''A credibilização da arte urbana parece ocorrer a duas velocidades. Por um lado o universo canónico da arte tolera-a, mas ainda não a aceita totalmente. Por outro assiste-se a alguns efeitos perversos da sua disseminação, como a promoção de um tipo de muralismo ornamental sem conteúdo e até a aproveitamentos políticos na forma como se deseja melhorar a imagem de alguns bairros, sem que seja garantida a qualidade de vida dos habitantes.
Tudo isso é verdade. Existem alguns aproveitamentos políticos e haverá um excesso de eventos relacionados com essas práticas, mas também existem muitos bons exemplos de como se pode operar. O que noto é que claramente se abriu uma porta para que uma série de artistas que começaram a operar no espaço público validem o seu trabalho o que é mais do que legítimo. Independentemente desses desvios, tem-se vindo a conseguir que uma série de artistas encontrem o seu espaço, sendo parte da solução e não o problema, para a forma como o espaço público é experimentado. Nitidamente hoje existem várias tribos urbanas que podem contribuir de forma positiva para pensar a cidade, estabelecendo pontes e diálogos que há dez anos não existiam. A força da arte em espaço público é essa – alertar e criar relações, ligações e pontes entre pessoas e lugares muito diferenciados, promovendo a compreensão e até a auto-estima no caso de alguns lugares. Agora, como é evidente, tudo o que se fica pela mera fachada, não interessa muito. De qualquer forma se estamos aqui a questionar alguns destes processos é porque eles levantaram questões, independentemente de alguns erros. É preciso estar alerta, mas também não devemos temer a hipótese do erro.''
Esgotado o tempo das vanguardas artísticas, já não devemos esperar, neste início do século XXI, que a criação literária nos traga algo de novo? A pergunta foi colocada pelo jornal espanhol El País a escritores, ensaístas, editores e livreiros a pretexto de uma declaração do crítico norte-americano Harold Bloom.
Entrevistado para o El País pela editora e tradutora Valerie Miles, o octogenário Bloom, conhecido pela sua luta de décadas contra todas as tendências académicas que lhe pareçam ameaçar o primado do estético nos estudos literários, afirmou não ver hoje “nada de radicalmente novo” nas literaturas ocidentais.
Vinda de quem vem, a afirmação dificilmente se poderá considerar surpreendente. A obra mais célebre de Bloom, O Cânone Ocidental, é em boa medida a descrição de um progressivo enfraquecimento desse poder de criação literária que permite produzir obras verdadeiramente originais, uma chama que nesta “idade caótica”, para usar a expressão do crítico, só alguns poucos homens de génio teriam conseguido trazer ainda acesa do seu enfrentamento com os gigantes da tradição literária.
“Não me parece que na literatura contemporânea, seja em inglês, [designadamente] nos Estados Unidos, em espanhol, catalão, francês, italiano ou nas línguas eslavas, haja nada de radicalmente novo”, disse Bloom, acrescentando que já não há “grandes poetas” como Paul Valéry, Georg Trakl, Giuseppe Ungaretti ou Luis Cernuda, nem ficcionistas como Marcel Proust, James Joyce, Franz Kafka, ou Samuel Beckett, que considera “o último da grande estirpe”.
O que poderia ter sido rapidamente esquecido como mais uma entre muitas declarações de Bloom de teor equivalente acabou, no entanto, por gerar um debate interessante, ao qual o PÚBLICO agora acrescenta as opiniões dos ensaístas Pedro Eiras, Luís Mourão, Abel Barros Baptista e Rosa Maria Martelo, e ainda a do editor Francisco Vale, da Relógio D’Água.
Eiras acha que a busca do novo se tornou gratuita e defende, sim, uma literatura “extrema”. Mourão quer vê-la centrada naquilo que o cinema e a televisão não podem fazer por ela: usar a palavra para pensar o mundo e encontrar um ritmo próprio para o habitar. Barros Baptista parece estar a perder um bocadinho a paciência para tanto novo autor que não leu nada de significativo e que acha que para escrever um romance basta pôr-se a “falar da vida”. Rosa Martelo pergunta-se o que sucederá ao cânone estritamente literário de Bloom se no futuro próximo a criação privilegiar “formas compósitas”, que associem a literatura a outras artes com a naturalidade que as tecnologias digitais hoje permitem. Francisco Vale acredita que a literatura ainda nos reserva “magníficas surpresas” e sugere que o problema, hoje, não é tanto os Ken Follet conviverem com os Thomas Pynchon, é começar a haver pouca gente que dê pela diferença.
Memo entre os inquiridos pelo El País, são poucos os que concordam com o crítico americano, mas nem todos os que discordam adiantam exemplos de autores que desmentiriam o seu diagnóstico. Entre os que o fazem, o escritor mais consensualmente destacado é o alemão W. G. Sebald (1944-2001), autor de Os Emigrantes ou Austerlitz. Já em Portugal, Pedro Eiras e Luís Mourão apontam o caso singular de Gonçalo M. Tavares.
A literatura quer-se extrema
Para Pedro Eiras, a doença actual da literatura, chamemos-lhe assim, é a sua “homogeneização a partir do cânone do romance” e, dentro do romance, em torno de um “realismo consensual e pacífico, de consumo fácil, que já não está a colocar questões”.
Assumindo que não tem a menor nostalgia das vanguardas, o ensaísta acha que “o novo é hoje uma aposta gratuita” e que “o que importa não é perguntar se um texto é novo, mas perguntar se é extremo”. Daí que critique Bloom por usar “uma linguagem que já não nos serve de nada”.
Os escritores que interessam a Eiras são esses “autores de textos extremos”, que “não estão ali para entreter ninguém, mas para fazer qualquer coisa de muito genuíno”. E para ser mais claro, dá o exemplo concreto de um autor português de hoje que lhe parece escapar tanto à repetição como à busca gratuita da novidade: Gonçalo M. Tavares. Referindo-se ao seu livro mais recente, Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai, nota que “tem personagens, acção, tempo e espaço” e “não é propriamente um romance desconstruído”, mas é “um texto que coloca perguntas a ele próprio e ao leitor”. Em Gonçalo M. Tavares, diz Pedro Eiras, “a máquina do romance não procura nem a novidade nem o entretenimento, está a colocar questões reais”.
