segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Degolação dos Inocentes


Tris trás. Zigue zague, rigue rague, milgue malgue. A pele era tão recente que saía íntegra. Crianças e nozes de casca recém-formada.
Os guerreiros tinham raízes milenárias e o céu cabeleiras embaladas pelo hálito dos anfíbios. Era preciso fechar as portas. Pepito. Manolito. Enriquito. Jaimito. Emilito.
Quando ficarem loucas, as mães hão-de querer construir uma fábrica de chapéus de pórfiro, mas com esta crueldade nunca poderão atenuar a ternura dos seus peitos derramados.
Os tapetes eram enrolados. O ferrão da abelha tornava possível o manejo de espada,
Era necessário o ranger de ossos e o rebentar dos açudes dos rios. Uma bacia e basta. Mas uma bacia que não se assume com o jacto interminável que há-de soar durante três dias.
Subiam às torres e desciam até aos búzios. Por fim, uma luz de clínica venceu a untosa luz do hospital. Já era possível operar com todas as garantias, Iodofórmio e violeta, algodão e prata de ouro mundo.Vão entrando! Há pessoas que se atiram das torres para os pátios e outras, desesperadas, que espetam tachas nos joelhos. A luz da manhã era cortante e o vento oleoso tornava possível a ferida menos esperada.
Jorgito. Alvarito. Guilhermito. Leopoldito. Julito. Joseíto. Luisito. Inocentes. O aço precisa de calores para criar as nebulosas, e lá vamos à incansável lâmina! É melhor ser medusa e flutuar, do que ser criança. Alegríssima degolação! Função lógica do sangue sem luz, que sangra as suas paredes.
Chegavam das ruas mais distantes. Todos os cães levavam um pezinho na boca. O pianista louca apanhava unhas rosadas para construir um piano sem emoção, e os rebanhos baliam com os pescoços partidos.
É preciso ter duzentos filhos e entregá-los à degolação. Só desta forma seria possível a autonomia do lírio silvestre.
Vinde! Vinde! Aqui está o meu filho tão macio, o meu filho de pescoço fácil. Poderás degolá-lo facilmente no patamar da escada.
Dizem que está a ser inventada a navalha eléctrica, para reanimar a operação.
Recordais-vos do rouxinol com as duas patas partidas? Estava entre os insectos criadores dos frémitos e das cuspidelas. Pontas de agulha. E teias de aranha sobre as constelações. Dá vontade de um verdadeiro riso pensarmos como a água está fria. Água fria nas areias, nos céus frios e nos dorsos de caimão. Aqui, nas ruas, corre o mais escondido, o mais saboroso, o que bate os dentes e faz empalidecer as unhas. Sangue. Com toda a força do seu g.
Se medirmos e estivermos cheios de piedade verdadeira, a degolação parecer-nos-á uma das grandes obras de misericórdia. Misericórdia do sangue cego que, seguindo a lei da sua natureza, quer desaguar no mar. Nem sequer houve uma voz. O chefe dos hebreus atravessou a praça para acalmar a multidão.
Às seis da tarde não restavam mais de seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas as feridas já estavam todas secas.
Já todo o sangue cristalizara quando as lanternas começaram a aparecer. Nunca haverá no mundo outra noite igual àquela. Noite de vidros e mãozinhas geladas.
Os seios enchiam-se de leito inútil.
O leite materno e a lua travaram a batalha dos mármores e lá deixava espetadas as suas últimas raízes enlouquecidas.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 38/40

sábado, 23 de janeiro de 2010

Atmosphere - Joy Division

História deste galo

«Na mesma manhã em que foi aprovado o projecto de abrir a Gran Vía, que tanto contribuiu para deformar o carácter dos actuais granadinos, don Alhambro morreu.
Quatro velas. Four candles.
Ninguém no seu enterro. Sim. As andorinhas. The Swallows. Uma pena.
A seguir ao enterro, o galo saiu pela janela e atirou-se ao perigo da rua e à má vida. Chegou a pedir esmola aos ingleses na Porta do Vinho, e fez-se amigo de dois anões que tocavam flauta e vendiam touros de doce. Um verdadeiro vadio. E depois desapareceu. » (pp.36)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

Fatalidade

O rosto que mereces está sempre noutro espelho.


José Mário Silva in Efeito Borboleta e outras histórias. Oficina do Livro, 2008

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Aia

«Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!...Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrada ao punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios de Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
-Salvei o meu príncipe - e agora vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração. (pp.162)

Eça de Queiroz in Contos. Edição «Livros do Brasil», Lisboa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

«Desenhado com lâmpadas eléctricas, não custava nada lermos no escuro: Estação de São Lázaro.
São Lázaro nasceu muito pálido. Deitava um cheiro a ovelha molhada. Quando lhe davam açoites, lançava pela boca torrões de açúcar. Ouvia os menores ruídos. Uma vez confessou à mãe que podia, pelas batidas, contar de madrugada todos os corações que havia na aldeia.» (pp.27)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

domingo, 17 de janeiro de 2010

Deep Purple - Shield

III Marânus, Eleonor e a Pastora

Vinda no brando zéfiro tremente,
Uma nuvem o sol escureceu.
E Eleonor, essa Deusa, novamente,
Diante de Marânus aparece.
Um crepúsculo terno diluía
A nitidez cortante das arestas.
E no cinzento azul que se ouvia
Brumoso som de arrefecidas lágrimas.
Era a sagrada luz, naquele instante
Em que se torna sombra; e, sem deixar
De alumiar os campos, já permite
O nascer das estrelas e o cantar
Dos pássaros sedentos de penumbra.

Era o sol, comovido, e extasiado,
No seio duma nuvem, radiando
Com um fulgor anímico e velado.

E Eleonor, tão alta e inacessível,
No seu divino encanto e formosura,
Emanava outra luz espiritual,
Que as pedras embebia de ternura...

E Marânus olhava para aquela
Aparição! Sonho encarnado! Amor!
Alma tão evidente que era corpo,
Perfume tão intenso que era flor!

E a voz de Eleanor, etérea chama,
As trevas dissolvendo, assim falou:

«Sou aquela que é amada e que não ama,
Porque meu ser é eterno e virginal.
Eu vivo além do amor e da tristeza,
E destes belos montes solitários,
E de amplidão que envolve a Natureza:
O fluido mar, onde as estrelas nadam...

