You?


(...)
omnia mutantur, nihil interit: errat et illinc / huc venit, hinc illuc, et quoslibet occupat artus / spiritus eque feris humana in corpora transit / inque feras noster, nec tempore deperit ullo, / utque novis facilis signatur cera figuris / nec manet ut fuerat nec formam servat eandem, / sed tamen ipsa eadem est, animam sic semper eandem / esse, sed in varias doceo migrare figuras. / ergo, ne pietas sit victa cupidine ventris, / parcite, vaticinor, cognatas caede nefanda / exturbare animas, nec sanguine sanguis alatur!

Tudo se transforma, nada morre. O espírito vagueia e anda / daqui para ali, dali para aqui, e invade um corpo, qualquer / que ele seja, e dos animais, e em instante algum perece. / Tal como a dúctil cera se molda sempre em novas figuras, / E não permanece como era, nem conserva as mesmas formas, / E, no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma, / (...) mas transmigra para uma variedade de formas.

Ovídio, Metamorfoses, XV, vv. 165-173 (trad. P. F. Alberto, Lisboa, Cotovia, 2010, p. 369).






José Luís NETO, "Caderno de imagens",
da série JULY 1984 [#2-3] (2010)

1. Il y a des images, les choses mêmes sont des images, parce que les images ne sont pas dans la tête, dans le cerveau. C'est au contraire le cerveau qui est une image parmi d'autres. Les images ne cessent pas d'agir et de réagir les unes sur les autres, de produire et de consommer. (...)

 2. Mais les images ont aussi un dedans ou certaines images ont un dedans et s'éprouvent du dedans. Ce sont des sujets. Il y a en effet un écart entre l'action subie par ces images et la réaction exécutée. C'est cet écart qui leur donne le pouvoir de stocker d'autres images, c'est-à-dire de percevoir. Mais ce qu'elles stockent, c'est seulement ce qui les intéressedans les autres images: percevoir c'est soustraire de l'image ce qui ne nous intéresse pas, il y a un toujours moins dans notre perception. (...)

Gilles Deleuze, «Trois questions sur Six fois deux (Godard)», in Pourparlers, Minuit, Paris, 1990, p. 62.

1. Há imagens, as próprias coisas são imagens, porque as imagens não existem na cabeça, no cérebro. Bem pelo contrário, é o cérebro que constitui uma imagem, entre as demais. As imagens não cessam de agir e de reagir umas sobre as outras, de produzir e de consumir.
(...)


 2. Mas as imagens têm ainda um interior, ou algumas imagens têm um interior que e experimentam-se a partir deste. São sujeitos. Com efeito, há um hiato entre a acção infligida e a reacção. É este hiato que lhes confere o poder de armazenar outras imagens, ou seja, de percepcionar-receber. Mas o que elas armazenam, é apenas o que nas outras imagens lhes interessa: percepcionar-receber, é substrair à imagem o que não nos interessa, há sempre menos na nossa percepção. (...)

 

«Mas, num ímpeto, ela puxou-lhe a espingarda das mãos. E, antes que ele pudesse tomar consciência do que se passava, um estampido vermelho reboou na serenidade da manhã e a burra oscilou sobre o piso orvalhado. A burra fez ainda um esforço para erguer as patas traseiras, mas, gemebunda, logo voltou a cair sobre os joelhos. Um dos seus olhos estava estilhaçado e dele corria uma nódoa quente no chão da courela. A nódoa foi alastrando, abrindo nervuras na terra negra. Já não era sangue da besta. Era a courela que gemia um suor de agonia, um suor de sangue. E nem um vento áspero, esse vento emigrado das montanhas do Norte, faltou ali para lhe enrugar a superfície viscosa e coagulada.»



Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 246
«Vieirinha já não o escutava: fechara-se em melancolia. A sua face era a de um velho. Estava exausto e ausente como um velho. Mas as suas palavras reboavam ainda nos ouvidos do Loas, atiravam-no para um abismo de problemas. Lutar consigo. As palavras do Vieirinha avolumavam-se, inchavam, começando a afogueá-lo. Mas, por obscuras que parecessem, essas palavras representavam uma lúcida revelação.»
 

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 231
« - Um homem deve fazer perguntas, compadre. Um homem não deve consentir que outro qualquer, homem ou Diabo, lhe deixe a boca fechada.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 225

mastigando as lágrimas

«Bem o sabia. E, mastigando as lágrimas, para que elas não fossem  explodir, pôs-se a pensar na terra como se nada mais lhe restasse, como se a sua terra fosse apenas cor, folhas, árvores, e a nostalgia do passado apenas a saudade de um bosque, a nostalgia de uma cor.»



Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 224

É p'ra amanha

É p'ra amanha
Bem podias fazer hoje
Porque amanhã sei que voltas a adiar
E tu bem sabes como o tempo foge
Mas nada fazes para o agarrar

Foi mais um dia e tu nada fizeste
Um dia a mais tu pensas que não faz mal
Vem outro dia e tudo se repete
E vais deixando ficar tudo igual

É p'ra amanha
Bem podias viver hoje
Porque amanhã quem sabe se vais cá estar
Ai tu bem sabes como a vida foge
Mesmo que penses que esta p'ra durar

Foi mais um dia e tu nada viveste
Deixas passar os dias sempre iguais
Quando pensares no tempo que perdeste
Entao tu queres mas é tarde demais

É p'ra amanha
Deixa lá não facas hoje
Porque amanhã tudo se há-de arranjar
Ai tu bem sabes que o trabalho foge
Mesmo de quem diz que quer trabalhar

Eu sei que tu andas a procurar
Esse lugar que acerte bem contigo
Do que aparece nao consegues gostar
E do que gostas já está preenchido

Canção do engate

Tu estás livre e eu estou livre
E há uma noite para passar
Porque não vamos unidos
Porque não vamos ficar
Na aventura dos sentidos

Tu estás só e eu mais só estou
Que tu tens o meu olhar
Tens a minha mão aberta
À espera de se fechar
Nessa tua mão deserta

Vem que o amor
Não é o tempo
Nem é o tempo
Que o faz
Vem que o amor
É o momento
Em que eu me dou
Em que te dás
Tu que buscas companhia
E eu que busco quem quiser
Ser o fim desta energia
Ser um corpo de prazer
Ser o fim de mais um dia

Tu continuas à espera
Do melhor que já não vem
E a esperança fio encontrada
Antes de ti por alguém
E eu sou melhor que nada

Refrão (3x)

Adeus que me vou embora

Adeus que me vou embora
Adeus que me vou embora

Adeus que me embora vou
Adeus que me embora vou

Vou daqui para a minha terra
Vou daqui para a minha terra

que eu desta terra não sou
que eu desta terra não sou

Tenho minha mãe à espera
Tenho minha mãe à espera

Cansada de me esperar
Cansada de me esperar

Naquela encosta da serra
Naquela encosta da serra

A teia

Tenho maneira de te convencer
Tenho modo e jeito para te prender
Tenho maneira de te convencer
Tenho modo e jeito para te prender

Vais perder a confiança
Vais perder a segurança
Que tu tens em ti
Olha bem p'ra mim
Não podes fugir
Não podes fugir
Não vais conseguir
Não vais resistir
Começa a sorrir
Tu estás dentro da minha teia
De onde não podes fugir, não
De onde não podes fugir, não
«Poeira, secura, solidão. E por toda a parte o odor quente do trigo, espesso e lascivo, fundindo-se com o mofo daquelas terras onde os restolhos apodreciam até que o arado, na próxima sementeira, os sepultasse no subsolo. E também os pensamentos mergulhavam nesse charco, sem que um vendaval, chuva, serras, árvores, vento, os revolvesse e tornasse límpidos. Joana, fugindo da charneca, fugindo do trigo, fugia dos seus pensamentos estagnados.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 221
Oh, where have you been, my blue-eyed son?
Oh, where have you been, my darling young one?
I’ve stumbled on the side of twelve misty mountains
I’ve walked and I’ve crawled on six crooked highways
I’ve stepped in the middle of seven sad forests
I’ve been out in front of a dozen dead oceans
I’ve been ten thousand miles in the mouth of a graveyard
And it’s a hard, and it’s a hard, it’s a hard, and it’s a hard
And it’s a hard rain’s a-gonna fall


