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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Entre aves de rapina

Quem aqui quer descer,
quão depressa
a profundeza o traga!
- Mas tu, Zaratustra,
amas ainda o abismo,
queres igualar o abeto?

Esse finca raízes, ali
onde mesmo o penedo, arrepiado,
olha para as profundas - ,
fica hesitante à beira dos abismos
onde tudo em volta
quer precipitar-se:
entre a impaciência
do cascalho à solta, do regato que se despenha
sofrendo, paciente, duro, calado
solitário...

Solitário!
Pois quem se atreveria
a ser hóspede aqui,
a ser teu hóspede?...
Talvez uma ave de rapina:
essa, sim, suspende-se
com regozijo dos cabelos
do mártir inabalável,
com loucas gargalhadas,
gargalhadas de aves de rapina...

Para quê tão inabalável?
-escarnece ela cruel:
É preciso ter asas quando se ama o abismo...
não se deve ficar dependurão
como tu, enforcado! -

Ó Zaratustra,
crudelíssimo Nimrod!
Há pouco ainda caçador de Deus,
rede de agarrar toda a Virtude,
seta do Mal!
Agora -
por ti mesmo perseguido,
presa de ti mesmo,
em ti mesmo afuroado...

Agora -
solitário contigo,
em diálogo com a própria ciência,
entre cem espelhos
falso ante ti mesmo,
entre cem lembranças
incerto,
cansado a toda a ferida.
frio a todo o gelo,
esganado nos teus próprios baraços,
Conhecedor de ti mesmo!
Carrasco de ti mesmo!

Para que é que te amarraste
com o baraço da tua sabedoria?
Para que te atraíste
ao paraíso da velha Serpente?
Para que te insinuaste
em ti - em ti?...

Um doente agora,
doente do veneno da Serpente;
um prisioneiro agora
que tirou a pior sorte:
na própria mina
trabalhando agachado,
em ti mesmo encovado,
minado para dentro de ti mesmo,
canhestro,
hirto,
um cadáver -,
sobrepujado pela carga de cem cargas,
sobrecarregado de ti,
um Sábio!
um Conhecedor de si mesmo!
o sábio Zaratustra!...

Buscavas a carga mais pesada:
e a ti te encontraste -,
e não podes arrojar-te a ti de ti...

À espreita,
agachado,
alguém que já nem pode estar de pé!
Inda hás-de concrescer em aleijão co'a tua sepultura,
Espírito aleijado!

E há pouco ainda tão soberdo,
nas soberbas andas da tua soberba!
Há pouco ainda o solitário sem Deus,
em convívio com o Diabo,
o príncipe escarlate de toda a altivez!...

Agora -
entre dois nadas
enroscado,
um ponto de interrogação,
um enigma estafado -
um enigma para aves de rapina...

- elas te «solverão»,
já estão com fome da tua «solução»,
já esvoaçam à volta de ti, o seu enigma.
à volta de ti, enforcado!...
Ó Zaratustra!
Conhecedor de ti mesmo!...
Carrasco de ti mesmo!...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 27-33

Última Vontade

Morrer assim,
como eu o vi morrer então -,
o Amigo que atirou divinamente
relâmpagos e olhares à minha escura juventude:
arrogante e profundo,
um bailador na batalha -,

entre guerreiros o mais jovial,
entre vencedores o mais difícil,
erguendo-se, um destino sobre o seu destino,
duro, reflectindo o passado e o futuro - :

tremendo porque venceu,
exultando porque venceu morrendo...,

mandando enquanto morria
- e mandou que aniquilassem...

Morrer assim,
como eu o vi morrer então:
vencendo, aniquilando...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 25

domingo, 10 de janeiro de 2010

Pranto de Ménon Por Diotima (6)

6
Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura da luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os meus tesouros,
E, subindo à tona dos ribeiros, o ouro enterrado cintila.



Hölderlin. Elegias. Edição Bilingue. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992

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