«Serras doiradas, cristalinas fontes,
Ondas, campos, manhãs, tudo o que abrange
A curva, em roxa cor, dos horizontes,
É para mim a Sombra originária;
Sombra de mãe, remota e dolorida,
Que ainda me traz ao peito e acaricia...
Morte de que descende a minha vida,
Como da noite morta a luz dos astros.

«Tu foste para mim o que a semente,
Na escuridão da terra sepultada,
É para a flor gentil da Primavera,
Apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
São talvez teu passado; misterioso
Tempo em que o mundo trágico ensaiava
Seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
Outra vida sonhaste, mais perfeita...

«Sonhaste-me...e fui dada à luz do dia...

«Vivo em teu coração; mas, em ti próprio
Há tão grandes distâncias como aquelas
Que inundam de penumbra e silêncio
O espaço que medeia entre as estrelas.

«E que importa a distância que separa
Teus lábios dos meus lábios? E que importa
Que eu seja luz eterna e sempre clara
E tu sombra carnal e transitória?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
Se nos prende o olhar à estrela e o mar profundo
À sede que o sol tem das nossas lágrimas?

«Sou aquela que é amada; mas não amo,
Porque o amor odeia o que é eterno;
E as suas labaredas se alimentam
Do que é mudança, tempestade, inferno!»

Logo, a Pastora, inquieta: «És o demónio,
Que vais pisando a sombra caminhante
Deste homem que delira e tem, na fronte,
O Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
Nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
E se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
Que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
De condenados, de mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
O cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
De Deusa e não humana, desconhece
A sagrada volúpia da tristeza
E o antegosto abismático da morte.»

E Eleonor, sorrindo: «Eu te perdoo
Essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida

A Donzela, mais pálida, escutava
Aquela voz - tão séria! - de Eleonor
Que os ermos ventos frios imitava,
Quando perpassam na ramagem densa:

«Solitária Pastora, que eu avisto,
Encantada nas brumas da Natura,
Tu não vês o lugar onde eu existo
Nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
Nem o prazer infindo! E a doce luz
Dos teus olhos, às vezes, é tão triste
Que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
Em efémero barro quis moldar;
E os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
Que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
Que separa dois reinos, como tu,
Contemplas uma rosa, nessa infância
De Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
Fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
Para o nocturno e trágico rochedo...
E eu o que sou para ti? O mesmo que és
Para as flores do campo; o novo ser
Dum novo Reino; a lama, a esplendidez
Em que a vida, por fim, se converteu.

«Tu és o amor amante; eu sou o amor
Amado. Eu sou a vida e tu somente,
És aquilo que vive. Eu sou a dor
E a dor não sofre, não, mas é sofrida.»

E Marânus, depois: «Eu te prometo
A sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
E também para a grande solidão.»

E Eleonor, estendendo a mão direita,
Apontou-lhe o horizonte montanhoso,
De onde a florida aurora nos espreita,
Por entre névoas de íntimo fulgor.


Teixeira de Pascoaes in Marânus. Assírio & Alvim, 1990

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Os murmúrios da floresta

A floresta estava agitada.
Naquela floresta havia sempre um murmúrio, um murmúrio regular, surdo como o eco de sinos longínquos, tranquilo e vago, como uma suave romança sem palavras, como uma recordação do passado. Aquela floresta estava sempre cheia de murmúrios, porque era muito velha e nunca tinha sido violada pelo machado dos lenhadores. Os altos pinheiros seculares erguiam os seus troncos vermelhos, como um exército sombrio, cerrando as copas verdes em espessas abóbadas.
Debaixo destas, tudo era calmo e cheirava a resina. Através do tapete de agulhas verdes, que cobria a terra, cresciam grandes fetos fantásticos, completamente imóveis. Nasciam ervas nos sítios húmidos. Florinhas humildes vergavam de cansadas as suas pesadas cabecitas. Mas nos cimos ouvia-se, incessantemente, sem interrupção, a selva a murmurar, soltando suspiros doloridos. (pp. 95)
Korolenko in Contos. Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941.

Jane\'s Departure, 1976

A UMA RAZÃO

Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa
a nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, _ o novo amor!
«Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas, a começar pela praga
do tempo», cantam-te estas crianças. «Ergue não importa onde a substância
dos nossos destinos e do nosso arbítrio», imploram-te.
Chegada a todas as horas partida para todos os lados.

Jean-Arthur Rimbaud
in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio&Alvim, 1999.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ma l'amore no

Pranto de Ménon Por Diotima (6)

6
Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura da luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os meus tesouros,
E, subindo à tona dos ribeiros, o ouro enterrado cintila.



Hölderlin. Elegias. Edição Bilingue. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Led Zeppelin-Stairway to Heaven




There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are all closed
With a word she can get what she came for

Oh, and she's buying a stairway to heaven

There's a sign on the wall but she wants to be sure
'Cause you know sometimes words have two meanings
In the tree by the brook there's a songbird who sings
Sometimes all of our thoughts are misgiving

(2x)
Oh, it makes me wonder

There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking

Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder

And it's whispered that soon, if we all called the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter

Woe, oh
If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just a spring clean for the May Queen

Yes there are two paths you can go by
But in the long run
There's still time to change the road you're on

And it makes me wonder

Oh

Your head is humming and it won't go, in case you don´t know
The piper's calling you to join him
Dear lady can you hear the wind blow and did you know
Your stairway lies on the whispering wind

And as we wind on down the road
Our shadows taller than our souls
There walks a lady we all know
Who shines white light and wants to show

How everything still turns to gold
And if you listen very hard
The tune will come to you at last
When all are one and one is all, yeah

To be a rock and not to roll

Oh

And she's buying a stairway to heaven

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Florbela Espanca

Ontem, em conversa com um residente de Matosinhos, e admirador profundo da poetisa, ouvi falar pela primeira vez do seu poema último. Fica aqui um breve resumo, dessa descoberta.