Oh, what did you see, my blue-eyed son?
Oh, what did you see, my darling young one?
I saw a newborn baby with wild wolves all around it
I saw a highway of diamonds with nobody on it
I saw a black branch with blood that kept drippin’
I saw a room full of men with their hammers a-bleedin’
I saw a white ladder all covered with water
I saw ten thousand talkers whose tongues were all broken
I saw guns and sharp swords in the hands of young children
And it’s a hard, and it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
And it’s a hard rain’s a-gonna fall

And what did you hear, my blue-eyed son?
And what did you hear, my darling young one?
I heard the sound of a thunder, it roared out a warnin’
Heard the roar of a wave that could drown the whole world
Heard one hundred drummers whose hands were a-blazin’
Heard ten thousand whisperin’ and nobody listenin’
Heard one person starve, I heard many people laughin’
Heard the song of a poet who died in the gutter
Heard the sound of a clown who cried in the alley
And it’s a hard, and it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
And it’s a hard rain’s a-gonna fall


Oh, who did you meet, my blue-eyed son?
Who did you meet, my darling young one?
I met a young child beside a dead pony
I met a white man who walked a black dog
I met a young woman whose body was burning
I met a young girl, she gave me a rainbow
I met one man who was wounded in love
I met another man who was wounded with hatred
And it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
It’s a hard rain’s a-gonna fall


Oh, what’ll you do now, my blue-eyed son?
Oh, what’ll you do now, my darling young one?
I’m a-goin’ back out ’fore the rain starts a-fallin’
I’ll walk to the depths of the deepest black forest
Where the people are many and their hands are all empty
Where the pellets of poison are flooding their waters
Where the home in the valley meets the damp dirty prison
Where the executioner’s face is always well hidden
Where hunger is ugly, where souls are forgotten
Where black is the color, where none is the number
And I’ll tell it and think it and speak it and breathe it
And reflect it from the mountain so all souls can see it
Then I’ll stand on the ocean until I start sinkin’
But I’ll know my song well before I start singin’
And it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
It’s a hard rain’s a-gonna fall

Edinburgh Girl in dark dress, 1958.


«Levantou-se subitamente, com os olhos orvalhados, e escondeu-se em casa para chorar à vontade.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 204
«E apetecia-lhe estoirar o cérebro e ao carne de encontro às pedras, às árvores, aos astros, de encontro a alguma coisa, ainda não identificada, onde se devia acoitar o responsável da sua desgraça. Loas semicerrou os olhos a esse pensamento capcioso, lento, terrível. Todo ele se encolheu, de pêlos eriçados, como um bicho à espreita do assalto de outro bicho. Que sentia no seu cérebro? Sonho, génio, loucura - apenas tragédia? Havia nele uma zona obscura e esquiva, que afinal temia explorar, um inacessível inferno donde brotavam lavas, clarões fugazes, iluminando-lhe o pensamento para o logo escurecer. Donde partira a sua desgraça?»



Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 198
«Depois dos dias incertos de Outono, nuvens esparsas correram de todos os lados do horizonte, fechando o céu num cinzento pesado e definitivo - e, então, a chuva persistiu durante semanas. Às vezes diminuía para ser apenas nevoeiro, uma poalha húmida, outras vezes corria torrencialmente, arrasando as belgas. Nas madrugadas, a geada encaramelava os alqueives e Barbaças era dos que iam apanhar as lebres na cama, atordoadas da invernia.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 187
«Manhã cedo, Loas encaminhou-se para o interior da charneca, lá onde os montados areentos, às vezes com a giesta da altura de um homem, isolavam os casais do resto do mundo. Quem sabe se o albardeiro se teria ali refugiado? Os camponeses ficavam a meia porta, ou no escuro dos postigos, assim que o Loas, no seu passo irritadiço, desafiando os ladros dos cães, lhes surgia por entre os silvados. Um albardeiro? Sim, andara por aí um homem com uma albarda às costas, mostrando-a a toda a gente, mas não tinha cara de ladrão.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 183
«As árvores já húmidas do Outono friorento balouçavam docemente no entardecer, pelas folhas corria um frémito que os ouvidos percebiam como um arrepio. Loas abria as narinas e esse aroma de erva molhada, de seiva que brotava da terra. A terra exalava a plenitude de um ventre fecundado.»
 

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 182

Surreal Self-Portrait Photography by Noell S. Oszvald


niquento

1. Que se ocupa de ninharias.
2. Que não se contenta facilmente.
3. Que se ofende facilmente. = MELINDROSO
«Loas parecia satisfeito, mas logo os seus olhos claros procuraram a inspiração das distâncias. As pessoas da courela tinham razões para temer esse olhar que se estendia pela charneca, que ultrapassava a charneca, que fugia das coisas próximas e concretas, perdendo-se num mundo interdito.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 181
«Por essa altura vieram as primeiras chuvas. Inopinadamente, no céu liso, formavam-se nuvens espessas, acastelando-se umas sobre as outras, e logo a trovoada se desfazia com a rapidez que começara. Na terra ardente, as grossas gotas de chuva deixavam cicatrizes, com o cheiro de carne queimada. »

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 173

A luz começava a envelhecer

«A luz começava a envelhecer. Casas, árvores, nuvens, desagregavam-se numa melancólica paisagem de Outono, que trazia a doçura e serenidade, mas que também se carregava do sombrio presságio de quando os dias estão prestes a morrer.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 169/170

«Que precisava um homem para ser feliz? A vila estava pejada de homens que nasciam e morriam de mãos vazias e de outros que nasciam e morriam num permanente fastio de já nada terem para desejar.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 158

domingo, 13 de julho de 2014

«Bakhtine intervém na questão em que se debate a delimitação entre as ciências naturais e as ciências humanas com várias teses fundamentais: para ele, o que é essencial no homem enquanto «objecto» das ciências humanas é o facto de o homem ser um ser-que-fala («parlêtre» dirá Lacan). Porque as ciências humanas não estudam tudo o que diz respeito ao homem, mas apenas aquilo que no homem existe de especificamente humano
 
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 243
«Chaque personne qui nous fait soffrir peut être rattachée par nous à une divinité dont elle n'est qu'un reflet fragmentaure et le dernier degré, divinité dont la cintemplation en tant qu'idée nous donne aussitôt de la joie au lieu de la peine que nous avions. Tout l'art de vivre, c'est de nous servir des personnes qui nous font souffrir comme d'un degré permettant d'accéder à sa forme divine et de pleurer ainsi journellement notre vie de divinités».

Rohmer

HEAD Fritz Kahn (1888–1968)


incomodidade

Le Temps Retrouvé

''espaço de perturbação e prazer''

Rohmer

re-produz

A crítica portuguesa

«(...) a crítica portuguesa é quase inteiramente feita de opiniões, isto é, de atribuição de pontuações, que os críticos depois fundamentam em textos de maior ou menor envergadura, mas estas opiniões desenvolvidas, e por vezes sustentadas nalguma erudição cinéfila ou nalgum humor mais ou menos corrosivo, raramente ultrapassam o plano da mera opinião e conseguem ser interpretações do filme capazes de acrescentar alguma coisa à literatura do espectador. Isto é, quase nada se aprende ao ler a crítica portuguesa.»
 
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 224

«(...) cada ser está bem na sua própria pele, mas a pele é aqui uma superfície libidinal sem fim onde nomes e rostos se esbatem.»
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 205

glass lady

«(...) mas é de Shakespeare que vem a lição de uma loucura que se apossa das pessoas e faz sobrepor a dança do desejo à estabilidade do amor.»
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 205
«There's a hole Were you're supposed to be
There's nobody lying next to me dear Yoko»



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.191
«(...)


Não tenhas medo de ir ao inferno e voltar
Não tenhas medo de ir ao inferno e voltar
Não tenhas medo de ter medo.»


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.189

Myrdrith 1931


«People asking questions lost in confusion
Well I tell them there's no problema, only solutions
Well they shake their heads and look at me as if I've lost my mind
I tell them there's no hurry...
I'm just sitting here doing time»


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.183

KISS KISS KISS

Kiss kiss kiss kiss me love
Just one kissm kiss will do
Kiss kiss kiss kiss me love
Just one kiss, kiss will do

Why death
Why life
Warm hearts Cold darts

Kiss kiss kiss kiss me love
I'm bleending inside

It's long, long story to tell
And I can only show you my hell

Touch touch touch touch me love
Just one touch, touch will do
Touch touch touch touch me love
Just one touch, touch will do

Why me
Why you
Broken mirror
White terror

Touch touch touch touch me love
I'm shaking inside

It's that faint sound of the childhood bell
Ringing in my soul

Kiss kiss kiss kiss me love
Just one kiss, kiss Will do



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.170

sexta-feira, 11 de julho de 2014

''Uma conspiração de silêncio fala mais alto que as palavras''.