Luís Mourão introduz outro aspecto da questão ao sublinhar que “a pergunta pelo novo não pode ser colocada do mesmo modo a uma literatura que teve quase a exclusividade da narrativa” e a uma outra que concorre “com o cinema, o vídeo e a televisão”.
Uma competição que obrigou a melhor literatura a especializar-se. Se nesta como em todas as épocas há “uma literatura light, mais comestível”, a que interessa a Mourão é “a que faz o que só ela pode fazer”, porque a literatura, diz, “ainda é a única arte que usa a palavra para pensar o mundo e, ao mesmo tempo, encontra um ritmo para estar no mundo”.
É pelo diverso modo como cada um dos autores articula estas duas dimensões que Mourão destaca Sebald, com “o seu ritmo lento e cumulativo e a forma de pensar a ele associada”, e Gonçalo M. Tavares, com “o seu ritmo rápido e o modo de pensar correspondente”. O ensaísta acha “um bocadinho irrelevante” saber se o que estes autores fazem “é novo”, mas observa que algumas das questões com as quais ambos se confrontam, como o Holocausto ou o exílio, “só se tornaram visíveis no nosso tempo, porque historicamente nos aconteceram a nós”.
Associando o primado do novo com o período do modernismo, Mourão nota que “nessa geração havia também uma ligação muito estreita entre os planos criativo e crítico”, com muitos autores, aliás, a assumir ambas as funções, uma situação que contrasta fortemente com a realidade actual: “a crítica quase desapareceu, o critério de avaliação tem mais a ver com as vendas e os prémios, e não há nenhum discurso crítico que defenda escolas ou princípios”.
Novidade e repetição
A Abel Barros Baptista parece natural que Bloom, que “leu a literatura moderna e coloca no centro do cânone o percurso histórico que leva ao modernismo”, ache que “o que há depois disso é repetição”. Mesmo hoje, diz, “a ideia de literatura que ainda sobrevive está muito baseada no novo” e “não aceitamos bem que uma literatura se faça através da repetição”. No entanto, se “os modernistas levaram à exaustão” essa busca do novo, Barros Baptista observa que mesmo nesse período havia, como houve sempre, “um vasto contingente de escritores” a engrossar as fileiras da repetição.
Mais do que a ausência do novo, o que o ensaísta lamenta é a “grande infantilidade” de boa parte da literatura actual. “Há muitos escritores infantis, impreparados, sem densidade, gente que fala da vida, mas como ninguém tem hoje vida para falar da vida, a vida de que falam é a que vêem na televisão”.
E ao contrário dos autores do passado, que eram geralmente leitores fortes, a maior parte dos escritores portugueses actuais “não leu Tolstoi ou Balzac”, acredita Abel Barros Baptista. “O romancista de hoje já não tem que mostrar que leu o Proust, e pode escrever um romance sobre deixar de fumar sem querer saber se alguém já o fez, e isso é uma vitória do modernismo”.
Este tempo em que “o comércio tomou conta de tudo” também não é propício ao surgimento do novo, argumenta, já que o novo tende a exigir mais do leitor, a “perturbar a transmissão” da obra, e o comércio “gosta de produtos que sejam iguais aos que já tiveram sucesso”. Não por acaso, “as livrarias on line são estruturadas na lógica do ‘quem gostou deste livro, também gosta destes’”, observa Barros Baptista, que nem sequer acredita que esta espécie de Weltliteratur nivelada por baixo possa servir de trampolim para leituras mais exigentes: “É como essa história de que jogar xadrez nos torna mais inteligentes; torna-nos mais inteligentes a jogar xadrez”.
Follet vs Pynchon
Tal como Luís Mourão, também o editor da Relógio D’Água, Francisco Vale, sublinha a “atracção” que hoje exerce sobre os criadores literários “a escrita para o cinema e a televisão”, e admite mesmo como “provável” que “Jane Austen, Hemingway, Scott Fitzgerald, Camilo e Eça estivessem hoje, se fossem vivos, a trabalhar nessas áreas e não em romance”.
O responsável da Relógio D’Água vê várias razões para que as “grandes obras literárias” tendam hoje a ser relativamente raras: da “perda do estatuto de referência cultural e política dos escritores, iniciada nos anos 60 do século XX”, à “dificuldade da crítica e dos leitores em distinguir os mais ou menos competentes fazedores de bestsellers, de Ken Follett a Dan Brown e David Nicholls, dos romancistas que provavelmente irão perdurar, como Cormac McCarthy, Foster Wallace, Jonathan Franzen, Thomas Pynchon, Zadie Smith e, talvez, Karl Ove Knausgård”.
Vale reconhece ainda que “a saturação dos caminhos já percorridos pela ficção, ao longo dos séculos, contém a ameaça da repetição”. Mas nota que há hoje outros factores que contribuem para aumentar a diversidade, como “a acção recíproca dos diversos géneros literários e artísticos”, muito presente na ficção actual, ou “a afirmação de literaturas como as africanas, que se alimentam de tradições orais e das experiências de emigração”.
Olhando para trás, o editor vê contextos sociais e políticos que, desde a Grécia de Péricles, se revelaram propícios à criação literária — e lembra “o teatro inglês do período isabelino, a literatura russa entre a libertação dos servos e a Revolução de 1905, a poesia romântica inglesa, o romance do Centro da Europa, de Kafka, Musil e Broch”, ou ainda “a criação literária nos Estados Unidos, em particular no Sul, nos anos 30 a 50 do século XX” —, mas também épocas de “asfixia criativa”, como as que se viveram “na U.R.S.S., apesar de Bulgákov e Vassili Grossman, na Alemanha nazi, na China das últimas décadas ou nos estados sujeitos a hierarquias religiosas muçulmanas”.