«Faleceu no dia 8 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, onde foi sepultada. Na sua mesa de cabeceira estava um copo de leite e debaixo do colchão da sua cama foram encontrados dois frascos vazios de Veronal.
Em 1949, João Maria Espanca perfilha Florbela. Em 1964, um grupo de admiradores de Florbela e o Grupo de Amigos de Vila Viçosa procedem à trasladação dos restos mortais de Florbela para o cemitério de Vila Viçosa, julgando assim cumprir uma vontade da poetisa. No entanto, alguns anos depois, surge manuscrito um poema seu que manifesta:

“Eu quero, quando morrer, ser enterrada
Ao pé do Oceano ingénuo e manso,
Que reze à meia-noite em voz magoada,
As orações finais em meu descanso…” »

Daqui

Once in the South, 1988

A Perfeição

O facudo Ulissess acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante os muros de Tróia:
_Oh deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência, e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das cores da decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas oh deusa, justamente pelo que ela tem de mais incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, a apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta casa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e fruta dos vergéis, enquanto, tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divina! Em oito anos, oh deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus olhos verdes rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio...E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - Foi culpa tua, mulher! - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame de um amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários.
Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.
No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e espalhava por sobre o mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da ilha se cobririam de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.
Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.236/7)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A Perfeição

Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras entre Cila e Caríbdis, e venci Polifermo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh deusa, para que, agora, na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca penugem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos deuses, que não preparas, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável!
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente...Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:
_Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, deusa, empreenderia, se o fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
_Mas jura...Oh deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
_Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:
_Onde está o machado do teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh deusa!...O dia baixa e o trabalho é longo!
_Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino....Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força...Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.


Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.234/5)

Singularidades de Uma Rapariga Loura

A Perfeição

Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
_Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra da pátria...
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
_Oh deusa, tu dizes!...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
_Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam...Mas certamente confiarei o machado de bronze que foi do meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques...Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
Eça de Queiroz . Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa. (pp. 233)

A Perfeição

«...E ao herói, que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando as águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma deusa que, sem cessar, o desejava.» (pp.228)

Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa

Jeunesse

I Dimanche


Postos de lado os problemas, a inevitável descida do céu e a visi-
tação da memória e a sessão de ritmos ocupam a casa, a cabeça
e o mundo do espírito.
-Um cavalo lança-se no turf suburbano ao longo das culturas
e dos arvoredos, atacado pela peste bubónica. Uma pobre mulher de
comédia, algures no mundo, chora improváveis abandonos. Os des-
peradoes languescem depois da trovoada, da bebedeira e das feri-
das. Crianças sufocam maldições nas margens dos rios.
Retomemos o estudo ao som da obra devorante que alastra e
sobe as massas.

Jean-Arthur Rimbaud in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio & Alvim, 3ª ed., 1999

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Na estepe do mundo, triste e infinita,
Brotaram em mistério três nascentes:
A da juventude, célere e rebelde,
Ferve, corre, mareja e cintila.
A de Castália, fonte de inspiração,
Mata a sede ao desterrado na estepe.
A última - a fria, do olvido - mata
Ânsias do coração, mais doce e estreme.

[1827]

Aleksandr Púchkin in O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas. Selecção, Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra. Assírio & Alvim. Lisboa, 1999
Jaz nos outeiros da Geórgia o véu da noite;
Ante mim o ruidoso Aragva.
Estou triste e leve; desta mágoa é clara a fonte;
Cheia de ti é minha mágoa.
De ti, só de ti...Não me tortura o quebranto,
Nada inquieta este pesar,
Meu coração outra vez arde e ama tanto
Porque não sabe não amar.

[1829]
Aleksandr Púchkin in O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas. Selecção, Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra. Assírio & Alvim. Lisboa, 1999

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

The days of our youth are the days of our glory

Byron

Antes de Começar*

A BONECA - A dizer a verdade, eu nunca me enganei...Mas nunca faço nada porque tenho medo de me enganar!...
O BONECO - (A ralhar.) Pareces mais uma menina que uma boneca!!!
A BONECA - Mas o que é que queres?...Eu sou assim...A ti que és boneco, não te ficava mal levantares-te por tua própria iniciativa e sem que ninguém saiba... (A crescer de interesse.) Mas
achas que me ficava bem a mim uma boneca, levantar-me por minha própria vontade, sem mais nem menos?
O BONECO - Estou-te a dizer que todas as noites me fartei de puxar por ti!...
A BONECA - Eu julgava que era o Homem!
O BONECO - Ora aí está! De que serviu eu ter puxado tanto por ti, se tu te punhas a julgar outras coisas!...
A BONECA - (Perfil.) Chiu!...Supõe tu que era o Homem.
O BONECO - Mas não era o Homem, era eu!!!
A BONECA - (3/4.) Mas eu é que não sabia!...
O BONECO - Olha! digo-te outra vez: Pareces mais uma menina do que uma boneca!
A BONECA - E não dizes nada mal!...pois quantas vezes eu me esqueço de que sou uma boneca e me ponho a pensar, exactamente como se fosse uma menina!
O BONECO - (Ri.) Isso é mesmo de boneca!
A BONECA - Mas que queres que eu faça? Eu sou assim...Não fui eu que me fiz!...E tu também não podes falar!...Tu levantas-te quando te apetece e mexes-te à tua vontade, como se fosses uma pessoa...e isto, para um boneco parece a mais!...
O BONECO - És mesmo parvinha de todo! É o que eu te digo: nem pareces uma boneca! Então tu não sabes, minha estupidazinha, que um boneco, quando não está ninguém a ver se mexe à sua vontade?
A BONECA - Já me quis parecer isso ...tenho pensado muito a esse respeito...mas a certa altura começa-me a doer a cabeça e nunca consegui, até hoje, pensar esse assunto todo até ao fim!
O BONECO - Tu és uma fraca!
A BONECA - Pois sou...Não tenho coragem nenhuma! Eu nem tive nunca coragem para me mexer de posição em que o Homem me deixasse!...E tu? Lembravas-te sempre, exactamente, da posição em que o Homem te tinha deixado?
O BONECO - Sempre!