Dr. Winston O'Boogie
«(...)

I'm tired. I'm tired, I'm tired
Of being so alone
No place to cal my own
Like a rollin'stone.»


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.147

«A maldição dos olhos verdes directamente do teu coração.»

-The green eyed goddamn comumente The green eyed monster representa a deusa dos ciúmes.


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.147

terça-feira, 8 de julho de 2014

«Daí que a fotografia seja essa «alucinação partilhada» onde se conjuga «a Loucura e qualquer coisa de que não sei bem o nome. Começarei por chamar-lhe o sofrimento do amor.»

Barthes
«A minha casa está só, e já os amigos raramente me visitam, observando cada vez mais o meu gosto pela solidão.»

António Ramos Rosa

Longtemps

La folie du jour

Maurice Blanchot

Mourir

«Mourir, c'est passer à travers le chas de l'aiguille après de multiples feuillaisons. Il faut aller à travers la mort pour émerger devant la vie, dans l'état de modestie souveraine.»

René Char

«Trust me darlin' come on listen to me
Come on listen to me, como on listen, listen»


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.139
«It's hard enough I know just to feel your own pain
It's hard enough I Know to feel your own pain»


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.111

Declaração de Loucutopia


Anunciamos o nascimento dum
país conceptual, LOUCUTOPIA.

A cidadania do país pode
obter-se por declaração da tua
consciência de LOUCUTOPIA.

LOUCUTOPIA não tem território, nem fronteiras,
nem passaportes, só pessoas.

LOUCUTOPIA não tem outras leis
que não sejam as cósmicas.

Todas as pessoas da LOUCUTOPIA são
embaixadores do país.

Como dois embaixadores de LOUCUTOPIA
pedimos imunidade diplomática e
reconhecimento nas Nações Unidas
do nosso país e o seu povo.

Yoko Ono Lennon

John Ono Lennon


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.111

«Don't think they didn't about Hitler.»

There are no birds in Viet - Nam

Gooks: palavra racista para designar os vietnamistas

«Yes it's always bloody Sundy/In the concentration camps»

John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.97
We live with no reason
Kicked around for no reason
Thrown out without reason
Lite tools
We work in a prison
And hate in a prison
And die in a prison
As a rule

Vivemos sem razão
Tratados a pontapés sem razão
Deitados fora sem razão
Como objectos
Trabalhamos numa prisão
E odiamos numa prisão
E morremos numa prisão
Por via de regra


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p.93

segunda-feira, 7 de julho de 2014

branco-pomba

domingo, 6 de julho de 2014

artigo de 1975

CRÍTICA Sophia de Mello Breyner critica as declarações do Ministro da Comunicação Social Jorge Correia Jesuíno, sobre a cultura num artigo de 1975 / FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

 
"1 - A ARTE deve ser livre porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade na liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque à liberdade cultural me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma e significa sempre opressão para um povo inteiro.

2 - NÃO PENSO que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação. Primeiro os "aedos" cantaram no palácio dos reis gregos "o canto venerável e antigo". Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero, foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos inventaram a democracia. A política começa muito antes da política.

Penso que nenhum socialismo real será possível se a cultura não foi posta em comum. Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na praça o seu poema era ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo o país e de país em país: por isso o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg.

Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram divididas e cada homem foi dividido dentro de si próprio. Será preciso um enorme paciente e múltiplo e obcecado esforço para construir o mundo de outra maneira. E é preciso que nenhum dirigismo esmague esse esforço.

É evidente que no mundo atual encontramos a par da arte uma meta-arte. O cubismo é uma meta pintura, uma pintura sobre a pintura. Arte e meta-arte alimentam-se e inspiram-se mutuamente e penso que este é um dos caminhos, uma das possibilidades. Foi a ler Proust e Rimbaud que aprendi a escrever para crianças. O simplismo e o populismo nunca conduzirão a nada. Se João Cabral de Melo é capaz de escrever uma obra como "Morte e Vida Severina" é porque é capaz de escrever "Uma Faca só Lâmina". "Morte e Vida Severina" é um poema que todos entendem, mas nele as imagens são tão precisas, e os versos tão densos como em "Uma Faca só Lâmina".

Creio que o "poema para todos" é, dentro da cultura em que estamos, o poema mais difícil de escrever. Creio que esse poema é necessário e por isso tenho procurado encontrar um caminho para ele. Por isso em "Livro Sexto" invoquei
O canto para todos
Por todos entendido
Mas sei que esse poema não se programa. E por isso, já depois do 25 de abril escrevi:
Um poema não se programa
Porém a disciplina
Sílaba por sílaba
O acompanha
Mas a disciplina do poema não é a da política.
O poema é disciplinado pela sua própria necessidade.

Nem o próprio artista se pode programar a si próprio. O Ministro da Comunicação Social disse que os períodos revolucionários não eram propícios às artes de vanguarda. Não podemos esquecer que também Hitler e Salazar não se entendiam bem com a arte de vanguarda e que ambos a perseguiam. Um verdadeiro período revolucionário está aberto a todas as formas de criação.

3 - É EVIDENTE que há incoerência. As campanhas de dinamização são mais políticas do que culturais. Fazem um doutrinamento político que deve ser feito pelos partidos. Pois não há doutrinamento apartidário. Não há angelismo político. Um doutrinamento político que se apresenta como apartidário é necessariamente ambíguo.

Vivemos no pluralismo. Mas não queremos viver na ambiguidade. Queremos que o pluralismo seja nítido e declarado com clareza. Que todo aquele que exerce uma atividade de doutrinamento político diga aos outros o partido a que pertence ou que apoia.

Queremos uma revolução clara. Queremos a clareza e a coerência dessa clareza. Este país tem neste momento uma intensa consciência da necessidade de clareza.

A política é um capítulo da moral. O povo que somos votou conscientemente e quer a política que escolheu. Queremos justiça social concreta mas sabemos que essa justiça só se poderá construir na liberdade e na verdade.

Sabemos muito claramente o que não queremos. Não queremos a violência, não queremos que a liberdade seja sofismada. Não queremos nem inquisições nem perseguições. Não queremos política da terra queimada. Não queremos política imposta. E no plano da cultura queremos acima de tudo que a política não seja anti-cultura.

A demagogia é a traição cultural da revolução. Porque a demagogia é a arte de ensinar um povo a não pensar. Um provérbio africano diz: Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba. Não queremos continuar a suportar a baba dos slogans.

Querer fazer política cultural quando os meios de comunicação estão inundados de demagogia é uma incoerência radical. O ministro da comunicação referiu-se ao facto de o trabalho dos artistas ser agora pago pelo povo. Também muitos jornais são agora pagos pelo povo e todos os dias custam ao povo uma despesa escandalosa.
 
A cultura é cara. A incultura acaba sempre por sair mais cara. E a demagogia custa sempre caríssimo."

Ler mais: http://expresso.sapo.pt/em-defesa-da-cultura-o-texto-que-sophia-escreveu-para-o-expresso=f879082#ixzz36hyjDG1A

quarta-feira, 2 de julho de 2014


"Que gestos há mais belos que os do sexo?
Que corpo belo é menos belo em movimento?
E que mover-se um corpo no de um outro o amplexo
não é dos corpos o mais puro intento?

Olhos se fechem não para não ver
mas para o corpo ver o que eles não,
e no silêncio se ouça o só ranger
da carne que é da carne a só razão"

Jorge de Sena

A mentira perfeita



 A mentira, a mentira perfeita, acerca das pessoas que conhecemos, sobre as relações que com elas tivemos, sobre o nosso móbil em determinada acção formulado por nós de uma forma completamente diferente, a mentira acerca do que somos, acerca do que amamos, acerca do que sentimos pela criatura que nos ama e que julga ter-nos tornado semelhante a ela porque passa o dia a beijar-nos, essa mentira é das únicas coisas no mundo que nos pode abrir perspectivas sobre algo de novo, de desconhecido, que pode abrir em nós sentidos adormecidos para a contemplação do universo que nunca teríamos conhecido.