E é também por saber que há épocas e lugares mais favoráveis do que outros à criação literária que não se mostra catastrofista. Duvida que “estejamos perante um declínio da literatura” e não vê motivos para descrer que nos possam “aguardar magníficas surpresas”.
A obsessão da produtividade
Rosa Martelo concorda com Francisco Vale na convicção de que a triagem qualitativa das obras é hoje difícil e acha que a Universidade tem culpas nesse cartório. “A deificação da produtividade levada a cabo pelo capitalismo global também se faz sentir no plano das artes, literárias e não só, e na cultura”, diz. “Hoje, os autores de grande circulação não podem ignorar as lógicas do mercado, e mesmo quem estuda a literatura está sob os efeitos desta obsessão de produtividade”, o que, alerta, “gera em torno da criação literária uma espécie de linguajar constante, um ruído de fundo que nem sempre se traduz em muito que dizer”.
Como a generalidade dos inquiridos, a ensaísta também não duvida de que devemos em boa medida “às vanguardas históricas e à experimentação modernista” essa convicção de que “o valor estético tem a ver com a instauração do novo”. Mas acrescenta três ideias que podem ajudar a explicar por que é que, como sugere Barros Baptista, não conseguimos libertar-nos assim tão facilmente da forma mentis modernista.
A primeira é a de que “essas práticas do novo”, que passaram, por exemplo, pela “experimentação discursiva, a desagregação sintáctica ou a colagem”, se foram “tornando elas próprias canónicas e criando um gosto”. A segunda, que se liga com a anterior, foi desenvolvida pelo comparatista alemão Andreas Huyssen, que mostrou que nos anos 60 do século XX, “quando o pós-modernismo estava a emergir nos Estados Unidos, a Europa assistia a uma consolidação do modernismo”.
Em Portugal, “é só a partir dos anos 70 que se começa a pôr em causa essa ideia de novo”, diz Rosa Martelo, apontando as obras iniciais dos poetas Manuel António Pina e António Franco Alexandre como pioneiras da questionação irónica do novo. E mesmo assim, nota, ambos o fazem com “alguma ambivalência, como se estivessem a dizer: ‘Já não se pode escrever nada de novo, mas eu sou o primeiro a dizê-lo”.
A terceira ideia, a mais inquietante, resumiu-a o antropólogo Marc Augé na sua sugestão de que “a sobremodernidade é a transformação da modernidade em destino comum”. Isto é, interpreta Rosa Martelo, “a condição múltipla do sujeito, a evanescência das representações, aquilo que era o estilo dos modernistas, transformou-se na nossa vida quotidiana”. E a partir daí, diz, “ou a literatura representa isto, ou tenta contrapor-lhe alguma coisa”.
E o que se pode contrapor, pensa Rosa Martelo, talvez passe por novas sínteses que, sem prescindirem da autonomia estética conquistada pelo modernismo, mas também sem caírem na subordinação ideológica dos realismos sociais, “nos resgatem, pela autenticidade e singularidade discursivas, da mesmidade falsamente neutra e da normalização”. Um caminho que, nestes tempos de “confluência entre palavra e imagem visual”, poderá vir a passar pela generalização de “novas formas compósitas” que “juntem a literatura com outras artes”, um cenário que, nota Rosa Martelo, “desestabilizaria a ideia bloomiana de cânone literário”.
Da Bíblia a Bloom
O inquérito do El País, conduzido pelo jornalista Winston Manrique Sabogal e publicado já no final de 2014, incluía, além dos testemunhos dos muitos entrevistados, dois textos de opinião, respectivamente assinados pelo argentino Alberto Manguel – o autor de Uma História da Leitura acha que é a própria frase de Bloom que nada traz de novo – e pelo escritor e ex-ministro da Cultura espanhol César Antonio Molina, que tende a concordar com o crítico americano, sugerindo que vivemos uma época de “intensidade ténue” e defendendo que não só “não há nada de radicalmente novo na criação literária”, como “provavelmente não voltará a haver”.
Manguel recua à Bíblia para lembrar que “em todas as épocas e culturas” há “vozes que se elevam”, como a de Bloom, para repetir a declaração do livro de Eclesiastes de que “não há nada de novo debaixo do sol”. Mas o seu argumento principal, que Luís Mourão e Rosa Martelo também enunciam doutros modos, é o de que a “ideia de novidade foi um conceito inventado pelos modernistas para justificar as suas experiências artísticas”.
Esse propósito de inovar, observa, não passaria pela cabeça de Cervantes ou pela de Shakespeare: o primeiro “imitou deliberadamente a novela pastoral e de cavalaria” e o segundo “foi buscar vários dos seus argumentos a autores italianos”. No entanto, acrescenta, há em ambos “um tom, uma mudança de ponto de vista, uma revisão das ideias consabidas, que os convertem em algo único e notável”.
E Manguel acredita, ao contrário de Bloom, que vários autores continuam hoje a ter sucesso nessa alquimia e “iluminam o nosso século, como Cervantes e Shakespeare iluminaram o deles”. Escritores como Cees Notebom, com os seus “ecos de Ibn Batttuta e de Diderot”, W. G. Sebald, com os seus “vestígios de Sir Thomas Browne e do [Heinrich] Heine prosador”, Enrique Vila-Matas, com o que herdou de Laurence Sterne, Ismail Kadaré, continuando “a tradição de Heródoto e Homero”, Cynthia Ozick, que “estudou a obra de Henry James”, ou Pascal Quignard, com a sua “dívida a Montaigne”.
Servindo-se de Dante, um autor especialmente amado por Bloom, para enviar uma última farpa ao crítico americano, Manguel lembra que o autor da Divina Comédia condenou ao Inferno os que “foram tristes” no “doce ar que do sol se alegra”. Isto é, parafraseia o argentino, “aqueles que não sabem reconhecer no mundo a felicidade do que é criado sob o sol do dia de hoje”.