Almada Negreiros in Antes de Começar. Colecção BARATINHA. Raiz Editora. Lisboa, 1995
_beauty that must die

Keats

Casa

Tinha perdido o corpo numa água quase quente; tentava encontrá-lo e
dirigi-lo para a passagem. Com a cabeça abria o sono devagar como se nas-
cesse.
Fugia de uma casa vizinha da morte.
Não sei exactamente o que morria ou morreria nessa casa, sob a lâmpada
pálida.


Gastão Cruz, in Órgão de Luzes (poesia reunida), Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Madrugada

Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penetrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados de amargura já floridos.

Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê de paz tranquila.

E ao lume de águas o rancor da vida.

Madrid, 4/9/1972


Jorge de Sena in Obras de Jorge de Sena Antologia Poética. Edições Asa, 1ª ed. 1999

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pieta, 1990

Menons Klagen Um Diotima/ Pranto de Ménon Por Diotima

1

Todos os dias saio em busca de algo diferente,
Demandei-o há muito por todos os atalhos destes campos;
Além nos cumes frescos visito as sombras,
E as fontes; o espírito erra dos cimos para a planície,
Implorando sossego; tal como o animal ferido se refugia nas florestas,
Onde antes repousava pelo meio-dia à sombra, fora de perigo;
Mas o seu verde abrigo já não lhe dá novas forças,
O espinho cravado fá-lo gemer e tira-lhe o sono,
De nada servem o calor da luz nem a frescura da noite,
E em vão mergulha as feridas nas ondas da corrente.
E tal como é inútil à terra oferecer-lhe a agradável
Erva curativa e nenhum zéfiro consegue estancar o sangue que fermenta,
O mesmo me acontece, caríssimos! Assim parece, e não haverá ninguém
Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?

2

De nada serve, ó deuses da morte, enquanto tiverdes
Em vosso poder, prisioneiro, o homem acossado pelo destino,
Enquanto, no vosso furor, o tiverdes lançado na noite tenebrosa,
De nada serve então procurar-vos, suplicar-vos ou queixarmo-nos,
Ou viver pacientemente neste desterro de temor,
E escutar sorrindo o vosso canto sóbrio.
Se assim for, esquece a tua felicidade e dormita silenciosamente.
No entanto brota no teu peito uma réstea de esperança,
Tu ainda não podes, ó minha alma! Não podes ainda
Habituar-te e sonhas dentro de um sonho férreo!
Não estou em festa, mas gostaria de coroar-me de flores;
Não me encontro eu só?Mas algo apaziguador deve
Aproximar-se de mim vindo de longe e sou forçado a sorrir e a admirar-me
Por experimentar alegria no meio de tão grande sofrimento

3

Luz do amor! Também envolves os mortos no ouro do teu brilho!
Imagens de um tempo mais radioso, sois vós que me iluminais pela noite fora?
Sede bem-vindos vós jardins suaves, vós montes do poente,
E vós silenciosos caminhos do bosque,
Testemunhos de felicidade celestial, e vós estrelas que do alto olhais,
E que outrora me abençoáveis, olhando-me!
E vós também, amantes, vós belos filhos de Maio,
Rosas discretas e vós, lírios, invoco-vos ainda tantas vezes!
É verdade que as Primaveras se desvanecem, um ano sucede a outro,
E assim o tempo rodopia em mudança e luta
Sobre as nossas cabeças mortais, mas não perante olhos bem-aventurados,
E aos amantes uma outra vida é concedida.
Pois todos os dias e anos estelares, Diotima!
Estavam em nosso redor intimamente unidos para sempre;

4

Mas nos caminhávamos juntos pela terra, num mútuo contentamento,
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas, olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Sorríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido.

5

Desejo festejar, mas para quê?E cantar com outros,
Mas assim sozinho tudo o que é divino me falta.
É este o meu mal, sei-o, uma maldição paralisa-me
Os tendões e abate-me ao menor movimento,
E assim passo o dia insensível e mudo como os meninos,
Apenas me brotam dos olhos frias lágrimas,
E a verdura dos campos entristece-me e o canto dos pássaros
Porque na sua alegria são também mensageiros do céu,
Mas o sol que reanima cai frio e esterilmente
No meu peito convulso como se fossem raios nocturnos,
Ai! E inútil e vazio como paredes de uma prisão o céu
É um peso excessivo que paira sobre a minha cabeça!

6

Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura de luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os seus tesouros,
E, subindo à tona de ribeiros, o ouro enterrado cintila.

7

Mas tu, que dantes, já nas encruzilhadas, quando
A teus pés caí, consolando-me, me apontavas para algo mais belo,
Tu que me ensinaste a ver a grandeza e a cantar aos deuses mais alegremente,
Silencioso, como eles, contendo o meu entusiasmo,
Filha dos deuses! Voltarei a ver-te, voltarás a saudar-se, como dantes,
Voltarás, como dantes, a falar-me de coisas sublimes?
Olha, tenho que chorar e lamentar-me diante de ti, pelo menos,
Ao pensar em momentos mais felizes, dos quais a alma se envergonha.
Porque demorei tanto, tanto tempo a procurar-te por pálidos caminhos terrestres,
Habituado a ti, errante,
Anjo de alegria! Mas em vão e os anos escoaram-se,
Desde que, cheios de pressentimentos, à nossa volta víamos o fulgor crepuscular.

8

Apenas a ti, heroína, a tua luz te mantém na luz
E a tua paciência, amável, te mantém no amor;
E nem sequer estás só; estás acompanhada nos teus jogos,
Onde quer que floresças e descanses entre as rosas do ano;
E o próprio Pai te envia ternas canções de embalar
Pelas mãos de musas que respiram suavidade.
Sim, é ela mesma! Ainda vejo diante dos meus olhos a Ateniense,
Em corpo inteiro, pairando e aproximando-se em silêncio, como dantes.
Espírito amável! E tal como da fonte dos teus pensamentos serenos
O teu raio de luz recai, abençoado, sobre os mortais;
Do mesmo modo mo demonstras e dizes, para que eu a outros
O repita, pois também outros há que não o crêem,
Que a alegria, mais imortal do que os cuidados e a fúria,
Num dia áureo se tornará por fim quotidiana.