Marcel Proust, in 'A Prisioneira'
Hamm: There's something dripping in my head. A heart, a heart in my head.

 ― Samuel Beckett, Endgame

”Being entirely honest with oneself is a good exercise.”

Letter to Wilhelm Fliess (15 October 1897), as quoted in Origins of Psychoanalysis

segunda-feira, 30 de junho de 2014

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Boys smoking, London, 1956.


sevícia


nome feminino

 1. mau trato físico; ofensa corporal
2. crueldade, desumanidade

(Do latim saevitĭa-, «idem»)
«Sobre essas margens, agora desertas, estendia-se então um subúrbio de Roma, onde banhos, tabernas e jardins recebiam à noite os elegantes da cidade. Era um lugar de depravação e de entrevistas nocturnas; Nero frequentava-o com os seus amigos. Numa dessas excursões, que o prazer de se sentir liberto de todo o constrangimento lhe fazia amar com paixão.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 66/7
«A boca violácea de D. Quitéria cobriu-se de espuma e a pele encarquilhada do rosto estremeceu de indignação.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 158

«E o homem fechou-se num mutismo agressivo.»

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 149
    «Depois, a mulher, com a solicitude de quem cuida de um filho, tomou a iniciativa de lhe esfregar as costas menos acessíveis e mais renitentes. Barbaças, vendo-a assim acocorada a seus pés, humilde e carinhosa, manifestando nesse servilismo toda a sua gratidão, sentiu que lhe era necessário praguejar ou fazer qualquer coisa por onde se escoasse tamanha felicidade.»
 

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 138

«(...) desfez-lhe a rigidez dos braços com um abraço insaciável.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 112
«Os navios existem e existe o teu rosto/ encos-
tado ao rosto dos navios.»

Eugénio de Andrade

id freudiano

«gelo quente, a mais estranha das neves.»

Philostrato

«Este prazer, de tão óbvio, incomoda. Esta harmonia, de tão postiça, inquieta.»

 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 205
«(...) cada coisa está no seu devido lugar, que é este lugar de todos os lugares onde interminavelmente se cruzam e confundem; cada ser está bem na sua própria pele, mas a pele aqui é uma superfície libidinal sem fim onde nomes e rostos se esbatem.»
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 205

Blade Runner

«Do lábio ainda ferido desprende-se um pouco de sangue que alastra pela bebida.»
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 193

A MULHER É A ESCÓRIA DO MUNDO

A mulher é a escória do mundo
Sim, é, pensa nisso
A mulher é a escória do mundo
Pensa nisso, faz alguma coisa.

Obrigámo-la a pintar-se e a dançar
Se não quer ser uma escrava dizemos que não nos ama
Se é sincera dizemos que está a querer ser homem
Enquanto a rebaixamos fingimos que é superior a nós.

A mulher é a escória do mundo
Sim, é
Se não acreditas olha para aquela com quem estás

A mulher é o escravo dos escravos
Sim, devias gritar isso.

Obrigámo-la a parir e a criar os nossos filhos
E depois pomo-la de lado por estar uma fêmea gorda e velha
Dizemo-lhes que foi feita para estar em casa
E depois queixamo-nos que é pouco interessante para ser nossa amiga.

Repete 3 &4

Insultámo-la todos os dias na T.V.
E admiramo-nos por não ter a coragem ou confiança
Quando é jovem aniquilámos o seu desejo de ser livre
Enquanto lhe dizemos para não ser tão esperta
Rebaixámo-la por ser tão parva.

Repete 3.

A mulher é o escravo dos escravos
Sim, é
Obrigámo-la a pintar-se e a dançar.


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 87

Loving Care, 1992 by Janine Antoni ''Performance of her dipping her hair in hair dye and painting the gallery floor''


''Imagina as nuvens a pingar. Abre um buraco no teu jardim para as pôr dentro''.

Yoko, 63

HOW?


How can I go forward
When I don't Know wich way I'm facing?
How can I go forward
When I don't Know wich way to turn?
How can I go forward
Into something I'm not sure of?
Oh no, oh, no

How can I have feeling
When I don't Know if it's a feeling?
If I just don't Know how to feel?
How can I have feelings
When my feelings have always been denied?
Oh, no, oh, no

You Know life can be long
And you got to be strong
And the world is so tough
Sometimes I feel I've had enough

How can I give love
When I don't know what it is I'm giving?
How can I give love
When I just don't know how to give?
How can I give love
When love is something I ain't never had?
Oh, no, oh, no

Repeat 3

How can we go forward
When we don't know Which Way we're facing?
How can we go forward
When we don't Know which way to turn?
How can we go forward
Into something we're not sure of?
Oh no, oh no


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 80

«naperons» bordados

«Ele partiu ferido de morte.»

Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 127

Alma Rubens par Edward Thayer Monroe


ANTÍGONA
 
  Meteis-me nojo, todos, com a vossa felicidade! Com a vossa vida que vos esforçais por amar, a todo o custo. Pareceis cães, lambendo o que encontram. A mesquinhez do dia a dia, para quem não for muito exigente. Eu! eu quero tudo, imediatamente e por inteiro, ou, caso contrário, não aceito nada! Não quero ser modesta, e contentar-me com um pedacito, se tiver juízo. Hoje quero ter a certeza de tudo - e que tudo seja tão belo, como quando era pequena - ou então morrer.
 
CREONTE
 
Vamos, vamos: começas como o teu pai!
 
ANTÍGONA
 
  Sim, como o meu pai! nós somos daqueles que levam as perguntas até às últimas consequências. Até que não exista a mais pequena probabilidade de esperança; a mais pequena probabilidade de esperança a sufocar. Nós somos daqueles que, quando encontram a esperança - a vossa esperança, a vossa querida esperança! - lhe saltam em cima e a espezinham.
 
CREONTE
 
  Cala-te! Se visses como ficas feia ao pronunciar essas palavras.
 
ANTÍGONA
 
   Sim, sou feia! São ignóbeis estes gritos, estes movimentos bruscos, estes esgares. Meu pai só foi belo, mais tarde, quando teve a certeza de que tinha matado o próprio pai, de que tinha dormido com a própria mãe, e de que nada, nada, poderia salvá-lo! Nesse momento acalmou-se, de repente; como que sorriu, e tornou-se belo. Era o fim. Só teve que fechar os olhos para não ver mais nada! Ah! As vossas caras, as vossas tristes caras de candidatos à felicidade! Sóis vós os feios! Vós! Mesmo os mais belos! Tendes todos algo de feio a um canto do olho, ou da boca. Tu bem o disseste há pouco, Creonte! Tu bem falaste na maneira como as coisas eram cozinhadas! Vós tendes todos caras de cozinheiros!
 
 
Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 114/5

quinta-feira, 26 de junho de 2014

«Sou o único juiz dos meus próprios actos.»

 
Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 95/6

«Mas, apesar do teu mau génio, eu gosto muito de ti.»

Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 86
«Na tragédia estamos tranquilos. Estamos, desde início, em família! Numa palavra: estão todos inocentes! Não importa que haja um que mata e outro que morre. É apenas uma questão de distribuição. E, além disso, a tragédia é, sobretudo, repousante porque sabemos que não há lugar para a esperança, essa horrível esperança; quando se é apanhado, quando se é apanhado como um rato, com o peso do céu sobre as nossas costas, e só nos resta gritar - não gemer ou queixar-se - gritar a plenos pulmões o que se tem para dizer, o que nunca se disse e que, talvez, há momentos ainda não sabíamos que iríamos dizer. E para nada: para o dizermos a nós próprios. No drama debatemo-nos porque esperamos sair dele. É ignóbil, é utilitário. Na tragédia, tudo é gratuito. É para os reis. Enfim, não há nada a tentar!»
 
 
 
Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 68

«Não há felicidade sem discussões.»

Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p. 50
 
«...E sofrer? Será necessário sofrer! Sentir subir a dor a ponto de a não podermos suportar: subir até que se torne necessário sustê-la - ela continuar a subir como uma voz aguda! Oh! Não posso, não posso...»


Jean Anouilh. Antígona. Tradução e Prefácio de Manuel Breda Simões. Editorial Presença, Lisboa, 1965., p.