Uma condenação a que talvez o próprio César Molina não escape, já que o ex-ministro acha que enfrentamos “o ocaso das humanidades” e cita Bloom para defender que, em matéria de literatura, estamos “cada vez mais atulhados de lixo”. Um cenário para o qual concorrem, diz, “a industrialização a que submetemos a criação literária” e o facto de ser hoje dominante a “ideia de diversão e entretenimento”.
A excepção Sebald
Uma ideia que vários inquiridos glosam é a de que o novo na literatura só é relevante se de algum modo reflectir a tradição relativamente à qual inova. Um dos que salientam este ponto – que, aliás, o próprio Bloom decerto subscreverá, já que dedicou mesmo um livro, A Angústia da Influência, a teorizar esse processo – é o romancista espanhol Javier Cercas. A literatura, diz o autor de Soldados de Salamina, “é como a matéria: não se cria nem se destrói, só se transforma”.
Se Cervantes, Shakespeare ou Kafka tivessem sido “radicalmente novos”, defende Cercas, “não seriam tão bons”. Enrique Vila-Matas está de acordo: “Uma obra nova só tem sentido se se inscrever numa tradição, mas só tem valor nessa tradição se — como acontece com Diderot face a Sterne, com Joyce a respeito de Homero, ou com Valeria Luiselli quanto a Beckett — nos oferecer uma variação profunda, que nos devolva transformada a obra-prima” que lhe serviu de ponto de partida.
É também este mesmo critério que leva o ficcionista colombiano Juan Gabriel Vásquez a apontar W. G. Sebald como um autor “absolutamente novo”, justamente porque consegue, “apoiando-se na tradição”, levar a literatura “a lugares onde ela nunca tinha estado”.
Se a excepcionalidade de Sebald parece reunir um amplo consenso, vários inquiridos citam outros escritores, de Vila-Matas ao norueguês Karl Ove Knausgård, de Claudio Magris ao recém-nobelizado Patrick Modiano, da poetisa Anne Carson ao romancista português António Lobo Antunes, referido ao El País por Claudio López de Lamadrid, do grupo Penguin Random House.
Um dos mais interessantes testemunhos recolhidos pelo diário espanhol vem de Antonio Ramírez, da livraria La Central, que procura perceber por que é que, “como leitores, temos a sensação de que a literatura da primeira metade do século XX possui uma densidade, uma complexidade e uma força” que, por comparação, faz com que “a literatura de décadas mais recentes pareça lânguida”. Uma explicação, sugere, é que “as convenções literárias vindas do século XIX estão a esgotar-se totalmente” e, por isso, “a literatura contemporânea só alcança intensidade quando está muito consciente da fragilidade do solo sobre o qual se apoia, quando sabe que atingiu o limite, interroga a sua própria condição e tenta tornar explícitas as regras do jogo”.
Mas Ramírez adianta uma explicação complementar, e que talvez tenha alguns pontos de contacto com essa reivindicação de uma literatura extrema formulada por Pedro Eiras: a de que a intensidade que outrora encontrávamos na ficção migrou, nas últimas décadas, para os “testemunhos da experiência inenarrável dos campos de extermínio no século XX”. Nesta perspectiva, os sucessores de Joyce e Kafka chamar-se-iam hoje Primo Levi ou Imre Kertesz, Varlan Shalamov ou Jorge Semprún.
O mundo de André e. Teodósio é, sobretudo, um mundo que esteve sempre aberto para o desconhecido. Podia empunhar um cartaz a dizer: “All you need is love!” O love é o seu assunto.
O Expresso apontou-o como um dos portugueses mais influentes de 2012. A informação tem tanta importância quanto: “O meu pai comprava livros ilegais na Barateira. Esta sede de informação estava nele desde cedo.” As duas estão ligadas. Para compreender o percurso — e a cabeça singularíssima deste alien barroco —, é preciso fazer arqueologia. Conhecer as fundações onde tudo começou por fervilhar e se descobriu o mundo com espanto.
Encontrámo-nos em casa. Tem uma biblioteca poderosa que organizou por cores. Puro gesto excêntrico. Veste uma camisa de leopardo, um colar oferecido pela mãe. Foi também a mãe que ofereceu a colcha que está sobre a cama, de algodão, estampado dourado. Está no chão da sala um vinil da Concha (lembram-se dela no Festival da Canção a cantar: “Qualquer dia, quem diria”?). À entrada, um Apolo de cartão, elegante, inspirador. Tudo conjugado, parece uma conjugação impossível. Artificiosa e impossível. E depois não é. É original, surpreende, abre para o infinito. Como o seu teatro. Que não procura nada, mas que está sempre a encontrar — e a integrar.
A casa fica a dois passos do Teatro Praga, num bairro popular de Lisboa. Corredor directo entre uma coisa e outra. A vida como ela é na pastelaria da esquina. Pastelaria de “sai um galão bem quente” e balcão de metal. E pérolas ditas pelas pessoas de todos os dias que olham para a vida sem peneiras. Pérolas que ele rapina e encaixa numa espécie de puzzle onde está também a vida dos livros. André e. Teodósio é... como qualificá-lo numa palavra? Talvez artista. Um verdadeiro artista. Músico, cantor, actor, encenador, dramaturgo. E amante (i.e., aquele que ama). Com quem tem afinidade de sangue? Estive a estudar a minha árvore genealógica e descobri que sou descendente directo de Adão e Eva. A minha afinidade de sangue é o mundo. Está cá tudo inscrito. Isso ajuda-me a fugir de uma ideia de nação, de família. Como se a sua pertença fosse a qualquer coisa mais abrangente? Sim. Sintetizo o caos inicial. Todos sintetizamos o caos inicial, temos em nós as estrelas, o hélio. É muito importante fugir de qualquer naturalização, de qualquer essência. Claro que é uma falsa questão… Provimos de um sítio que é mais circunscrito do que isso. O que é que importa da sua árvore genealógica mais estreita para compreender a sua cabeça? Venho de duas famílias díspares da Beira Baixa. Os meus pais conheceram-se num comboio, a vir para Lisboa. A família do meu pai é de latifundiários que trabalhavam com as pessoas do campo. A família da minha mãe é aristocrata, de mistura escocesa e espanhola, e é tudo maluco. Realizadores, escritores. Há histórias de a minha bisavó desenhar ovnis. Aberta ao infinito. Sim. Sou descendente de Adão e Eva mas virado para o infinito — para não fazer sentido nenhum. Sou muito ligado à terra, sendo que a terra não faz sentido nenhum. É só uma parte de uma totalidade caótica. Procura o sentido no que lê, no que faz? É o contrário. Estou aqui e sei que nada faz muito sentido. Estou aqui e não quero que isto tenha um sentido. A ter, que tenha muitos sentidos. Até não fazer sentido. É como se em vez de ser só uma coisa, fosse capaz de estar sempre a mudar de ficção. É uma fusão estranha... Sou um barroco alien [risos].