9

Por isso vos quero também agradecer, deuses celestes, e finalmente
No peito mais aliviado respira de novo a oração do vate.
E tal como quando com ela me encontrava nos cumes soalheiros,
Há um Deus que, interpelando-me do interior do templo, me devolve à vida.
Também quero viver! O verde surge! E como que dedilhado numa lira sagrada
Chega o apelo dos montes argênteos de Apolo!
Vem! Tudo foi como num sonho! As asas ensanguentadas já estão
Saradas e todas as esperanças renascem.
Ainda há muita grandeza por achar e quem assim
Amou é forçoso que entre na órbita dos deuses.
Acompanhai-vos, horas sagradas! E vós, solenes
Jovens! Permanecei, santos pressentimentos, e vós,
Súplicas ardentes! E vós, entusiasmos e todos vós,
Génios bons, a quem é grato estar entre os amantes;
Permanecei junto de nós até pisarmos o mesmo solo
Onde todos os deuses do Alto se preparam para regressar,
Onde estão as águias, as constelações, os mensageiros do Pai
Onde as musas se encontram e donde provêm os heróis e os amantes,
Que aí, ou também aqui, nos encontremos sobre uma ilha orvalhada,
Onde todos os nossos estarão, florescendo juntos em jardins,
Onde os cânticos serão verdadeiros e as Primaveras por mais tempo belas,
E de novo comece um ano para as nossas almas


Friedrich Hölderlin in Elegias. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992
Será necessário que todos os homens sejam
homens? Também pode haver, sob formas
humanas, homens diferentes do homem.


A coesão geral, interior, harmónica, não existe,
mas existirá.


A doença, como a morte, faz parte dos prazeres
do homem.


O mundo é um tropo universal do espírito,
uma imagem simbólica dêste.


Todo o visível adére ao invisível, tudo o que
pode entender-se ao que não se pode entender,
todo o sensível ao insensível. Talvez tudo o que
pode pensar-se ao que não se pode pensar.


Como a doença, a vida nasce de uma paragem,
de uma limitação, de um contacto.


A filosofia não tem que explicar a natureza,
tem que explicar-se a si-mesma.


Tudo acontece em nós muito antes de ter acon-
tecido.


Quem pode criar uma ciência deve poder crear
uma não-ciência. Quem pode tornar uma coisa
compreensível deve poder torná-la incompreen-
sível.


Os corpos são pensamentos precipitados e cris-
talisados no espaço.


O que há de melhor nas ciências é o seu ingre-
diente filosófico, como a vida é o que há de
melhor nos corpos orgânicos. Despojem as
ciências da sua filosofia, que fica? Terra, ar
e água.


O amor é o fim último da história universal.
O amen do universo.


A linha curva é a vitória da natureza sobre a
regra.


O mar é uma essência líquida de rapariga.


Friedrich Leopold Freiherr von Hardenberg dito Novalis in «Fragmentos». Trad. Mário Cesariny. Assírio & Alvim, 1986.
A árvore só pode tornar-se chama florescente,
o homem chama falante, o animal chama
errante.


Um dia, o homem poderá vigiar e dormir con-
tinuamente, simultâneamente. A maior parte do
nosso corpo, da própria humanidade, ainda
dorme um sono profundo.


Tudo é naturalmente eterno. A mortalidade e a
instabilidade são privilégio das naturezas su-
periores.


No mundo há só um templo: o corpo humano.
Nada mais sagrado do que esta forma sublime.
Inclinarmo-nos perante um homem, é render
homenagem a esta revelação na carne. É no
céu que tocamos quando tocamos num corpo
humano.


Todo o objecto amado é o centro de um paraíso.

Nenhuma palavra está completa. As palavras
ora são vogais ora são consoantes, palavras
que valem por si próprias e palavras que valem
por acompanhamento.

Que é o homem? Um tropo perfeito do espírito.

Todos os homens são variações de um indiví-
duo completo, isto é, de uma boda.

Urge que o verdadeiro leitor seja o autor
aumentado.


Friedrich Leopold Freiherr von Hardenberg dito Novalis in «Fragmentos». Trad. Mário Cesariny.
Assírio & Alvim, 1986.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Há Muito Dura A Viagem...

Há muito dura a viagem
Da minha vida...
E a estrada
A percorrer é longa...

Comecei a jornada
Ao primeiro fulgor
Da luz no mundo...
Varei os desertos do mundo
Deixei o sinal de passos
Nas estrelas.

O mais longo caminho
É o que o leva mais perto.
E a mais severa disciplina
A que gera a mais doce harmonia.

É preciso bater a mil portas
Para encontrar a sua.
Correr os mundos todos
Para alcançar o tabernáculo sagrado...

- No horizonte sem fim perdi meus olhos
Antes de clamar: Ei-lo!
-Esta pergunta: Onde?
Funde no pranto de mil fontes.
-Um dilúvio de luz inunda o mundo
A esta palavra: Sou!

Tagore in Poesias de Tagore (O Músico e o Poeta). Cadernos da «Seara Nova» Secção de Estudos Literários. Prefácio e Trad. de Augusto Casimiro. Lisboa, Seara Nova, 1939

No fundo do teu ser / Quem trazes prisioneiro?

No fundo do teu ser quem trazes prisioneiro,
Sedento de mais luz? Quem vela? Quem dominas?
Anseia a claridade
Num soluçar desfeito.
Os seus olhos não vêem,
Embora a luz acenda
O céu a cada aurora.

Quem vela, encarcerado,
No fundo do teu ser?
O cântico da vida
Encanta o ar, em torno...
E lutas, no silêncio...

As aves, na floresta,
Cantam o novo dia
E as flores o triunfo
Da vida renovada.
-Se a luz do céu triunfa
-Porque há noite em teus olhos?

- A noite foi-se embora e, embora,
No teu cárcer estreito,
Arde ainda, na sombra,
A lâmpada nocturna.

-Porque andam tão ausentes
A tua casa e o mundo?
Quem trazes prisioneiro
No fundo de ti mesmo?