A Prostituição [Isidore Ducasse - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]

Fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias.
Recordo-me da noite que precedeu esta perigosa ligação. Vi um túmulo à minha frente. Ouvi um pirilampo, grande como uma casa, que me disse: "Vou-te alumiar. Lê a inscrição. Não é de mim que vem esta ordem suprema." Uma vasta luz cor de sangue, em face da qual me bateram os dentes e os braços me caíram inertes, espalhou-se pelos ares, até ao horizonte. Apoiei-me contra um muro em ruínas, pois estava quase a cair, e li: "Aqui jaz um adolescente que morreu de tísica. Bem sabeis porquê. Não oreis por ele." Muitos homens não teriam tido, talvez, a coragem que eu tive.
Entretanto uma bela mulher, nua, veio deitar-se a meus pés. E eu para ela, de rosto triste: "Podes levantar-te." Estendi-lhe a mão com que o fratricida corta o pescoço à irmã. Diz-me o pirilampo: "Pega numa pedra e mata-a." "Porquê?", disse eu. E ele: "Toma cuidado contigo. És o mais fraco, porque eu sou o mais forte. Esta chama-se prostituição."
De lágrimas nos olhos, a raiva no coração, senti nascer em mim uma força desconhecida. Peguei numa grande pedra. Depois de muitos esforços, ergui-a a custo à altura do peito. Coloquei-a em cima do ombro, com os braços. Subi a uma montanha, até ao alto. Dali, esmaguei o pirilampo.

A Maldade [Isidore Ducasse - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]

Deve-se deixar crescer as unhas durante quinze dias. Oh como é doce arrancar brutalmente da cama uma criança que nada tem ainda sobre o lábio superior e, com os olhos bem abertos, fingir que se lhe passa suavemente a mão na testa, inclinando-lhe para trás os seus lindos cabelos. Depois, de repente, no momento em que ela menos espera, enterrar-lhe as unhas compridas no peito mole, de modo a que não morra! Porque, se morresse, não se teria mais tarde o espectáculo das suas misérias!... Seguidamente, bebe-se o sangue lambendo as feridas. E durante esse tempo, que devia durar tanto quanto dura a eternidade, a criança chora! Nada é tão bom como o seu sangue, extraído como acabo de dizer, e ainda quentinho, a não ser as suas lágrimas, amargas como sal. Homem, nunca provaste do teu sangue quando por acaso te cortaste num dedo? É bom, não é? Porque não tem gosto nenhum.

O Herói [Isidore Ducasse - Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro - António Rafael]

Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom.
Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos.
Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos em que viveu feliz.
Está dito!
Apercebeu-se depois que tinha nascido mau. Fatalidade extraordinária! Escondeu o seu carácter tanto quanto pôde, durante um grande número de anos. Mas por fim, por causa desta concentração que não lhe era natural, todos os dias o sangue lhe subia à cabeça. Até que, não podendo mais suportar tal vida, se atirou resolutamente para a carreira do mal. Doce atmosfera! Quem diria? Quando beijava uma criança de rosadas faces teria gostado de lhe arrancar as bochechas à navalhada, e tê-lo-ia muitas vezes feito se a justiça, com o seu longo cortejo de castigos, o não tivesse sempre impedido. Não era mentiroso, confessava a verdade e dizia-se cruel. Humanos, ouvis? Ele ousa repeti-lo com esta voz que treme! Ele é então um poder mais forte que a vontade... Maldição!

Quero morder-te as mãos

Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
 
O teu sexo pelado
Faz de mim um escravo
Animal desvairado
Ansiando o teu travo...
 
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
 
Quero-te a urina na boca
Dilacerar-te a valer
Até ficares c'a voz rouca
 Quero matar e morrer!
 
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
 
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...
Quero morder-te as mãos!...

Fado Canibal [Adolfo Luxúria Canibal / Mão Morta]

Das ternas horas do passado resta a penumbra
Em espelhos de bruma a memória reflectindo
Sangrentas rosas de um amor cruel.

DESTILO ÓDIO [Adolfo Luxúria Canibal - Zé dos Eclipses / Mão Morta]

Odeio o teu esqueleto ciumento
E os seus ornamentos de suicida

Destilo ódio!

Odeio as tuas tesouras perversas.

Destilo ódio!

Odeio a colecção de animais embalsamados
Que escondes nas gavetas do teu quarto.

Destilo ódio!

Odeio essas peçonhentas mãos de bruxa
E a obscenidade das tuas unhas.

Destilo ódio!

Odeio-te amuleto maligno que me intoxicas os sonhos
Com esse hálito pérfido que até o metal corrompe.

Destilo ódio!

Odeio-te barca sonâmbula.

Destilo ódio!

Odeio-te farol esclerosado
Onde a luz cresce mutilada.

Destilo ódio!

Odeio-te morte mansa
Que forras de veludo as paredes desta alcova.

Destilo ódio!

Odeio-te maldita celerada.

Facas em Sangue [Adolfo Luxúria Canibal / Zé dos Eclipses]

Vivia na temperatura tépida dos lençóis
Aquele que dava pelo estranho nome
De Amor. Às vezes soltava-se
E percorria pela mão
Dos adolescentes ruas desertas, sombras
Escuras e conspiradoras - soltou-se
O Amor - alguém gritava.

E vinha o vermelho e invadia o vermelho
E assanhavam-se os gatos conscientes
Da invasão da sua noite
Solitária. Depois apagava-se
A última luz da última janela e desaparecia
O Amor na tépidez dos lençóis.

Ficava a lua, ficava
O luar azul a reflectir perigosamente
Nas lâminas das facas ensaguentadas
Dos adolescentes...

FREAMUNDE ACAPULCO [Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]

Vi homens quererem a morte
Por terem morto o seu amor.
Que assombro lhes apressa o passo?
Que álcool provoca tal ardor?
Não há palavras que nos digam
Quão funda pode ser a dor.

Muitas vezes basta um olhar
Ou um silêncio, um gesto apenas...
Logo o sonho se desmorona
Turvando as mentes mais serenas.

Vi homens quererem a morte
Por terem morto o seu amor.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

domingo, 22 de junho de 2014



O mundo de André e. Teodósio é, sobretudo, um mundo que esteve sempre aberto para o desconhecido. Podia empunhar um cartaz a dizer: “All you need is love!” O love é o seu assunto.
O Expresso apontou-o como um dos portugueses mais influentes de 2012. A informação tem tanta importância quanto: “O meu pai comprava livros ilegais na Barateira. Esta sede de informação estava nele desde cedo.” As duas estão ligadas. Para compreender o percurso — e a cabeça singularíssima deste alien barroco —, é preciso fazer arqueologia. Conhecer as fundações onde tudo começou por fervilhar e se descobriu o mundo com espanto.
Encontrámo-nos em casa. Tem uma biblioteca poderosa que organizou por cores. Puro gesto excêntrico. Veste uma camisa de leopardo, um colar oferecido pela mãe. Foi também a mãe que ofereceu a colcha que está sobre a cama, de algodão, estampado dourado. Está no chão da sala um vinil da Concha (lembram-se dela no Festival da Canção a cantar: “Qualquer dia, quem diria”?). À entrada, um Apolo de cartão, elegante, inspirador. Tudo conjugado, parece uma conjugação impossível. Artificiosa e impossível. E depois não é. É original, surpreende, abre para o infinito. Como o seu teatro. Que não procura nada, mas que está sempre a encontrar — e a integrar.
A casa fica a dois passos do Teatro Praga, num bairro popular de Lisboa. Corredor directo entre uma coisa e outra. A vida como ela é na pastelaria da esquina. Pastelaria de “sai um galão bem quente” e balcão de metal. E pérolas ditas pelas pessoas de todos os dias que olham para a vida sem peneiras. Pérolas que ele rapina e encaixa numa espécie de puzzle onde está também a vida dos livros. André e. Teodósio é... como qualificá-lo numa palavra? Talvez artista. Um verdadeiro artista. Músico, cantor, actor, encenador, dramaturgo. E amante (i.e., aquele que ama).
Com quem tem afinidade de sangue?
Estive a estudar a minha árvore genealógica e descobri que sou descendente directo de Adão e Eva. A minha afinidade de sangue é o mundo. Está cá tudo inscrito. Isso ajuda-me a fugir de uma ideia de nação, de família.
Como se a sua pertença fosse a qualquer coisa mais abrangente?
Sim. Sintetizo o caos inicial. Todos sintetizamos o caos inicial, temos em nós as estrelas, o hélio. É muito importante fugir de qualquer naturalização, de qualquer essência. Claro que é uma falsa questão…
Provimos de um sítio que é mais circunscrito do que isso. O que é que importa da sua árvore genealógica mais estreita para compreender a sua cabeça?
Venho de duas famílias díspares da Beira Baixa. Os meus pais conheceram-se num comboio, a vir para Lisboa. A família do meu pai é de latifundiários que trabalhavam com as pessoas do campo. A família da minha mãe é aristocrata, de mistura escocesa e espanhola, e é tudo maluco. Realizadores, escritores. Há histórias de a minha bisavó desenhar ovnis.
Aberta ao infinito.
Sim. Sou descendente de Adão e Eva mas virado para o infinito — para não fazer sentido nenhum. Sou muito ligado à terra, sendo que a terra não faz sentido nenhum. É só uma parte de uma totalidade caótica.
Procura o sentido no que lê, no que faz?
É o contrário. Estou aqui e sei que nada faz muito sentido. Estou aqui e não quero que isto tenha um sentido. A ter, que tenha muitos sentidos. Até não fazer sentido. É como se em vez de ser só uma coisa, fosse capaz de estar sempre a mudar de ficção. É uma fusão estranha... Sou um barroco alien [risos].