A sua mãe falava consigo em português? Sim, ela é portuguesa. Quando era nova, assinava nos livros Lúcia Scott. (O apelido é Escoto. Foram traduzindo o Scott para português.) Nunca pertenceu a Penamacor. Era uma cidadã do mundo. O seu percurso é marcado por viagens constantes e por um período que passou fora. Sente-se estrangeiro em relação a quê? Não me sinto estrangeiro em relação à língua. Apesar de não a dominar e não a ter aprendido bem. Estive até ao 6.º ano em Portugal. Depois, fui para os Estados Unidos e aprendi Inglês. Não sei como é que as palavras são feitas, qual é a sua etimologia, como é que estão relacionadas. Nunca me senti de um só lugar. Os meus pais sempre me incentivaram a pensar o fora. A sua geografia, em Lisboa, era qual? Nasci na Lapa, depois estive em Paço de Arcos, depois Olivais. Frequentei uma escola católica. Os meus pais não são católicos. Acho que me puseram lá para não gostar da escola católica [risos]. O que é que foram fazer para os Estados Unidos? O meu pai era militar e concorreu a um cargo na NATO. Tornou-se administrador da base de dados da NATO. Nos anos [19]80 tinham uma vida muito boa. Quando é que teve a noção de que era artista e de que a sua vida ia ser esta? Sempre tive um fascínio por artes. Desde novo queria ser músico. Lia muito porque o meu pai queria ser escritor. Desenhava caras de pessoas, olhos. E tinha jeito para as composições e para os teatrinhos da escola. Tive uma bolsa nos Estados Unidos, estudei flauta transversal, tuba, toquei trombone. Em Portugal, deu-me uma traquitana qualquer e pensei: “Vou para Direito.” Não correu bem. Fui para Música e tornei-me músico profissional. Tocava em orquestras. Depois integrei o coro Gulbenkian e fui estudar canto. Percebe a traquitana do Direito? Estava meio perdido. O Direito parecia-me assim regrado, como a vida militar do meu pai. E dava-me a ilusão de poder fazer justiça. Uma coisa muito importante, fazer justiça. Depois conheci um rapaz. Convidaram-me para fazer um espectáculo no Teatro Nacional e conheci o Pedro Penim. Apaixonámo-nos e pensei: “Isto agora não vai correr bem. Ele não pode ir estudar Música, ele faz teatro. Não quero estar com ele só à noite como as famílias normais. Quero estar com ele a vida toda. Vou estudar Teatro.” Os meus pais: “Teatro? É Direito, é Música, tens de ter tino e decidir.” Fui para Teatro. Tinha 21 ou 22 anos. O amor a decidir a vida toda. Faço por isso. Para mim, a vida é o amor. É o que interessa. Tudo o resto são placebos para evitar entrar numa depressão. (Sou muito dado à tristeza.) Tudo o resto são placebos para ir continuando.
O Pedro era da formação do Teatro Praga? Era. Era uma companhia ainda conservadora, de alguma forma. Quando entrei, consegui trazer uma certa dose de desprendimento em relação ao teatro. Nunca gostei muito de teatro, na verdade. Como assim? Tinha lido sempre imenso, ficção, ficção. Não conseguia ver pessoas a fingir que eram coisas em palco. Não percebia aquele tipo de representação mimética, caricatural. Diziam o texto de uma forma que não me interessava. Adormecia. Mas o enredo, a força vital da palavra, que tanto existe nos livros como no teatro, isso interessava-o. Sim. Mas não a representação daquilo que podia ler em livros. Preferia ler, sublinhar. Sublinhar é uma maneira de se projectar naquilo, de se identificar mais intimamente com o que lê? Sim. De tornar aquilo meu. Os livros que leio têm de ser meus, já não são do autor. O encontro com o Pedro fê-lo encontrar um fio condutor? Foi um princípio organizador da sua diversidade? O que ele me ofereceu foi o sítio que eu recusava e que ele defendia como sendo o sítio onde todo o caos podia conviver. E que não existia na música. A música tinha uma herança histórica. Não era tão permeável como o teatro. Quando entro na Praga, digo isto: “Temos de pensar o texto de uma forma musical, fora da musicalidade que está associada a um dizer teatral.” Os cenários não deviam ser tão teatrais. Deviam ser como a casa dos meus avós ou ter a lógica de decoração da minha mãe, que mudava de três em três segundos (agora a casa é gótica, agora é nova-rica). São assumidamente ficções [no caso da minha mãe], tão ficcionais como no teatro. O teatro permitiu trazer um bocado de real perante a lógica do texto. Parecendo a fantasia, o desvario, trata-se, no fundo, de trazer o real. Exacto. E ali conseguia ter tudo. Tocar, fazer artes plásticas, escrever. E, para além disto, tudo o que não tinha pensado ainda, podia trazer também, quer fosse filosofia, culinária, roupa, televisão. Esse é o lado da genealogia Adão e Eva? Tudo pertence a tudo, tudo vai dar a todo o lado. É isso. O que sabotou a sua vida linear? Que grãos de areia se intrometeram na engrenagem? Na verdade, ela nunca foi linear. Não, nada. Tive muita sorte. A info-exclusão: é importante saber que há pessoas que não tiveram esta oportunidade. É isso que me faz ser defensor do Estado social e defensor de uma certa ideia de esquerda. Mais próxima agora do Livre.