Tagore in Poesias de Tagore (O Músico e o Poeta). Cadernos da «Seara Nova» Secção de Estudos Literários. Prefácio e Trad. de Augusto Casimiro. Lisboa, Seara Nova, 1939

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Talvez só se possa ser realista lendo activamente o aforismo de Novalis: «a poesia é o real absoluto». E insistindo depois disso que o real resiste à poesia, insiste e subsiste como um não-dito de que a poesia parece infindamente acercar-se, fazendo dele o seu motor e o seu alvo. Como no amor: «o/movimento infindável do corpo em torno/do amor» (de outro modo: não diria como Barthes, na Lição, que o real não é representável, ou o impossível, como em Lacan; mas aceitaria, entre Barthes e Jameson que a obstinação representativa da poesia a torna de algum modo utópica, ou que o real é a utopia, mas ele insiste, existe também nisso.)

Manuel Gusmão

«O sol é grande, caem co'a calma as aves...»

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

The Slavic Girl with Her Father, 1998

Metamorfose

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter...

uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta

que a solidão possa tornar-se humana.


Jorge de Sena in Obras de Jorge de Sena Antologia Poética. Edições Asa, 1999.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

«O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem corrente da poesia, quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens ( no sentido psíquico e não estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação».

Jorge de Sena Do Postfácio a Metamorfoses, seguidas de
Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (1963)
1968

domingo, 6 de dezembro de 2009

# 1

Havia uma casa com raízes numa montanha de granito. Uma casa sem vizinhos, meia perdida entre o caminho que corta por entre urzes e o riacho. Por detrás dessa casa, havia um estábulo de madeira; era aí criado um menino - que fora trazido pela época das chuvas -, como um animal.
Os caseiros, ambos já velhos, eram avessos a ter uma criança sentada à mesma mesa que eles. Não suportavam ter o encargo de a educar. Por não a conseguirem deixar ao abandono, à espera da morte, colocaram-na perto dos animais, e passados uns meses, esse menino de olhos negros como a sombra, viria a estar no mesmo espaço onde se movia a vaca, os bois, e as galinhas.
O velho, um homem de feições rudes e de maldade crepitante nos cantos da boca, traz ao nascer do sol, comida para abastecer o gado. Depois de colocada uma braçada de feno, que empilha na manjedoura, revira os olhos para aquele corpo petiz sem nome.
-Vá, come! - resmunga o velho.
Atira-lhe feno para o rosto e pão duro para o chão, que este, se apressa a agarrar para trincar. Com o tempo, como que, uma propensão para o mal puxa ainda pela raíz mais funda, deixou de lhe dar comida. O menino, dormia em cima do feno, esperneando-se todas as noites com dor: dor de fome, que queimava como ferro no estômago. Horas e horas de sede e para a boca encontrou na erva fresca vinda dos pastos, o engano para a fome; começou como o boi, a ruminar.
Alguns dias depois, em que, não aguentava na barriga o sentimento vivo desse azedume - enquanto a mão levava à boca o verde das ervas -, o menino, fixou os olhos da vaca - tristes, como que gravados numa escultura - e, dela veio a permissão, o chamamento; moveu-se a criança esfaimada até às tetas - aí pôs-se a beber o leite, agarrando-as com sofreguidão, para as sugar . A caseira, uma velhota, ainda que, mais afável que o homem, quando começou a dar pela falta do leite, levou abóboras e frutas para o estábulo. Elas chegavam, tão frescas na cor, que era vê-lo atirar-se para roer o que houvesse. A isto, tudo assistiam, as aranhas recolhidas entre as grandes névoas de teia, que cobriam o tecto de madeira podre.
O velho, num dia de tédio, em que o suor lhe escorria da fronte e, uma inquietante e contínua impressão na artéria do peito, se lhe apertava cada vez mais, perdeu as estribeiras, ao olhar aquela criatura, ali, tão obediente e passiva, ao lado dos animais.
- Meu grandessíssimo filho da puta! - berrou, e a seguir atirou-lhe com um balde de água à cabeça. Seguiram-se pontapés na barriga e, pegando numa correia dum chicote pendurado ao pé das forquilhas, deixou-o com o corpo e a alma marcada, como se, por ali tivesse passado o diabo. Foi a vaca, que lhe lambeu o sangue das feridas abertas, bebeu-lhe a infecção - o pus -,enxotando as moscas com o movimento incessante do rabo. No dia seguinte, o velho ao confrontar-se com o menino todo batido, fruto das suas mãos loucas, não abrandou, e desceu mais fundo: chicoteou-o ainda com mais força. De instinto animalesco, o menino agora educado como uma fera, agarrou-se-lhe à perna, e, só alimentado de sementes e pasto, cravou os dentes na carne, até a rasgar, até correr sangue no estábulo cheio de esterco. Os gritos do velho, trouxeram a caseira, e com ela, a súbita consciência, de que eram responsáveis pelo comportamento desse animal que criaram.
-Santo Deus! - disse, sem quase haver ar no peito para respirar.
O menino ao vê-la, parou, subitamente assustadiço. Afastou-se para um canto. Agarrou em folhas de milho e pôs-se a trincá-las para tirar da boca, o sabor do sangue humano. A mulher arrastou o velho, dali para fora, e ele nunca mais voltou. Passou a vir sempre ela, com passo lento, na sujidade do chão de pedra. Deitava o milho às galinhas, ordenhava a vaca, e deixava latas de conserva de feijão e carne para o menino. Com os meses, deu-lhe um nome. Chamava-o e quando o menino deixava que o tocasse, dáva-lhe sementes de abóbora, o seu banquete preferido. Depois começou a cantar-lhe canções, que só do coração lhe tinham saído, quando criara as suas crias - agora ausentes, lá nas cidades de fumo negro. Ensinou-lhe depois as palavras, a este ser, que aprendera a imitar os grunhidos dos animais; e, quando se sentou na escada da casa na colina, e o céu se abriu entre as nuvens de Inverno, ela, a mulher do caseiro matou a maldade, e sentou o menimo à mesa.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny in Pena Capital I. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999
Novel for Girls, 2000
Terra vermelha, terra negra
tu vens do mar,
do verde requeimado
onde há palavras
antigas e fadiga sanguínea
e gerânios entre as pedras -
não sabes o que em ti
trazes de mar palavras e fadiga,
tu rica como uma lembrança,
como o campo despido,
tu áspera e dulcíssima
palavra, antiga como o sangue
recolhido nos olhos;
jovem, como um fruto
que é lembrança e estação -
a respiração repousa
sob o céu de agosto,
as azeitonas do teu
olhar suavizam
o mar e tu vives revives
sem surpresa, certa
como a terra, escura
como a terra, moinho
de estações e de sonhos
que ao luar se revela
antiquíssimo, como
as mãos de tua mãe,
a concha da braseira.