A sua mãe falava consigo em português?
Sim, ela é portuguesa. Quando era nova, assinava nos livros Lúcia Scott. (O apelido é Escoto. Foram traduzindo o Scott para português.) Nunca pertenceu a Penamacor. Era uma cidadã do mundo.
O seu percurso é marcado por viagens constantes e por um período que passou fora. Sente-se estrangeiro em relação a quê?
Não me sinto estrangeiro em relação à língua. Apesar de não a dominar e não a ter aprendido bem. Estive até ao 6.º ano em Portugal. Depois, fui para os Estados Unidos e aprendi Inglês. Não sei como é que as palavras são feitas, qual é a sua etimologia, como é que estão relacionadas. Nunca me senti de um só lugar. Os meus pais sempre me incentivaram a pensar o fora.
A sua geografia, em Lisboa, era qual?
Nasci na Lapa, depois estive em Paço de Arcos, depois Olivais. Frequentei uma escola católica. Os meus pais não são católicos. Acho que me puseram lá para não gostar da escola católica [risos].
O que é que foram fazer para os Estados Unidos?
O meu pai era militar e concorreu a um cargo na NATO. Tornou-se administrador da base de dados da NATO. Nos anos [19]80 tinham uma vida muito boa.
Quando é que teve a noção de que era artista e de que a sua vida ia ser esta?
Sempre tive um fascínio por artes. Desde novo queria ser músico. Lia muito porque o meu pai queria ser escritor. Desenhava caras de pessoas, olhos. E tinha jeito para as composições e para os teatrinhos da escola. Tive uma bolsa nos Estados Unidos, estudei flauta transversal, tuba, toquei trombone. Em Portugal, deu-me uma traquitana qualquer e pensei: “Vou para Direito.” Não correu bem. Fui para Música e tornei-me músico profissional. Tocava em orquestras. Depois integrei o coro Gulbenkian e fui estudar canto.
Percebe a traquitana do Direito?
Estava meio perdido. O Direito parecia-me assim regrado, como a vida militar do meu pai. E dava-me a ilusão de poder fazer justiça. Uma coisa muito importante, fazer justiça. Depois conheci um rapaz. Convidaram-me para fazer um espectáculo no Teatro Nacional e conheci o Pedro Penim. Apaixonámo-nos e pensei: “Isto agora não vai correr bem. Ele não pode ir estudar Música, ele faz teatro. Não quero estar com ele só à noite como as famílias normais. Quero estar com ele a vida toda. Vou estudar Teatro.” Os meus pais: “Teatro? É Direito, é Música, tens de ter tino e decidir.” Fui para Teatro. Tinha 21 ou 22 anos.
O amor a decidir a vida toda.
Faço por isso. Para mim, a vida é o amor. É o que interessa. Tudo o resto são placebos para evitar entrar numa depressão. (Sou muito dado à tristeza.) Tudo o resto são placebos para ir continuando.
Ensaio para Sonho de uma Noite de Verão (CCB, 2010) Nuno Ferreira Santos

O Pedro era da formação do Teatro Praga?
Era. Era uma companhia ainda conservadora, de alguma forma. Quando entrei, consegui trazer uma certa dose de desprendimento em relação ao teatro. Nunca gostei muito de teatro, na verdade.
Como assim?
Tinha lido sempre imenso, ficção, ficção. Não conseguia ver pessoas a fingir que eram coisas em palco. Não percebia aquele tipo de representação mimética, caricatural. Diziam o texto de uma forma que não me interessava. Adormecia.
Mas o enredo, a força vital da palavra, que tanto existe nos livros como no teatro, isso interessava-o.
Sim. Mas não a representação daquilo que podia ler em livros. Preferia ler, sublinhar.
Sublinhar é uma maneira de se projectar naquilo, de se identificar mais intimamente com o que lê?
Sim. De tornar aquilo meu. Os livros que leio têm de ser meus, já não são do autor.
O encontro com o Pedro fê-lo encontrar um fio condutor? Foi um princípio organizador da sua diversidade?
O que ele me ofereceu foi o sítio que eu recusava e que ele defendia como sendo o sítio onde todo o caos podia conviver. E que não existia na música. A música tinha uma herança histórica. Não era tão permeável como o teatro.
Quando entro na Praga, digo isto: “Temos de pensar o texto de uma forma musical, fora da musicalidade que está associada a um dizer teatral.” Os cenários não deviam ser tão teatrais. Deviam ser como a casa dos meus avós ou ter a lógica de decoração da minha mãe, que mudava de três em três segundos (agora a casa é gótica, agora é nova-rica). São assumidamente ficções [no caso da minha mãe], tão ficcionais como no teatro. O teatro permitiu trazer um bocado de real perante a lógica do texto.
Parecendo a fantasia, o desvario, trata-se, no fundo, de trazer o real.
Exacto. E ali conseguia ter tudo. Tocar, fazer artes plásticas, escrever. E, para além disto, tudo o que não tinha pensado ainda, podia trazer também, quer fosse filosofia, culinária, roupa, televisão.
Esse é o lado da genealogia Adão e Eva? Tudo pertence a tudo, tudo vai dar a todo o lado.
É isso.
O que sabotou a sua vida linear? Que grãos de areia se intrometeram na engrenagem? Na verdade, ela nunca foi linear.
Não, nada. Tive muita sorte. A info-exclusão: é importante saber que há pessoas que não tiveram esta oportunidade. É isso que me faz ser defensor do Estado social e defensor de uma certa ideia de esquerda. Mais próxima agora do Livre.

É simpatizante?
Completamente. Tive essa sorte, nos anos [19]80, de poder viajar, ter os livros que queria. O dinheiro possibilitava, como hoje, ter acesso à informação. Não quer dizer que produza conhecimento, mas experimentar é atravessar o fogo.
“O Homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”, diz Antígona.
É. Todas as pessoas deviam ter acesso a uma vida não linear. Ou, mesmo que essa linearidade exista, que alguém lhes diga que é só uma parte de uma totalidade.
O que acaba de dizer traduz uma ausência de medo. Aquilo que faz as pessoas escolher, ou serem escolhidas, por uma vida linear, tem que ver com uma ideia de controlo sobre os acontecimentos da sua vida.
Escrevi uma vez num texto: “Quando as nossas mães nos dão à luz, nascemos nós e o nosso medo.” Tem-se sempre medo. Mas ou o medo toma conta de nós ou tentamos domar o medo. Nunca se sabe se se vai flipar, se se vai ficar doido. [O desafio] é não ficar perplexo perante aquela sombra gigante, delinear os contornos daquela sombra, perceber que é só um padrão.
Porque é que não reproduziu o caminho dos seus pais? Casar, ter filhos, uma vida razoavelmente arrumada.
Os meus pais, apesar de terem tido uma profissão, nunca tiveram uma vida muito linear, afectivamente. Tiveram as suas coisas, com certeza [risos]. Não tiveram uma vida como a dos filmes. Havia ali qualquer coisa a quebrar a jarra de cristal perfeita. E isso ajudou-me muito.
Perguntou-se: o que é que faço com estes cacos?
Exacto. É arte. Antes era uma jarra, agora são cacos, é uma escultura. Seria impossível para mim ter uma vida muito linear. Se bem que afectivamente seja hiperlinear. Não namorei muito, quero é namorar para o resto da vida.
Romântico.
O amor interessa-me como ideologia. É o rubi que quero talhar. Consigo falar sobre milhares de coisas, de filosofia, biologia, teatro, estética. Sobre o amor não consigo falar, e tenho uma obsessão com o amor. Não sei muito bem porquê… é porque me faz feliz.
Ou então porque o amor é o detonador, é o motor.
Sim, o amor é o detonador. Tem coisas que nem sei o que são porque não tenho palavras para elas. Não é dependente do meu conhecimento do mundo — está lá. É muito bonito, reduz outra vez a importância do eu.
Madame Sade (Teatro Taborda, 2000) Rui Gaudêncio