É simpatizante? Completamente. Tive essa sorte, nos anos [19]80, de poder viajar, ter os livros que queria. O dinheiro possibilitava, como hoje, ter acesso à informação. Não quer dizer que produza conhecimento, mas experimentar é atravessar o fogo. “O Homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”, diz Antígona. É. Todas as pessoas deviam ter acesso a uma vida não linear. Ou, mesmo que essa linearidade exista, que alguém lhes diga que é só uma parte de uma totalidade. O que acaba de dizer traduz uma ausência de medo. Aquilo que faz as pessoas escolher, ou serem escolhidas, por uma vida linear, tem que ver com uma ideia de controlo sobre os acontecimentos da sua vida. Escrevi uma vez num texto: “Quando as nossas mães nos dão à luz, nascemos nós e o nosso medo.” Tem-se sempre medo. Mas ou o medo toma conta de nós ou tentamos domar o medo. Nunca se sabe se se vai flipar, se se vai ficar doido. [O desafio] é não ficar perplexo perante aquela sombra gigante, delinear os contornos daquela sombra, perceber que é só um padrão. Porque é que não reproduziu o caminho dos seus pais? Casar, ter filhos, uma vida razoavelmente arrumada. Os meus pais, apesar de terem tido uma profissão, nunca tiveram uma vida muito linear, afectivamente. Tiveram as suas coisas, com certeza [risos]. Não tiveram uma vida como a dos filmes. Havia ali qualquer coisa a quebrar a jarra de cristal perfeita. E isso ajudou-me muito. Perguntou-se: o que é que faço com estes cacos? Exacto. É arte. Antes era uma jarra, agora são cacos, é uma escultura. Seria impossível para mim ter uma vida muito linear. Se bem que afectivamente seja hiperlinear. Não namorei muito, quero é namorar para o resto da vida. Romântico. O amor interessa-me como ideologia. É o rubi que quero talhar. Consigo falar sobre milhares de coisas, de filosofia, biologia, teatro, estética. Sobre o amor não consigo falar, e tenho uma obsessão com o amor. Não sei muito bem porquê… é porque me faz feliz. Ou então porque o amor é o detonador, é o motor. Sim, o amor é o detonador. Tem coisas que nem sei o que são porque não tenho palavras para elas. Não é dependente do meu conhecimento do mundo — está lá. É muito bonito, reduz outra vez a importância do eu.
Ao mesmo tempo, tudo aquilo que se faz é afirmação do eu, da singularidade. O que faz profissionalmente anda muito à volta das questões da identidade. É verdade. Mas isso é um erro táctico meu [risos], ainda estou preso a uma lógica primitiva. Quero estar no futuro. Há aquela coisa dos gender bender, das pessoas sem género. Eu digo que o próximo passo é a identity bender. A identidade é que está a mudar. Agora posso ser uma cadeira, amanhã sou uma flor. E depois sou um ser humano e depois um cão. Amanhã ou numa questão de segundos. A palavra “metamorfose”, o que é que lhe ocorre dizer sobre ela? Ocorre-me essa escolha deliberada de ficções. De irmos mudando as nossas ficções. Gosto da palavra “metamorfose”. Tenho medo de que isto também seja representativo de um tipo de histeria que possa ter em mim. Não é muito agradável. Não queria achar que estou à procura de ter alguma coisa e que vou mudando até a encontrar. Explique melhor. Não é que queira saber o que sou como ser humano, mas tenho medo de que esta ideia de mudança de identidade, de metamorfose constante daquilo que sou, represente, não aquilo que sou, mas uma histeria em busca de poder ser alguma coisa. E como não quero definir-me, como não quero ser como o Heidegger e estar à procura de uma essência, não quero achar que há uma essência ou um início. Não tem um fascínio pelo momento inaugural, pelo instante da deflagração? O momento inaugural não é uma coisa, é uma relação de coisas. Por isso é que me interessa mais a relação do que um particular. Interessa-lhe a constelação. Exacto. Não quero achar que estou na constelação à procura de uma estrela. Quero manter-me só no plano da experiência, de queimar os pés com o fogo. Não lhe interessa o que se extrai disso? O que se extrai da rasura, da cicatriz. Interessa-me como processo de experiência, mas não quero deixar muita informação, muitas marcas. Ela pode perpetuar-se, pode tornar-se essencial, tradição, e não quero que isso aconteça. Isso é o que leva as pessoas, ou que já me levou a mim em determinadas alturas, a não conseguir relacionar-se com o medo. Como se existisse uma origem para aquela sombra que ali está presente. Não me quero preocupar com grandes respostas. Tenho dificuldade com escolas, academias. Muitas vezes estão alicerçadas nesse saber verdadeiro. E ele não é verdadeiro, está é em relação com o outro. Há pouco fotografámos na sua biblioteca. Os livros estão alinhados por cores! Lembrei-me da biblioteca do David Mourão Ferreira, que estava organizada numa sequência cronológica e não por estilos ou ordem alfabética. É, as coisas estão em relação umas com as outras, no mesmo momento. O tempo não interessa, mas estão todas sequenciais. Não há uma que seja a origem. Está a apanhar uma grande seca? Às vezes não digo nada com sentido. Vivo numa bolha qualquer. Os meus amigos dizem sempre que não saio de casa, não falo com ninguém. Estou sempre fechado. Na Internet, a ler livros, a ver filmes. Viver numa bolha protege-me muito. É muito difícil entregar-me ou conhecer uma pessoa. Ninguém sabe nada da minha vida. Agora vai ficar-se com um vislumbre. Sim. Mas ninguém sabe como falo com os meus amigos, como é que estou com eles, a intimidade. Essa palavra- rubi, essa palavra-jóia, intimidade... É muito cara, a intimidade. É o sítio onde se une tudo, é na intimidade. Se fosse uma flor, seria qual, a intimidade? Ou uma pedra preciosa. Âmbar. A intimidade é âmbar. Fecha-se, cristaliza-se, mas consegue-se ver tudo lá dentro.