Tu és terra e a morte.
A tua estação é a sombra
e o silêncio. Nada
vive mais distante
da aurora que tu.

Quando pareces despertar
és dor apenas,
tem-la nos olhos e no sangue
mas tu não sentes. Vives
como vive uma pedra,
como a terra dura.
Vestem-te sonhos
movimentos soluços
que tu ignoras. Como a água
de um lago a dor
tremula e envolve-te.
Há círculos sobre a água.
Tu deixa-los desvanecer.
Tu és a terra e a morte.

Virá a morte e terá os teus olhos
- esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito mudo, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sobre ti mesma no espelho
te inclinas. Ó minha cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que tu és vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver surgir no espelho
em rosto morto, como
escutar uns lábios fechados.
Mudos, desceremos no abismo.

Cesare Pavese in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas de Albano Martins. Publicações Dom Quixote, 1992

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

You Are Welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny in Pena Capital I. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999
Deep Devotion of Veronika, 1994
*

Desci, dando-te o braço, pelo menos um milhão de escadas
e agora que não estás aqui há um vazio em cada degrau.
Até nisso foi breve a nossa viagem.
A minha dura ainda, e já não são necessárias
as coincidências, as reservas,
as ciladas, as vergonhas de quem acredita
que a realidade é aquilo que se vê.

Desci milhões de escadas dando-te o braço
e não porque com quatro olhos talvez se veja mais.
Contigo as desci por saber que de nós dois
as únicas pupilas verdadeiras, ainda que tão ensombradas,
eram as tuas.

*
«E o Paraíso? Existe um paraíso?»
«Creio que sim, senhora, mas os vinhos doces
já ninguém os quer».

*

Sinto remorso por ter esmagado
o mosquito na parede, a formiga
no chão.
Sinto remorso mas aqui estou vestido de escuro
para o congresso, para a recepção.
Sinto dor por tudo, até pelo hilota
que me propina conselhos de participação,
dor pelo mendigo a quem não dou esmola,
dor pelo demente que preside ao conselho
de administração.

Eugenio Montale in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas de Albano Martins. Publicações Dom Quixote, 1992

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Eterno

Entre uma flor colhida e outra dada
o inexprimível nada.


Giuseppe Ungaretti in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas de Albano Martins. Publicações Dom Quixote, 1992

A Cabra

Falei com uma cabra.
Estava sozinha no prado, estava presa.
Saciada de erva, molhada
pela chuva, balia.

Aquele monótono balido era irmão
da minha dor. Eu respondi-lhe, a princípio
por brincadeira, depois porque a dor é eterna,
tem voz e não muda.
Era esta voz que sentia
gemer numa cabra solitária.

Numa cabra de rosto semita
sentia queixarem-se todos os outros males,
todas as outras vidas.

Umberto Saba in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas
de Albano Martins. Publicações Dom Quixote, 1992

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Se os poetas fossem menos patetas

Se os poetas fossem menos patetas
E se fossem menos preguiçosos
Faziam toda a gente feliz
Para poderem tratar em paz
Dos seus sofrimentos literários
Construíam casas amarelas
Com grandes jardins à frente
E árvores cheias de zaves
De mirliflautas e lizores
De melharufos e toutiverdes
De plumuchos e picapães
E pequenos corvos vermelhos
Que soubessem ler a sina
Havia grandes repuxos
Com luzes por dentro
Havia duzentos peixes
Desde o crusco ao ramusão
De libela ao papamula
Da orfia ao rara curul
E da alvela ao canissão
Havia um ar novo
Perfumado odor das folhas
Comia-se quando se quisesse
E trabalhava-se sem pressa
A construir escadarias
De formas nunca antes vistas
Com madeiras raiadas de lilás
Lisar como ela sob os dedos

Mas os poetas são uns patetas
Escrevem para começar
Em vez de se porem a trabalhar
E isso traz-lhe um remorso
Que conservam até à morte
Encantados de ter sofrido tanto
Dedicam-lhes grandes discursos
E são esquecidos num dia
Mas se trabalhassem mais
Só seriam esquecidos em dois


Boris Vian in canções e poemas . Assírio & Alvim, 1997 .Trad. Irene Freire Nunes
Fernando Cabral Martins

O Fanal

Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
pedra e ara súbito como torre erguida,
aqui ascende sob um negro céu
Zaratustra os seus fogos das alturas,-
fanal para navegantes sem rumo,
ponto de interrogação para os que têm resposta...

Esta chama de ventre esbranquiçado
-sua cobiça lança línguas a distâncias frias,
dobra o pescoço para alturas mais puras -
cobra erguida a pino, de impaciência:
este sinal o pus eu em frente a mim.

A minha própria alma é esta chama:
insaciável de distâncias novas,
lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.
Porque fugira Zaratustra dos bichos e dos homens?
porque se escapou de repente de toda a terra firme?

Seis solidões conhece ele já -,
mas o seu próprio mar não lhe era solitário bastante,
a ilha deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,
a uma sétima solidão
lança buscando agora o seu anzol por sobre a fonte.

Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!
Ó mares de futuro! Ó céus inexplorados!
Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:
dai resposta à impaciência da chama,
agarrai para mim, pescador nos altos montes,
a minha sétima última solidão! -

Friedrich Nietzsche (1844-1900) in Rosa Do Mundo 2001 poemas para o futuro
2. ed. Assírio & Alvim, 2001

"Não foi alguém, nem foi ninguém"

A morte de Mairi

Ela morreu
Como morre no Oriente a nuvem vermelha ao romper do dia,
A nuvem de beleza imensa que o sol inveja
E em glória se alevanta para roubar
A sua cor.

Ela morreu
Como morre o clarão breve e fugaz da luz do Sol
Que a sombra persegue correndo veloz.
Não mais cai a chuva, a glória passou e ela morreu
Como o arco-íris.