Ao mesmo tempo, tudo aquilo que se faz é afirmação do eu, da singularidade. O que faz profissionalmente anda muito à volta das questões da identidade.
É verdade. Mas isso é um erro táctico meu [risos], ainda estou preso a uma lógica primitiva. Quero estar no futuro. Há aquela coisa dos gender bender, das pessoas sem género. Eu digo que o próximo passo é a identity bender. A identidade é que está a mudar. Agora posso ser uma cadeira, amanhã sou uma flor. E depois sou um ser humano e depois um cão. Amanhã ou numa questão de segundos.
A palavra “metamorfose”, o que é que lhe ocorre dizer sobre ela?
Ocorre-me essa escolha deliberada de ficções. De irmos mudando as nossas ficções. Gosto da palavra “metamorfose”. Tenho medo de que isto também seja representativo de um tipo de histeria que possa ter em mim. Não é muito agradável. Não queria achar que estou à procura de ter alguma coisa e que vou mudando até a encontrar.
Explique melhor.
Não é que queira saber o que sou como ser humano, mas tenho medo de que esta ideia de mudança de identidade, de metamorfose constante daquilo que sou, represente, não aquilo que sou, mas uma histeria em busca de poder ser alguma coisa. E como não quero definir-me, como não quero ser como o Heidegger e estar à procura de uma essência, não quero achar que há uma essência ou um início.
Não tem um fascínio pelo momento inaugural, pelo instante da deflagração?
O momento inaugural não é uma coisa, é uma relação de coisas. Por isso é que me interessa mais a relação do que um particular.
Interessa-lhe a constelação.
Exacto. Não quero achar que estou na constelação à procura de uma estrela. Quero manter-me só no plano da experiência, de queimar os pés com o fogo.
Não lhe interessa o que se extrai disso? O que se extrai da rasura, da cicatriz.
Interessa-me como processo de experiência, mas não quero deixar muita informação, muitas marcas. Ela pode perpetuar-se, pode tornar-se essencial, tradição, e não quero que isso aconteça. Isso é o que leva as pessoas, ou que já me levou a mim em determinadas alturas, a não conseguir relacionar-se com o medo. Como se existisse uma origem para aquela sombra que ali está presente. Não me quero preocupar com grandes respostas. Tenho dificuldade com escolas, academias. Muitas vezes estão alicerçadas nesse saber verdadeiro. E ele não é verdadeiro, está é em relação com o outro.
Há pouco fotografámos na sua biblioteca. Os livros estão alinhados por cores! Lembrei-me da biblioteca do David Mourão Ferreira, que estava organizada numa sequência cronológica e não por estilos ou ordem alfabética.
É, as coisas estão em relação umas com as outras, no mesmo momento. O tempo não interessa, mas estão todas sequenciais. Não há uma que seja a origem.
Está a apanhar uma grande seca? Às vezes não digo nada com sentido. Vivo numa bolha qualquer. Os meus amigos dizem sempre que não saio de casa, não falo com ninguém. Estou sempre fechado. Na Internet, a ler livros, a ver filmes. Viver numa bolha protege-me muito. É muito difícil entregar-me ou conhecer uma pessoa. Ninguém sabe nada da minha vida.
Agora vai ficar-se com um vislumbre.
Sim. Mas ninguém sabe como falo com os meus amigos, como é que estou com eles, a intimidade.
Essa palavra- rubi, essa palavra-jóia, intimidade...
É muito cara, a intimidade. É o sítio onde se une tudo, é na intimidade.
Se fosse uma flor, seria qual, a intimidade? Ou uma pedra preciosa.
Âmbar. A intimidade é âmbar. Fecha-se, cristaliza-se, mas consegue-se ver tudo lá dentro.

Eu chamaria a isso “essência”, mas não gosta da palavra “essência”. Recusa-a.
Tenho um problema histórico com a palavra “essência”. Já representou tanta coisa negativa. Sempre que a oiço, é como se houvesse uma origem. Começo a ficar tolhido. Começo a disparar: “Não há razão, não há essência. Podes ser o que quiseres! Não és, estás a ser.”
Não há ser, estamos a ser?
É. E vamos estando a ser. Estamos a ser em relação, simétrica ou assimetricamente com as coisas no mundo.
Voltando à genealogia de que comecei por falar: tem afinidade de sangue, está em relação com Zizek, Bela Lugosi, Antígona, Cleópatra, Susana Pomba, Concha, Tony de Matos. Shakespeare, claro. Fellini, muitíssimo. Tudo faz parte do mesmo?
Sim, somos todos primos [risos].
Há primos em primeiro grau, em segundo grau. Estas são filiações mais íntimas? O seu mundo é essa coisa sincrética onde entra tudo?
Não posso dizer que não. Sou feito deles. Os meus pais, os meus amigos, o Godard, o Zizek, o Fellini, nem sequer consigo pensar o que é que poderia ser se não existissem. Não tinha sobrevivido. Tinham-me posto em bebé na relva e eu morria. De certeza que estava lá o Fellini a dizer: “Agora tens de caminhar até ao supermercado” [risos].
O que é que deve ao Fellini? Há uma peça encenada pelo Teatro Praga que tem um excerto do filme Cidade das Mulheres.
Nossa? Já não me lembro. Não tenho boa memória, esqueço-me de tudo. Passa a ser tudo meu, está cá mas não sei o que fiz, de onde é que vem. Reciclo-me muito nos textos, têm sempre frases repetidas. O que eles têm todos em comum é esta desnaturalização.
Passam a ter outra natureza. Muda a perspectiva.
E não muda a perspectiva através da alienação, é através da inclusão. Todos fazem uma espécie de exaustão daquilo que já existe e que se consegue reconhecer. Mas nada daquilo bate certo, está sempre tudo disforme.
Fellini tem um lado grotesco e disforme muito acentuado.
O que tenho com ele é esse lado disforme, a capacidade de encontrar na coisa mais prosaica um outro ponto de vista. As pinturas de Picasso foram importantíssimas para mim. De repente, há um quadro que em vez de ser o ponto de vista do pintor é o da criança que está a ser amamentada.
Ainda que pareça, não é fácil mudar o ponto de vista. Exige distância crítica, pormo-nos em causa.
Será que conseguimos? Às vezes, não se produz pensamento nenhum, não se chega a lado nenhum. Sou bélico, gosto de ganhar conversas, mas não tenho problema em admitir que estou errado, que estou a pensar ancorado num conhecimento hegemónico, que não permite diferença. Uma vez entrevistaram o Godard e perguntaram: “Porque é que faz uns filmes tão diferentes dos outros?” O Godard responde: “Não faço filmes diferentes. Os outros é que fazem os filmes todos iguais.”
Top Models: Paula Sá Nogueira (Culturgest, 2011 — um espectáculo de Teodósio para a companhia Cão Solteiro) Joana Dilão