Eu chamaria a isso “essência”, mas não gosta da palavra “essência”. Recusa-a. Tenho um problema histórico com a palavra “essência”. Já representou tanta coisa negativa. Sempre que a oiço, é como se houvesse uma origem. Começo a ficar tolhido. Começo a disparar: “Não há razão, não há essência. Podes ser o que quiseres! Não és, estás a ser.” Não há ser, estamos a ser? É. E vamos estando a ser. Estamos a ser em relação, simétrica ou assimetricamente com as coisas no mundo. Voltando à genealogia de que comecei por falar: tem afinidade de sangue, está em relação com Zizek, Bela Lugosi, Antígona, Cleópatra, Susana Pomba, Concha, Tony de Matos. Shakespeare, claro. Fellini, muitíssimo. Tudo faz parte do mesmo? Sim, somos todos primos [risos]. Há primos em primeiro grau, em segundo grau. Estas são filiações mais íntimas? O seu mundo é essa coisa sincrética onde entra tudo? Não posso dizer que não. Sou feito deles. Os meus pais, os meus amigos, o Godard, o Zizek, o Fellini, nem sequer consigo pensar o que é que poderia ser se não existissem. Não tinha sobrevivido. Tinham-me posto em bebé na relva e eu morria. De certeza que estava lá o Fellini a dizer: “Agora tens de caminhar até ao supermercado” [risos]. O que é que deve ao Fellini? Há uma peça encenada pelo Teatro Praga que tem um excerto do filme Cidade das Mulheres. Nossa? Já não me lembro. Não tenho boa memória, esqueço-me de tudo. Passa a ser tudo meu, está cá mas não sei o que fiz, de onde é que vem. Reciclo-me muito nos textos, têm sempre frases repetidas. O que eles têm todos em comum é esta desnaturalização. Passam a ter outra natureza. Muda a perspectiva. E não muda a perspectiva através da alienação, é através da inclusão. Todos fazem uma espécie de exaustão daquilo que já existe e que se consegue reconhecer. Mas nada daquilo bate certo, está sempre tudo disforme. Fellini tem um lado grotesco e disforme muito acentuado. O que tenho com ele é esse lado disforme, a capacidade de encontrar na coisa mais prosaica um outro ponto de vista. As pinturas de Picasso foram importantíssimas para mim. De repente, há um quadro que em vez de ser o ponto de vista do pintor é o da criança que está a ser amamentada. Ainda que pareça, não é fácil mudar o ponto de vista. Exige distância crítica, pormo-nos em causa. Será que conseguimos? Às vezes, não se produz pensamento nenhum, não se chega a lado nenhum. Sou bélico, gosto de ganhar conversas, mas não tenho problema em admitir que estou errado, que estou a pensar ancorado num conhecimento hegemónico, que não permite diferença. Uma vez entrevistaram o Godard e perguntaram: “Porque é que faz uns filmes tão diferentes dos outros?” O Godard responde: “Não faço filmes diferentes. Os outros é que fazem os filmes todos iguais.”
Interessa-lhe, claro, mais que tudo fazer a pergunta. Sempre. Ou ver que a pergunta estava errada. O que é teatro? É uma pergunta errada porque significa que o teatro é alguma coisa. E o teatro não é nada, é aquilo que quisermos que seja. É como a primeira frase do Tractatus do Wittgenstein: o mundo é tudo o que quisermos que ele seja. Eu quero é o infinito! Quero é que não haja respostas e que toda a gente seja muito feliz e que estejamos todos a viver e a fazer amor. [risos] Fazer amor ou fazer o amor? As duas coisas, obviamente [risos]. Gosto muito de fazer amor. A conversa estava quase abstracta, e ficou concreta, com o fazer amor. Porque é que está a dizer isso? Porque é verdade. É o tipo de frase que as pessoas não dizem habitualmente. Não dizem por pudor, por convenção social. Não deve haver pudor em relação a nada. Gosto de pensar espectáculos, mas não gosto de fazer espectáculos. Gosto de ter ideias, mas não gosto de as fazer. Não quero entrar em espectáculos, não quero escrever textos, não quero fazer nada. O seu trabalho é pensar e a sua diferença assenta nisso? Em relação ao amor, não gosto só de o pensar [risos]. As peças são um lugar de pensamento? Claro. Lugares de compreensão do mundo? Sim, de disponibilização de ferramentas para a compreensão do mundo. A arte é um legado do pensamento, não é da materialização. Não precisávamos da materialização, toda a gente sabe. Sabe que são três pessoas que sabem? Tem noção disso? [risos e comoção] Não quero aceitar isso. Quero aceitar que toda a gente pode pensar isto. Gostava mesmo de estar com as pessoas todas. A maneira como a cultura se foi desenvolvendo no Ocidente é que castra muito. Por falar em castração. Quando é que deixou de ser criança? Nunca fui muito criança. Era puto e fazia campanhas políticas. “É coisa de adulto, tomar conta do mundo.” Nunca me dava com os filhos. Queria era plasmar o mundo dos adultos. Tipo Kidzania avant la lettre. Queria crescer depressa? Sim. E agora sofro de uma coisa: quero desaparecer muito depressa. Já cresci e estou em “rame-rame”.