Ela morreu
Como morre a neve na praia caída à beira do mar
E a maré subindo, serena e lenta e sem piedade
E vai cobrindo sem nunca ver nem admirar
Sua brancura.

Ela morreu
Como morre a voz da harpa que ao soar vai esmorecendo doce e
solene.
Como num conto de encantar ela morreu
Um conto que ninguém ouvira e estava ainda
Em seu início.

Ela morreu
Como morre o luar que da Lua desce
E o marinheiro da noite escura se arreceia.
Como um sonho doce ela morreu e ao sonhador veio
A tristeza.

Ela morreu
Ao acordar sua beleza, Sem ela o Céu
Não fora o Céu. Ela morreu e assim o Sol
Na madrugada se vai erguer e apagar.
Morreu Mairi!


Evan Maccoll (1808-1898) in Rosa Do Mundo 2001 poemas para o futuro
2. ed. Assírio & Alvim, 2001

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Um hemisfério numa cabeleira

Deixa-me respirar longamente, longamente, o aroma dos teus
cabelos, neles mergulhar todo o meu rosto, como um homem se-
dento na água de uma nascente, e agitá-los na minha mão como
um lenço aromático, para sacudir recordações no ar.
Se pudesses saber tudo aquilo que eu vejo! tudo aquilo que eu
sinto!tudo aquilo que ouço nos teus cabelos! A minha alma viaja por
sobre o perfume como a alma dos outros homens sobre a música.
Os teus cabelos levam um sonho inteiro, cheio de velames e de
mastreações; levam grandes mares de monções que me transportam
para encantadores climas,onde o espaço é mais azul e mais profundo,
de atmosfera perfumada pelos frutos, pelas folhas da pele humana.
No oceano da tua cabeleira, avisto um porto irrompendo em
cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios
de todos os formatos recortando arquitecturas finas e complicadas
num céu imenso em que preguiça o eterno calor.
Nas carícias da tua cabeleira, reencontro as demoras das longas
horas passadas num divã. no quarto de um belo navio, embaladas
pelo rolar imperceptível do porto, entre os vasos de flores e os cân-
taros refrescantes.
No lar ardente da tua cabeleira, respiro o aroma do tabaco
mesclado em ópio e açúcar; na noite da tua cabeleira, vejo resplan-
descer o infinito do horizonte tropical; nas margens sedosas da tua
cabeleira embriago-me com os aromas misturados do almíscar, do
alcatrão e do óleo de coco.
Deixa-me morder demoradamente as tuas tranças pesadas e ne-
gras. Quando mordisco os teus cabelos elásticos e rebeldes, julgo estar
a mastigar recordações.

Charles Baudelaire(1821-1867) in Rosa Do Mundo 2001 poemas para o futuro
2. ed. Assírio & Alvim, 2001)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

I

Tenho uma pele cor de fumo avermelhado, cor de mulo,
tenho um chapéu de miolo de sabugueiro coberto de tela
branca.
Meu orgulho é que a minha filha seja belíssima quando dê
ordens às mulheres negras,
minha alegria, que ela desnude um braço branquíssimo entre
suas galinhas negras,
e não se envergonhe de minha bochecha rude sob a barba,
quando volto a casa enlameado.

*

E primeiro lhe dou meu chicote, minha cabaça e meu chapéu.
Sorrindo, ela desculpa-me a cara encharcada; e leva ao rosto
minhas mãos, que engordurei provando a amêndoa de cacau,
o grão de café.
E depois ela me traz um lenço de cabeça farfalhante; e minha
roupa de lã; água pura para limpar meus dentes de silencioso:
e a água de minha bacia lá está; e escuto a água do tan-
que na cabana da água.

*

Um homem é duro, sua filha é doce. Que elas se encontre
sempre,
ao voltar ele, no mais alto degrau da casa branca,
e livrando seu cavalo do aperto dos joelhos,
ele esquecerá a febre que repuxa toda a pele do rosto para
dentro.

*

Gosto também de meus cães, do apelo de meu melhor cavalo,
e de ver no extremo da reta alameada meu gato sair de casa
em companhia da macaca...
coisas essas suficientes para não invejar as velas dos veleiros
que percebo no alto do teto de zinco sobre o mar, como um
céu.


Saint-John Perse
in Obra Poética
Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973
Trad. Darcy Damasceno
'Durante uma excursão ao Potomac, no decorrer de uma conversa com Aristide Briand e, como que justificando pelo seu amor da natureza a sua aversão pelo papel impresso, pronuncia (...):
«Um livro é a morte de uma árvore.» ' (pp.29)


Saint-John Perse
in Obra Poética
Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973
Trad. Darcy Damasceno

VI

Palmeiras!
e contra a crepitante casa tantas lanças de chama!

...As vozes eram um ruído luminoso e sotavento...O barco
de meu pai, diligente, conduzia grandes figuras brancas: talvez,
em suma, Anjos despenteados; ou talvez homens sadios, vestidos
de belo pano, capacetes de sabugueiro ( e assim meu pai, que foi
nobre e decente).

...Pois de manhã, pelos campos pálidos da Água nua, ao
longo do Oeste,vi andarem Príncipes e seus Genros, homens de
alta estirpe, bem vestidos e calados, que o mar antes do meio-dia é
um Domingo em que o sono tomou o corpo de um Deus,
dobrando as pernas.

E tochas ao meio-dia, se ergueram para minhas fugas,
E creio que Arcos, Salas de ébano e zinco iluminaram-se
todas as noites ao sonho dos vulcões,
na hora em que juntavam nossas mãos diante o ídolo em
traje de gala.
Palmeiras! e a doçura
de velhice nas raízes...! Os ventos alísios, os pombos trocazes
e a gata parda
esburacavam a amarga folhagem verde onde, na crueza de uma
noite com perfume de Dilúvio
as luas rosas e verdes inclinavam-se qual mangas.

...Já os tios falavam baixo a minha mãe. Haviam amarrado
seu cavalo à porta. E a casa durava, sob as árvores de plumas.

Saint-John Perse
in Obra Poética
Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973
Trad. Darcy Damasceno

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny
in Pena Capital I
Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

uma certa quantidade

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles

Mário Cesariny
in Pena Capital I
Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

domingo, 15 de novembro de 2009

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