Interessa-lhe, claro, mais que tudo fazer a pergunta.
Sempre. Ou ver que a pergunta estava errada. O que é teatro? É uma pergunta errada porque significa que o teatro é alguma coisa. E o teatro não é nada, é aquilo que quisermos que seja. É como a primeira frase do Tractatus do Wittgenstein: o mundo é tudo o que quisermos que ele seja. Eu quero é o infinito! Quero é que não haja respostas e que toda a gente seja muito feliz e que estejamos todos a viver e a fazer amor. [risos]
Fazer amor ou fazer o amor?
As duas coisas, obviamente [risos]. Gosto muito de fazer amor.
A conversa estava quase abstracta, e ficou concreta, com o fazer amor. Porque é que está a dizer isso?
Porque é verdade.
É o tipo de frase que as pessoas não dizem habitualmente. Não dizem por pudor, por convenção social.
Não deve haver pudor em relação a nada.
Gosto de pensar espectáculos, mas não gosto de fazer espectáculos. Gosto de ter ideias, mas não gosto de as fazer. Não quero entrar em espectáculos, não quero escrever textos, não quero fazer nada.
O seu trabalho é pensar e a sua diferença assenta nisso?
Em relação ao amor, não gosto só de o pensar [risos].
As peças são um lugar de pensamento?
Claro.
Lugares de compreensão do mundo?
Sim, de disponibilização de ferramentas para a compreensão do mundo. A arte é um legado do pensamento, não é da materialização. Não precisávamos da materialização, toda a gente sabe.
Sabe que são três pessoas que sabem? Tem noção disso?
[risos e comoção] Não quero aceitar isso. Quero aceitar que toda a gente pode pensar isto. Gostava mesmo de estar com as pessoas todas. A maneira como a cultura se foi desenvolvendo no Ocidente é que castra muito.
Por falar em castração. Quando é que deixou de ser criança?
Nunca fui muito criança. Era puto e fazia campanhas políticas. “É coisa de adulto, tomar conta do mundo.” Nunca me dava com os filhos. Queria era plasmar o mundo dos adultos. Tipo Kidzania avant la lettre.
Queria crescer depressa?
Sim. E agora sofro de uma coisa: quero desaparecer muito depressa. Já cresci e estou em “rame-rame”.

Está numa fase deprimida?
Não, estou bem. Ao crescer, sempre quis mudar o mundo. E quero disponibilizar coisas para que o mundo mude. A realidade desmente isso a toda a hora. Vemos a Rússia a invadir a Ucrânia, passos históricos atrás. O que perdi foi uma ingenuidade vital que tinha. Não a perdi há muito tempo.
Estive a ler excertos de peças suas. Gostava de devolver-lhe algumas ideias que sublinhei. Uma está na Cenofobia: “Ah, cair em mim, ah, finalmente ser eu.”
Esse foi o primeiro texto que escrevi para ser editado. Cenofobia, a palavra é estranha. Ao mesmo tempo que quer dizer medo de estar em espaços muito abertos, pode descrever o medo de estar em cena.
Fale-me deste cair em si.
Decidi fazer um texto em que me concentrava em mim, como entidade, como sujeito. Sendo que esse sujeito, durante todo o texto, está a tentar fugir dele, a matá-lo. É a ideia de que cá dentro não há nada, mas que consigo articular estas coisas todas e afirmar: “Se calhar, isto sou eu.” Estou a ser qualquer coisa. A única coisa que posso fazer é cair em mim. Deixar de ter medo de estar em espaços abertos e deixar de ter medo de estar em cena. Um amigo meu diz que vivemos em solidões partilhadas. É um bom caminho. Esta é a minha solidão, eu partilho-a consigo, você partilha a sua solidão, e é nesta relação que vão surgindo coisas.
Na peça Terceira Idade, diz assim: “Avança-se na trama e eu fico tramado.” É o que sente?
Sim. Vamos ficando tramados porque [a vida] é cada vez mais complexa. É como escrever um texto. Vai-se tentando sintetizar e simplificar para que não polua, para retribuir aquilo que se consumiu. Quanto mais se avança, quanto mais se vai pensando e conhecendo, mais tramado se fica: fica-se enredado.
Em 2012, foi considerado pelo Expresso uma das 100 personalidades mais influentes do país.
Em 2013, caí [risos].
Tropa-Fandanga (D. Maria II, 2014) Nuno Ferreira Santos

Em 2014, apresentou no Teatro Nacional, essa instituição, uma peça de grande sucesso, a Tropa-Fandanga. A expectativa em relação a si e ao seu trabalho é um peso?
A Praga começou com um grupo circunscrito de pessoas que achavam a companhia curiosa. Hoje há uns milhares que a conhecem e que precisam dos nossos espectáculos como matéria de pensamento. Nunca deixei de arriscar como arrisco. É diferente falar da Tropa Fandanga, feita por várias pessoas, e falar de espectáculos só meus. Quando são espectáculos só meus, é claríssimo que são quase sempre mal recebidos.
Porquê?
Sou muito ditador quando sou eu a fazer. Nunca deixei de querer experimentar. As obras que faço são mal recebidas pela crítica, apesar de serem bem recebidas pelo público. Isso interessa-me muito. Quer dizer que nunca estamos de acordo com uma ideia de ver teatro, ópera, dança.
Quer dizer que fogem ao cânone.
Sim. Que estamos sempre meio fora e que as pessoas estão a receber isso.
Foi uma surpresa ver-se entre os mais poderosos?
Penso que resultou de, com a minha idade, ter feito coisas que ninguém tinha feito. Em Portugal, fiz espectáculos para a Companhia Nacional de Bailado, o São Carlos, o Teatro Nacional Dona Maria, o São Luiz, o CCB. Tinha 33 anos, é meio inédito.
A sua carreira internacional é pujante. Fazemos esta entrevista depois de regressar da Alemanha e Suécia, dentro de dias parte para a Bélgica e depois Finlândia.
E vamos para o Théâtre de la Ville [Paris]. A trama vai-se adensando. As instituições estavam cristalizadas e apanhei uma época em que estava tudo em mudança, com novas pessoas, novas maneiras de pensar. Tenho facilidade porque fui músico, escrevo, consigo estar em vários sítios ao mesmo tempo. Como a ideia de teatro que temos não é dependente de uma técnica, a teatral, mas sim de pensar, isto [que fazemos] é aplicável a tudo, às artes plásticas, à dança, à ópera. Consigo pensar sobre todos estes suportes artísticos porque não tenho suporte.
A não ser a sua cabeça.
Sim. Que é a cabeça do Fellini, do Bela Lugosi, do Godard, do Zizek, do realismo especulativo.
“O que se quer é o desconhecido, andar para lá do horizonte a caminho do caos.” A frase consta de outra peça, escrita por José Maria Vieira Mendes. Olhemos para o fio do horizonte. O que é que há para lá?
É o abismo. Conhece a pintura do Caspar David Friedrich? Sou como esse senhor. Gosto de estar ali, nem muito atrás, para não deixar de ver, nem muito à frente, para não cair. Mas tenho medo do abismo. O que é paradoxal. Tenho medo, ainda, de deixar de me entender com os outros, de estar cada um por si.
É uma imagem tremenda de abismo: deixar de se entender com os outros, deixar de se entender com o mundo, ficar cada um por si. Como se as estrelas ficassem sozinhas e se acabasse a constelação.
Uma coisa são as coisas circunscritas aos sujeitos, à sua praxis. Tem de haver um arco fundamental que as una e que as emoldure num determinado tipo de agir ou de estar. Os direitos universais. Se está cada um por si, a experimentar o seu mundo, entramos num jogo alienado.
Desafiaram o crítico Augusto M. Seabra a linchar o Teatro Praga para a revista que a companhia edita. Então, como é que o lincho? (Parêntesis: vocês dizem “a Praga” como se se referissem a uma peste. Uma peste boa.)
Linchar é pôr em causa. É porem-me um espelho à frente e ter de lidar com isso. Adoro o espírito crítico. Adoro pessoas que estão constantemente a pôr espelhos umas às outras, que se criticam e põem em causa. Que não vão dar festinhas às outras nem vão confirmar que elas têm razão.
Quer dizer mais alguma coisa sobre o amor?
Roma ao contrário é amor. Não sei muito bem o que é que o amor é, mas sei que quando ele não existe é horrível. Não quero nem Roma nem o horrível, quero o amor, que está ali no meio. É a palavra que sobrevive a este jogo de pensamento.
Há outra ainda entre Roma e Amor: romã.
Isso é muito judaico, é um fruto sagrado. É um fruto maravilhoso.
É também uma imagem da multiplicidade de mundos de que estivemos a falar. Tantas partículas dentro da unidade da romã...
Vou deixar de dizer que vivo numa bolha e passar a dizer que vivo numa romã [risos].

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