Está numa fase deprimida? Não, estou bem. Ao crescer, sempre quis mudar o mundo. E quero disponibilizar coisas para que o mundo mude. A realidade desmente isso a toda a hora. Vemos a Rússia a invadir a Ucrânia, passos históricos atrás. O que perdi foi uma ingenuidade vital que tinha. Não a perdi há muito tempo. Estive a ler excertos de peças suas. Gostava de devolver-lhe algumas ideias que sublinhei. Uma está na Cenofobia: “Ah, cair em mim, ah, finalmente ser eu.” Esse foi o primeiro texto que escrevi para ser editado. Cenofobia, a palavra é estranha. Ao mesmo tempo que quer dizer medo de estar em espaços muito abertos, pode descrever o medo de estar em cena. Fale-me deste cair em si. Decidi fazer um texto em que me concentrava em mim, como entidade, como sujeito. Sendo que esse sujeito, durante todo o texto, está a tentar fugir dele, a matá-lo. É a ideia de que cá dentro não há nada, mas que consigo articular estas coisas todas e afirmar: “Se calhar, isto sou eu.” Estou a ser qualquer coisa. A única coisa que posso fazer é cair em mim. Deixar de ter medo de estar em espaços abertos e deixar de ter medo de estar em cena. Um amigo meu diz que vivemos em solidões partilhadas. É um bom caminho. Esta é a minha solidão, eu partilho-a consigo, você partilha a sua solidão, e é nesta relação que vão surgindo coisas. Na peça Terceira Idade, diz assim: “Avança-se na trama e eu fico tramado.” É o que sente? Sim. Vamos ficando tramados porque [a vida] é cada vez mais complexa. É como escrever um texto. Vai-se tentando sintetizar e simplificar para que não polua, para retribuir aquilo que se consumiu. Quanto mais se avança, quanto mais se vai pensando e conhecendo, mais tramado se fica: fica-se enredado. Em 2012, foi considerado pelo Expresso uma das 100 personalidades mais influentes do país. Em 2013, caí [risos].
Em 2014, apresentou no Teatro Nacional, essa instituição, uma peça de grande sucesso, a Tropa-Fandanga. A expectativa em relação a si e ao seu trabalho é um peso? A Praga começou com um grupo circunscrito de pessoas que achavam a companhia curiosa. Hoje há uns milhares que a conhecem e que precisam dos nossos espectáculos como matéria de pensamento. Nunca deixei de arriscar como arrisco. É diferente falar da Tropa Fandanga, feita por várias pessoas, e falar de espectáculos só meus. Quando são espectáculos só meus, é claríssimo que são quase sempre mal recebidos. Porquê? Sou muito ditador quando sou eu a fazer. Nunca deixei de querer experimentar. As obras que faço são mal recebidas pela crítica, apesar de serem bem recebidas pelo público. Isso interessa-me muito. Quer dizer que nunca estamos de acordo com uma ideia de ver teatro, ópera, dança. Quer dizer que fogem ao cânone.
Sim. Que estamos sempre meio fora e que as pessoas estão a receber isso. Foi uma surpresa ver-se entre os mais poderosos? Penso que resultou de, com a minha idade, ter feito coisas que ninguém tinha feito. Em Portugal, fiz espectáculos para a Companhia Nacional de Bailado, o São Carlos, o Teatro Nacional Dona Maria, o São Luiz, o CCB. Tinha 33 anos, é meio inédito. A sua carreira internacional é pujante. Fazemos esta entrevista depois de regressar da Alemanha e Suécia, dentro de dias parte para a Bélgica e depois Finlândia. E vamos para o Théâtre de la Ville [Paris]. A trama vai-se adensando. As instituições estavam cristalizadas e apanhei uma época em que estava tudo em mudança, com novas pessoas, novas maneiras de pensar. Tenho facilidade porque fui músico, escrevo, consigo estar em vários sítios ao mesmo tempo. Como a ideia de teatro que temos não é dependente de uma técnica, a teatral, mas sim de pensar, isto [que fazemos] é aplicável a tudo, às artes plásticas, à dança, à ópera. Consigo pensar sobre todos estes suportes artísticos porque não tenho suporte. A não ser a sua cabeça. Sim. Que é a cabeça do Fellini, do Bela Lugosi, do Godard, do Zizek, do realismo especulativo. “O que se quer é o desconhecido, andar para lá do horizonte a caminho do caos.” A frase consta de outra peça, escrita por José Maria Vieira Mendes. Olhemos para o fio do horizonte. O que é que há para lá? É o abismo. Conhece a pintura do Caspar David Friedrich? Sou como esse senhor. Gosto de estar ali, nem muito atrás, para não deixar de ver, nem muito à frente, para não cair. Mas tenho medo do abismo. O que é paradoxal. Tenho medo, ainda, de deixar de me entender com os outros, de estar cada um por si. É uma imagem tremenda de abismo: deixar de se entender com os outros, deixar de se entender com o mundo, ficar cada um por si. Como se as estrelas ficassem sozinhas e se acabasse a constelação. Uma coisa são as coisas circunscritas aos sujeitos, à sua praxis. Tem de haver um arco fundamental que as una e que as emoldure num determinado tipo de agir ou de estar. Os direitos universais. Se está cada um por si, a experimentar o seu mundo, entramos num jogo alienado. Desafiaram o crítico Augusto M. Seabra a linchar o Teatro Praga para a revista que a companhia edita. Então, como é que o lincho? (Parêntesis: vocês dizem “a Praga” como se se referissem a uma peste. Uma peste boa.) Linchar é pôr em causa. É porem-me um espelho à frente e ter de lidar com isso. Adoro o espírito crítico. Adoro pessoas que estão constantemente a pôr espelhos umas às outras, que se criticam e põem em causa. Que não vão dar festinhas às outras nem vão confirmar que elas têm razão. Quer dizer mais alguma coisa sobre o amor?
Roma ao contrário é amor. Não sei muito bem o que é que o amor é, mas sei que quando ele não existe é horrível. Não quero nem Roma nem o horrível, quero o amor, que está ali no meio. É a palavra que sobrevive a este jogo de pensamento. Há outra ainda entre Roma e Amor: romã. Isso é muito judaico, é um fruto sagrado. É um fruto maravilhoso. É também uma imagem da multiplicidade de mundos de que estivemos a falar. Tantas partículas dentro da unidade da romã... Vou deixar de dizer que vivo numa bolha e passar a dizer que vivo numa romã [risos].